Tenção. A arte seniana de música para poema e tecla

Neste artigo, Ana Paixão analisa Arte de Música à luz do conceito de tenção, desde o seu sentido descritivo de um tipo específico de composição musical até o seu sentido mais histórico. Articulando as diferentes tenções, intenções e intensões no livro de Sena, a autora ressalta a importância dessa obra para a poesia portuguesa moderna e contemporânea.

Ana Paixão (CESEM / UNL e Universidade Paris 8)

Tenção – Arte de tanger, ou produzir som
com um instrumento de tecla ou corda
[1].

Da crepitante música tangida,
Húmida e tersa
[2]

A música não surge na obra de Jorge de Sena como elemento abundante ou fortuito. Na sua produção literária e ensaística, cada referência é conveniente e coerente, cinzelada sem falhas no tecido narrativo, poético ou discursivo. Essa adequação sígnica e conceptual reveste-se de um cuidado particular e sensível em relação à música, arte alquímica e intangível, de desvelamento e de metamorfose interna. Presente em momentos contextualizados e medidos, revela-se no frade etéreo do conto «Mar de pedras» que ouve «música celeste»[3], nos «altos pianos de tubos de ensaio» do laboratório químico do Técnico em Sinais de Fogo[4], ou na alusão à sétima sinfonia de Beethoven cuidadosamente associada ao desejo do moribundo Papa Pio XII em Fidelidade[5]. A música, apesar de ser apenas música[6], não se mostra[7] como simples fluxo sonoro, revestindo-se de densidade hermenêutica e ontológica. Jorge de Sena tange-lhe uma Arte de música[8], obra intersemiótica maior, onde o conhecimento e o fascínio por esta arte se desvelam em poema.

Tenção intersemiótica

Arte de música é uma obra única no panorama literário e musical português, concretizando o que Jorge de Sena designa por «transfiguração poética da música»[9]. Cinco anos antes, em 1963, Metamorfoses havia iniciado o processo de criação intersemiótica, a partir de diversas artes. Obras escultóricas, arquitetónicas, pictóricas, fotográficas e até tecnológicas (Sputnik I) foram literariamente metamorfoseadas, a partir da definição ovidiana de Rafael Bluteau[10]. Com base neste princípio, o poema resultaria, assim, de uma passagem de signos de diversas artes, a signos verbais[11]. Centrada no olhar a duas ou mais dimensões, a transdução[12] visual integrará, ainda assim, elementos acústicos, como os «olhos que ouvem» de Artemidoro, o ambiente sonoro da Mesquita de Córdova, o «silêncio de luz» de uma tela de Turner, a «doce melodia» emanada da máscara de bronze de Keats, a «doce música» em Sputnik I, ou as duas variações que se seguem à post-metamorfose[13]. Os quatro sonetos finais, consagrados a Afrodite Anadiómena[14], revelarão uma inusitada exploração acústica. Pela invenção de novos vocábulos, Jorge de Sena dialoga com as correntes experimentalistas portuguesas e brasileiras do início dos anos 60[15], numa aproximação a partir de terreno firme, já que utiliza o soneto como base criativa. Ouvimos nestes textos uma indagação tímbrica centrada na Antiguidade clássica, pela abundância de léxico que remete para esse universo sonoro[16], pela utilização de verbos exortativos no imperativo («Pandemos», «baissai», «refucarai», «contumai», «lambidonai», «vitrai»), «compondo um sentido global em que o gesto imaginado» vale «mais do que a sua mesma designação»[17]. O ritmo e a rima obedecem aos cânones do soneto, mantendo uma regularidade métrica e auditiva reforçada pelo uso de aliterações e de alterações de acentuação. Buscam-se sonoridades («Fímbril, filível, viridorna», «erídia, / erínea, erítia, erótia, erânia, egídia») que contribuam «[…] para a criação de uma atmosfera erótica»[18], introduzida pelo título, já que «Anadiómena» invoca o nascimento de Vénus, nua, a partir das águas. Os quatro sonetos dedicados a Afrodite revelam ser um espaço de experimentação acústica e semiótica singular na escrita de Jorge de Sena[19]. Constituirão uma etapa de transição entre Metamorfoses e Arte de música, ao configurarem a passagem das artes visuais para a arte sonora, e ao explorarem potencialidades tímbricas e rítmicas da língua. A referida transição é válida tanto do ponto de vista da produção, como do da receção, uma vez que na coletânea Poesia II, os quatro sonetos se localizam precisamente entre as duas obras.

Quando, em 1968, Jorge de Sena publicou Arte de Música tinha perfeita consciência da singularidade da sua criação intersemiótica no contexto literário português, como refere na correspondência mantida com Sophia de Mello Breyner[20] ou com Eduardo Lourenço[21]. Além de grande melómano, estudara piano, criando um elo forte com os sons: «[…] se todas as artes me são necessárias à vida como o ar que respiro, a música ocupou sempre, entre elas, e em relação a mim, um lugar especial[22]». Tenção mais fértil e abundante do que Metamorfoses, Arte de Música integrará, na versão de 1988, quarenta e quatro composições, organizadas por ordem cronológica dos compositores referidos, à exceção do primeiro poema, sobre um prelúdio de Debussy.

A partir do título, a obra apresenta-se como uma Arte – um espaço de regulamentação e de normatização de códigos[23] – acerca (de), ou sobre, Música. De acordo com Jorge de Sena, há apenas duas formas de «[…] falar dela: tecnicamente, ou poeticamente»[24]. Arte de Música fundirá ambas, considerando que o princípio de composição do poema intersemiótico não é música, nem imitação dela, e pressupõe o entendimento do texto musical em si mesmo, na sua expressão técnica. Só a partir dessa premissa será possível concretizar plenamente o poema, ao corporizá-lo como resultado distinto da obra musical de partida, ainda que semioticamente imbricado nela. Como salienta Adorno, «É afastando-se da música que o poema realiza a sua similitude com ela»[25]. A tenção literária de Arte de Música encontra-se, assim, profundamente enraizada na conceção poiética adorniana, numa perfeita maestria simultaneamente técnica e poética, a partir da música.

Tenção técnica e poética

A música é, como nenhuma outra arte
em tão elevado grau, a sua mesma técnica[26].

Arte de música é um ensaio poético sobre topoi musicais, um laboratório de análise e de dissertação acerca de questões musicológicas, em torno de três grandes eixos: signos e expressão; organização interna e tempo; receção musical e tenção poética.

a) Signos e expressão

O único e exclusivo conteúdo e objecto da música
são formas sonoras em movimento[27].

Durante a grande efervescência da estética romântica, o musicólogo Eduard Hanslick centrou a significação musical na própria música, numa conceção exclusivamente autorreferente. A poesia de Jorge de Sena encontra-se imbuída dos princípios de Hanslick, como o mostram os versos introdutórios de «Bach: variações Goldberg»: «A música é só música, eu sei. Não há / outros termos em que falar dela»[28]. Os sons comunicam-se a si mesmos, à sua expressão, à sua forma: «Desta música [Dowland] não ouço mais do que a / nítida estrutura». Mozart «fingia escravizar-se /alegremente»[29] às formas, e por essa razão Sena lhe tange um soneto, um dos únicos textos de Arte de Música que utiliza uma disposição literária canónica[30]. A propósito de Schönberg, grande reinventor da gramática musical, questiona-se o sentido da forma para concluir simplesmente que «[…] não há sentido em dar sentido / a uma estrutura musical, já que o sentido / é ele mesmo a sequência falsa que não significa»[31].

Seguindo a mesma linha argumentativa, tecem-se reflexões sobre o discurso musical e a sua expressão de base matemática que «no abstracto busca / ad infinitum combinações possíveis bem que ilimitadas»[32], remetendo para a inserção da música no quadrivium medieval e para a exploração combinatória postschönberguiana[33]. A propósito de Bach, evoca-se também a proporcionalidade harmónica, e uma das teorias fundamentais da história da música – a da harmonia das esferas: «tudo soa como a própria liberdade dos acasos lógicos / que os grupos, e os grandes números, e as proporções / conhecem necessários»[34].

Além da forma – das combinatórias e da proporcionalidade –, a poética seniana insiste em questões relativas à expressão musical, seguindo, uma vez mais, a estética de Hanslick. Acerca de Haydn, refere-se que «pensar, em música, seria mentir tranquilamente»[35], dado que as ideias representadas «são sobretudo, e em primeiro lugar, puramente musicais»[36]. Em vários poemas se manifesta a incapacidade de verbalizar o que é musical, a impossibilidade de exprimir o que é mostrado pelos sons, já que «A música é, diz-se, o indizível». O caráter inefável[37] não a impede, ainda assim, de assumir uma dialética argumentativa interna[38] e de evocar universais da linguagem[39]. A música existe, deste modo, para se interrogar a si mesma, «E porque se interroga e não a nós, / ela se justifica e justifica / o próprio interrogar com que se afirma»[40]. Sendo autorreferenciais, os signos resultam de tensões dialéticas intrassígnicas, criando-se a si mesmos[41] e ao mistério[42], em combinatórias onde formas e tempos se organizam.

b) Organização interna e tempo

É preciso aprender a amar o irreversível[43].

Arte de Música analisa a disposição discursiva musical, e a ordenação temporal dos signos no interior de diversas formas. A escuta informada seniana salienta uma dupla temporalidade inerente à organização dos sons: por um lado, o carácter contínuo, o fluxo sonoro, seguindo a conceção bergsoniana da melodia como exemplo de fluidez[44]; e, por outro, a valorização do instante, de acordo com o exaiphnès platónico[45] e com os princípios de Bachelard[46]. A música «não perdura: / é instante que perpassa […] em sopros sucessivos que se extinguem»[47]. Nesse efémero, o som abre-se para um espaço-tempo einsteiniano[48], como no «Concerto Brandenburguês, nº1» de Bach, «[…] neste espaço-tempo / que se desenha espaço», ou em Schönberg, «num repetir-se dos acordes que / se vão do espaço-tempo renovando»[49].

O presente sonoro torna-se, assim, num conjunto de instantes quadridimensional, associando as perspetivas de Platão, Bachelard ou Einstein. Simultaneamente, este tempo físico pode sequenciar-se num tempo psicológico bergsoniano[50], fluido e contínuo, associando música e água[51] ou música e vida: «apenas o fluir da música nascida / de não fluir mais nada que não seja a vida»[52].

A sucessão do fluxo sonoro coloca ainda questões intramusicais, como a da repetição, uma das técnicas de escrita mais recorrentes em música e em poesia[53]. Como bem refere José Gil, a reiteração é sempre uma «repetição complexa»[54], uma vez que os signos musicais, pelo seu carácter eminentemente temporal, pressupõem em permanência uma linha cumulativa de acontecimentos sonoros. Nessa linha, deparamo-nos com a impossibilidade de repetição, de reiteração idêntica. O regresso implica novidade, diferença, pois «[…] nada no mundo, / ainda que volte ao tema inicial, repete»[55].

A irrepetibilidade dos sons aponta para um dos fundamentos técnicos da escrita musical, e para uma das temáticas convergentes em Arte de Música – a possibilidade de memorizar signos. A música, mas também a literatura, organizam-se em discursos que jogam de modo constante e hábil com as capacidades da memória dentro da própria obra, ou em diálogo com outras obras através de referências, citações ou paródias. Sobretudo até ao início do século XX, e mesmo posteriormente, a gramática musical baseia-se na perceção e no reconhecimento de temas, melodias, Leitmotiven, que compõem formas, como a sonata ou o concerto[56]. A disposição sígnica tece-se a partir das potencialidades de identificação dessas sequências pelo ouvinte.

A própria poiesis intersemiótica seniana resultará de um processo de rememoração, já que a transdução literária é escrita a partir de evocações essencialmente recordadas. Em Metamorfoses, ao lado dos poemas, figuram reproduções fotográficas das obras artísticas transduzidas. No caso de Arte de Música, as memórias musicais são indicadas no final, com referências que Jorge de Sena nos faculta com imensa precisão, como guias hermenêuticos[57].

Os textos transduzidos constroem-se na rememoração de experiências artísticas e musicais, numa ressonância onde coexistem e se sobrepõem vários tempos. Em Arte de Música, um dos melhores exemplos de justaposição dialética de temporalidades surge em «Wanda Landowska tocando sonatas de Domenico Scarlatti», que funde os tempos da vida do compositor com os da performance, e com os da receção musical: «Ouço-a tocar estas sonatas / anos depois que já está morta, / e mais de duzentos anos / depois que Domenico morreu». Momentos breves que, de modo paradoxal, se prolongam na «vida», na «nossa humanidade»[58], através das sonatas de Scarlatti, das gravações de Landowska, ou do texto seniano. O poema emerge, assim, como elemento culminante de uma cadeia semiótica, resultante de uma mediação entre a receção musical e a tenção poética.

c) Receção musical e tenção poética

[…] o que se ouver de tanger, se tanja algum tãto de vagar,
& não com pressa, mas muito a compasso[59].

Na abertura de Arte de Música, o momento genésico da poiesis seniana é associado à audição de La Cathédrale engloutie de Debussy no rádio Pilot da avó[60]. O prelúdio desenha o ressurgimento da catedral de Ys das águas, com pinceladas referenciais que evocam o canto gregoriano medieval, ambiente sonoro daquele espaço sagrado. No fim do prelúdio, a catedral volta a ser engolida pelas águas, com uma coda que retoma a sonoridade do início, numa visão cíclica do tempo, em que o final retoma o princípio. Esse exaiphnès auditivo terá desencadeado a poiética de Sena a partir de um estímulo sonoro: «Música literata e fascinante, / nojenta do que por ela em mim se fez poesia»[61]. E será este o princípio da transdução de Arte de Música: a tenção poética de memórias auditivas, que emergem de silenciosas recordações musicais[62]. Tal como a «[…] música / não é silêncio, mas silêncio que / anuncia ou prenuncia o som e o ritmo»[63], também a escrita seniana resultará de ressonâncias que ecoam num espaço-tempo silencioso e pregnante. Silêncio imbuído de memórias musicais que a palavra romperá.

A experiência auditiva do prelúdio de Debussy revela a potencialidade da música para provocar efeitos em quem a escuta: «Como perdoarei / aquele momento em que do rádio vieste […] / nunca mais pude ser eu mesmo»[64]. Também o texto «Ainda as Sonatas de Domenico Scarlatti, para cravo» parece resultar de uma apropriação empática dos signos musicais: «Nesta percussão tecladamente dedilhada […] há uma ocasional melancolia que não sei / se é do compositor, se de quem toca, se de mim»[65]. Ainda assim, a perspetiva musical seniana mantém-se autorreferente. A música constrói-se de si para si mesma, sendo possível projetar nela vivências, emoções ou construir mundos reais ou imaginários. Os efeitos musicais e a empatia do ouvinte são aqui justificados pela transição de uma perceção fenomenológica para uma fusão ontológica. A experiência auditiva suspende a realidade, torna idênticos «real e virtual», anula o ser-ouvinte («o quem ouve») e converte-o no ser-som («quem é»). A audição tange esta passagem, a ponto «[…] de nós / não sermos mais o quem ouve, mas quem é? A ponto de / nós termos sido música somente?»[66]. O ouvinte deixa de se situar no espaço exterior, fundindo-se com o som e integrando-o. De sujeito de escuta passa a ator vibrante, espaço acústico, corpo sonoro. Torna-se música. No processo físico de transmissão, o ser ontologicamente ressoante pode prolongar os sons de uma peça musical, ou converter-se ele próprio em criador de ritmos e de musicalidades.

O corpo surge, na obra de Jorge de Sena, como instrumento percutivo, sonoro, rítmico, vibrátil. Uma sensualidade musical presente nos sonetos a Afrodite Anadiómena ou no poema X de The evidences, com a «crepitante música tangida, / Húmida e tersa, na sangrenta lida / Que a inflada ponta penetrante trila»[67]. Uma componente rítmica bem patente noutras obras, como em O indesejado, ao citar Bülow: «In the beggining was rhythm»[68]; ou em The evidences: «Do ritmo ouvindo o cadenciar perfeito»[69]. A música é essencialmente ritmo e vibração, acompanhando a perspetiva do sátiro Mársias na sua disputa contra Apolo[70]. Nessa visão percussiva, é fisicamente contagiante, sedutora, arrebatada e sensual. Uma sensualidade vivida ou apenas ansiada, como em «A morte de Isolda», na «fluidez contínua de um tecido vivo / que se distende arfando como um longo sexo»[71].

Simultaneamente, a posição de Apolo não é negligenciada, aquando da análise de transduções musicais realizadas a partir de textos literários, em óperas ou em canções. «Ouvindo poemas de Heine como “Lieder” de Schuman» surge como exemplo de semantização perfeita entre as duas artes: «Nunca talvez tão grande poesia encontrou sua grande música / assim». A palavra poética, sublimada pelos sons, pode conter «a vida inteira numa voz e num piano»[72]. A transdução musical pode ainda elevar poemas de «sentimentalismo vácuo, / sem nenhuma categoria que os dignificasse», como nas «Canções de Schubert sobre textos de Wilhelm Müller», realizando o «milagre […] de a música dizer o que / as palavras apenas indicavam ou escondiam»[73].

Quer a música insista nas características apontadas por Mársias, quer sublinhe as de Apolo, a escrita seniana não perde a pele, e envolve o ouvinte na receção musical e na tenção poética. Em Arte de Música, a memória dessas ondas sonoras, plenas de tensões e de distensões, será metamorfoseada num ensaio musical em forma de poema, que enleia o leitor na semiose, como corda vibratória e percussiva tecla.

Coda – tenção e (in)tensão

«gruta povoada de ressonâncias»[74].

Arte de Música é uma tenção ensaística para poema. As obras musicais desvelam-se em «Apenas como que»[75], numa (in)tensão wittgensteiniana entre mostrar e dizer. Procuram «mostrar por música»[76], indicando o como se fosse e não o é, apontando caminhos, alusões, sugerindo vias. Os sons espraiam-se procurando capturar algo que sempre escapa e para o qual será essencial criar um «terceiro ouvido» nietzschiano[77], para escutar os tempos e os espaços abertos pelos signos.

Nesta arte da escuta, as sonoridades exteriores das obras musicais continuarão a ressoar numa auris interior agostiniana[78]. Abre-se um espaço-tempo de escuta pregnante, para percecionar e apreender a música, assimilando-a à própria consciência interna do tempo[79]. Silêncio interior, que se urde em tensões e distensões, como as das cadências sonoras. Da dialética da escuta interna, emana o poema, resultado de uma rememoração, e de uma transdução intersemiótica das ressonâncias musicais, a partir de esclarecidas reflexões musicológicas.

Jorge de Sena tece um ensaio a partir da sua própria premissa de falar poética e tecnicamente de música, transduzindo-a na sua complexidade sígnica, organizacional, hermenêutica ou enunciativa. Ainda que refira repetidas vezes que a essência da música se mantém inacessível ao dizer[80], esse caráter inefável não o impede de compor em palavras, já que «o indizível não é da natureza de um interdito. É antes de mais o horizonte sobre o qual se desenha qualquer discurso»[81].

Cria-se assim um ensaio poético sobre música, arte que dispõe os sons em formas – intrincados labirintos em rede em interconexão com o universo. E porque «a forma infinita só é recebida em modo finito»[82], os textos senianos mostram a complexidade musical no seu potencial ilimitado, já que «Quando, no fim, / aquele tema torna não é para encerrar / num círculo fechado uma odisseia em teclas, / mas para colocar-nos ante a lucidez / de que não há regresso após tanta invenção»[83].

Tenção poética sobre música, que busca incessantemente a tónica, sem querer resolução.

NOTAS

1 A partir do século XVIII, o termo passou a usar-se apenas para os instrumentos de corda, mas anteriormente era aplicado aos instrumentos de tecla, como o mostra Tenção – Arte de música de João da Costa de Lisboa; Seleção e transcrição de Cremilde Rosado Fernandes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Portugaliae Musica, 1963, que inclui música para tecla composta em meados do século XVII, ou o prólogo de Manoel Rodrigues Coelho, Flores de Musica pera o instrumento de Tecla, & Harpa. Lisboa: Na officina de Pedro Craesbeeck, 1620, que utiliza o termo aplicado a instrumentos de tecla. Rodrigues Coelho autodesigna-se «tangedor de Tecla» da Real Capela de Lisboa.

2 The Evidences. A bilingual edition. Santa Barbara: Center for Portuguese Studies, University of California, 1994, p. 36 (X).

3 Antigas e novas andanças do demónio. Lisboa: Edições 79, 1978, p. 51.

4 Sinais de fogo. Edição organizada por Arnaldo Saraiva. Lisboa: Edições 70, 1978, p. 53.

5 Fidelidade. Lisboa : Morais Editora, 1958, p. 80.

6 «A música é só música, eu sei» in Arte de música in Poesia II. Lisboa: Edições 70, 1988, p. 170.

7 Insistiremos na diferença entre dizer e mostrar, tal como é descrita por Wittgenstein: «Fundamental é a teoria do que pode ser dito (gesagt) pelas prop[osições], i. e., pela linguagem (e, o que no fundo é o mesmo, do que pode ser pensado) e daquilo que não pode ser expresso pelas prop[posições], mas somente mostrado (gezeigt)» (Notebooks 1914-16. Anscombe & Wright (org.). Chicago: Univ. of Chicago Press, 1983, p. 71; nossa tradução).

8 Arte de Música foi publicado em 1968, reeditado dez anos mais tarde com o acrescento de novos textos, e, em 1988, incluído na compilação Poesia II. Relativamente às diferentes versões das três edições, consultar o artigo de João Rui de Sousa, «A arte da música na poesia de Jorge de Sena» in Jorge de Sena, vinte anos depois. O colóquio de Lisboa, outubro de 1998. Lisboa: Edições Cosmos, Câmara Municipal de Lisboa, 2001, pp. 43-49.

9 Arte de Música, op. cit., p. 208.

10 Corresponde à «transformação, ou mudança de hua pessoa em outra forma», Metamorfoses, op. cit., p. 55.

11 Recorrendo à terminologia de Peirce, a obra a metamorfosear converte-se no objeto de base de uma relação triádica, objeto esse que os signos linguísticos metamorfosearão em poema, dando origem a novos interpretantes e, por sua vez, a novas criações. Veja-se esta relação triádica: «§4. 303 Signo. Algo que determina outra coisa (o seu interpretante) para se referir a um objeto a que ele próprio se refere (o seu objeto) da mesma forma, tornando-se o interpretante por sua vez num signo, e assim ad infinitum» in Charles S. Peirce, Collected Papers. C. Hartshorne & Paul Weiss (orgs.). Cambridge (Mass.): Harvard University Press, 1960; nossa tradução.

12 «Em sentido lato, a transdução literária abarca fenómenos tão diversos como a tradição literária, a intertextualidade, a influência, a transferência intercultural, etc. as actividades de transdução incluem a incorporação de um texto literário (ou qualquer parte dele) num outro texto, transformações de um género noutro (romance em peça de teatro, argumento cinematográfico, libreto, etc)» in Lubomir Dolezel, A Poética Ocidental. Prefácio de Carlos Reis. Tradução de Vivina de Campos Figueiredo. Lisboa: FCG, 1990, 273.

13 Metamorfoses, op. cit., pps. 72, 73, 111, 127, 133, 141 e 142. A variatio é um dos processos de Escrita mais fecundos em literatura e em música. O termo abrange um princípio de produção textual, baseado na transformação de um material sonoro, e um certo número de formas de expressão elaboradas com base neste princípio e constituídas, em geral, de um tema e de uma série de transformações deste tema. Apesar de ser um processo utilizado em literatura, tornou-se sobretudo numa técnica de criação musical, a partir do séc. XIX.

14 In Metamorfoses, op. cit., pp. 145-149.

15 Veja-se na literatura portuguesa, o movimento PO-EX e as obras de Ana Hatherly, Melo e Castro e M. S. Lourenço, a ele associadas, ou o concretismo brasileiro de Haroldo de Campos. Não esqueçamos que Jorge de Sena chegou ao Brasil em 1959, num momento de grande vitalidade da poesia experimental e concreta de um lado e do outro do Atlântico. Os quatro sonetos foram publicados pela primeira vez em 1962, no nº2, do 2º trimestre da revista brasileira de vanguarda, Invenção, dirigida precisamente por Décio Pignatari.

16 Por exemplo: Anósia, Urânia, Amátia, Áres, Hefáistos, Adonísio, mas também «veste», «teia», «pedipeste», «andrófona», «basilissa» in Metamorfoses, op. cit., pp. 145-149.

17 «Post-fácio (1963)» a Metamorfoses, op. cit., pp. 151-159, p. 159.

18 Idem.

19 Há outros exemplos esparsos, como «Escurobscuro cendriplúmbeo e vento» in Sobre esta praia… eight meditations on the coast of the Pacific. Translation by Jonathan Griffin. Santa Bárbara: Mudborn Press, 1979.

20 «A Moraes vai publicar o meu novo volume de Metamorfoses poéticas, inteiramente dedicado a obras musicais e compositores. Se a crítica analfabético-lusitana ficou engasgada com o livro anterior, vai ficar pior com este – dado que a cultura poética da gente musical é reduzida, e vice-versa». [carta de Sena, 9/1/1968] in Sophia de Mello Breyner e Jorge de Sena, Correspondência 1959-1978. Lisboa: Guerra & Paz, 2010, 3ª edição, p. 112.

21 «[…] acabo de mandar para Lisboa (à Morais) o meu próximo livro de poemas, Arte de música […]. Os nossos literatos e poetas vão ficar agoniados de tanta cultura artística» in Eduardo Lourenço e Jorge de Sena, Correspondência. Organização e notas de Mécia de Sena. Lisboa: Imprensa Nacional Casa de Moeda, 1991, p. 57.

22 Arte de Música, op. cit., p. 205.

23 Na Ética a Nicómaco, Aristóteles afirma que a ars consiste num «sistema de regras extraídas da experiência, mas depois pensadas logicamente, que nos ensinam a maneira de realizar uma acção tendente ao seu aperfeiçoamento» (Trad. António Castro Caeiro. Lisboa: Quetzal Editores, 2006: 6,4). Quintiliano considera que se trata de «uma faculdade que chega a um efeito através de um método» (La Formazione dell’Oratore. Introduzione di M. Winterbottom. Traduzione di S. Corsi. Milano: BUR, 2001, Vol. 1, p. 413; nossa tradução).

24 Arte de Música, op. cit., p. 208.

25 Theodor Adorno, «Fragments sur les rapports entre la musique et le langage» dans Quasi una fantasia, 1963, traduction française chez l’éditeur. Paris : Gallimard, 1982, p. 3-8; nossa tradução.

26 Arte de Música, op. cit., p. 209.

27 Eduard Hanslick, Do Belo Musical. Tradução de Artur Morão. Lisboa : Edições 70, 1994, p. 42.

28 Arte de Música, op. cit., p. 170.

29 Idem, p. 166 e 177, respetivamente.

30 Cleonice Berardinelli já sublinhara este facto in «Revendo e relendo Jorge de Sena» in Gilda Santos (org.), Jorge de Sena : ressonâncias e cinquenta poemas. Introdução e organização de Gilda Santos. Rio de Janeiro: 7 letras, 2006 (pp. 13-31), pp. 19-20.

31 Arte de Música, op. cit., p. 201.

32 Idem, p. 170.

33 As disciplinas do trivium (gramática, retórica e dialéctica) e do quadrivium, que formavam o grupo das sete artes liberais, constituíam o currículo universitário medieval, localizando a música no quadrivium a par da aritmética, geométrica e astronomia cf. Dan Lustgarten (org.), Quadrivium. Musiques et Sciences. Paris: Éditions IPMC, La Villette, 1992. A partir do dodecafonismo, enfatiza-se a componente combinatória no processo de composição. Por exemplo, cf. Albino Lanciani, Mathématiques et Musique. Paris: Million, 2001.

34 Arte de Música, op. cit., p. 170. Sobre a música das esferas há uma vasta literatura na Antiguidade. Os passos mais importantes são: Platão, República, 617b; Cícero, De Republica, 9, 5; Quintiliano, Institutio Oratoria, I, 10, 22. A noção era bem conhecida dos autores dos séculos XVI e XVII através do comentário de Macróbio, primeiramente publicado em 1472 por Nicolaus Jenson. Subsistirá na teoria musical portuguesa do século seguinte como o comprova Francisco Inácio Solano: «E se a Astronomia nos ensina os movimentos das Esferas, as Proporções, que ellas contém, as Consonancias, e concento Musico, que fórmão; a Musica he o verdadeiro Transumpto dessas mesmas Consonancias, concento e Proporções» (Dissertação sobre o Carácter, Qualidades, e Antiguidades da Música. Lisboa: Regia Officina Typografica, 1780, p. 7).

35 Arte de Música, op. cit., p. 175.

36 Hanslick, op. cit., p. 25.

37 A propósito, ver, por exemplo: Vladmir Jankélévitch, La Musique et l’Ineffable. Paris : Seuil, 1983.

38 Como exemplos: «Esta conversa harmónica que inventa / as próprias frases» ou «São contra a morte, ou contra a vida, as vozes / que tão fugatamente desconversam?» in Arte de Música, op. cit., p. 167 e 168.

39 «[…] a quintessência depurada / de uma estrutura que se consentiu / todo o significar a que as palavras vieram / da analogia nominal e mágica / até à consciência dos universais?» in Arte de Música, op. cit., p. 182. A propósito dos universais em música: Catherine Stevens and Tim Byron, «Universals in Music Processing» in Susan Hallam, Ian Cross and Michael Thaut (ed.), The Oxford Handbook of Music Psychology. Oxford: The Oxford Handbook, 2016 (2nd edition), part 1.

40 Arte de Música, op. cit., p. 182.

41 «[…] criar não basta / senão se for criado assim do nada», op. cit., p. 167, ou «Felizes estes homens [como Haydn] que podiam escrever da criação», op. cit., p. 175.

42 «[música] insondável.», op. cit., p. 177; «Se há mistério na grandeza ignota, / e se há grandeza em se criar mistério, / esta música existe para perguntá-lo», op. cit., p. 182.

43 Etienne Klein, Les tactiques de Chronos. Paris : Champs sciences, 2009, p. 216 ; nossa tradução.

44 «Quando ouvimos uma melodia, temos a mais pura impressão de duração que poderíamos ter» (Bergson, La Pensée et le mouvant. Genève : Skira, 1946, p. 160; nossa tradução).

45 De acordo com Platão, o instante é um «ponto-fonte primitivo», indivisível e inextenso, sem comportar um mínimo de duração (cf. Parménides. Introdução de José Trindade Santos. Tradução e notas de Maria José Figueiredo. Lisboa: Instituto Piaget, 2001, 156d).

46 «A duração é metafisicamente complexa» (Gaston Bachelard, Fragments d’une poétique du feu. Paris : PUF, 1988, p.48) ou «O fio do tempo está coberto de nós. E a fácil continuidade das trajetórias foi completamente arruinada pela microfísica» (id.: 67; nossas traduções).

47 Arte de Música, op. cit., p. 168.

48 «A base de todos os eventos já não é o tempo unidimensional e o espaço tridimensional, mas o contínuo espaço-tempo quadridimensional» (Einstein & Infeld, L’évolution des idées en physique. Traduit de l’anglais par Maurice Solovine. Paris : Champs sciences, 1983, p. 276; nossa tradução).

49 Arte de Música, op. cit., p. 169 e 200.

50 Em resposta a Bergson, Einstein conciliou as duas perspetivas temporais, ao referir o seguinte: «Não há um tempo dos filósofos; há um tempo psicológico diferente do tempo dos físicos» (Ata de 6/4/1922 da Sociedade francesa de filosofia in La Pensée, nº 210, fevereiro-março de 1980, p. 22; nossa tradução).

51 Como na Water music de Händel e na fluidez da música de Satie in Arte de Música, op. cit., pp. 171 e 198.

52 Idem, p. 168, ou «É isto a vida: algo que se ouviu / num timbre momentâneo e sobreposto», idem, p. 190.

53 Aliás, «a propriedade fundamental e comum da linguagem musical e da linguagem poética é a repetição» (Nicolas Ruwet, Langage, musique, poésie. Paris : Seuil, 1972, p. 10).

54 In prefácio a Gilles Deleuze, Diferença e repetição. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado. Lisboa: Relógio d’Água Editores, 2000, p. 36.

55 Arte de Música, op. cit., p. 171.

56 Ivanka Stoïanova sublinha este ponto como fundamental para a criação das formas musicais (cf. Manuel d’Analyse musicale. Paris : Minerve, 2000, pp. 8 e 21).

57 Vejam-se as indicações extremamente minuciosas sobre as obras e interpretações de referência incluídas no final de Arte de Música, op. cit., pp. 223-231.

58 Arte de Música, op. cit., p. 173. A própria ilusão de que o tempo passa se deve ao caráter irreversível de termos memória (cf. Thibault Damour, Jena-Claude Carrière, Entretiens sur la multitude du monde, Paris, Odile Jacob, 2002, p. 52).

59 Manoel Rodrigues Coelho, op. cit.: prólogo.

60 Arte de Música, op. cit., p. 165.

61 Idem, p. 166.

62 Aliás, de acordo com Husserl, a melodia percecionada e memorizada surge como o exemplo privilegiado de uma rememoração (Edmund Husserl, L’idée de la Phenoménologie. Paris: PUF, 1985, § 14).

63 Idem, p. 170.

64 Idem, p. 165.

65 Idem, p. 174.

66 Arte de Música, op. cit., p. 171.

67 The evidences, op.cit., p. 36, ou os sonetos de Afrodite Anadiómena in Metamorfoses, op. cit., pp. 147-149.

68 O indesejado. Tragédia em 4 actos, em verso. Porto: Livraria paisagem, 2ª edição, 1974, p. 175.

69 The evidences, op.cit., p. 42.

70 Apesar de se centrar numa aposta e disputa musical entre a música sensual e rítmica de Mársias, oposta à música sábia e ligada ao texto literário de Apolo, o tema foi amplamente glosado na pintura, com Michelangelo Anselmi (1540) ou o célebre «Esfolamento de Mársias» de Ticiano (1570), ou Guido Reni (1620-25).

71 Arte de Música, op. cit., p. 187.

72 Idem, p. 185 e 186.

73 Idem, p. 183.

74 Expressão de Sophia de Mello Breyner numa carta de 18/11/1969, sobre a criação poética de Jorge de Sena dirigida ao autor in Correspondência 1959-1978, op. cit., p. 117.

75 Arte de Música, op. cit., p. 168.

76 Idem, p. 188.

77 Friedrich Nietzsche, Par-delà le Bien et le Mal. Traduction d’Angèle Kremer-Marietti. Paris : Poche, §246.

78 Santo Agostinho, Confissões. Tradução de Arnaldo do Espírito-Santo, João Beato e Maria Cristina Pimentel. Introdução de Manuel Barbosa Freitas. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2001, §XI, VI, 8.

79 Para Husserl, a perceção de uma melodia encontra-se associada à consciência interna do tempo cf. Von Hermann, Agostino e la domanda fenomenologica sul tempo. Traduzione italiana di Donatella Colantuono. A cura di Costantino Esposito. Bari: Edizioni di pagina, 2015, p. 111.

80 Como o evidenciam: «Ante um caderno, tentei dizer tudo isso. Mas/ só a música que comprei e estudei ao piano mo ensinou / mas sem palavras.»; ou «Da música ao sentido, que palavra / preenche o vácuo de silêncio […]?» in op. cit., p. 165 e 189.

81 Christian Doumet, L’île joyeuse: sept approches de la singularité musicale. Paris: PUV, 1997, p. 17.

82 Nicolau de Cusa, A Douta ignorância. Trad., introdução e notas de João Maria André. Lisboa: FCG, 1997, II, ii.

83 Arte de Música, op. cit., p. 171.