Três Lições: Testemunhos para a Dignidade Humana

Neste artigo, Paulo Jorge analisa Metamorfoses, mais especificamente o poema “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”, pondo em diálogo o texto seniano e os quadros do pintor espanhol, destacando questões como a opressão, a resistência e os direitos humanos.

Paulo Jorge Augusto Matos
Universidade do Porto

Quando, em 1977, apresenta o “Prefácio” a Poesia II, Jorge de Sena adianta a essência de Metamorfoses (cuja primeira edição data de 1963). Nesse texto introdutório, Sena destaca o que lhe parece ser mais fulcral: a “carga estética e histórico-social, e humana sobretudo” (1988: 12) dos poemas que constituem a obra, os quais se destinam a permitir que os leitores menos informados compreendam a liberdade, a justiça e a dignidade humanas, valores pelos quais o poeta sempre lutou em prosa e verso, confessa nesse momento (idem: 14).

Estes poemas, nascidos da escultura, da pintura, da arquitetura, da fotografia, até, resultam do já então remoto interesse do autor, apaixonado por Arte, em transpor para a poesia outras manifestações artísticas. Mais do que transpor, importa-lhe sobretudo “meditar poeticamente” (idem: 151), afirma no “Post-fácio – 1963” de Metamorfoses. Ou seja: é-lhe cara a historicidade das obras de arte naquilo que carregam da índole humana. Sena afirma que essa “historicidade da natureza humana” (idem: 152) é comovente, porque resulta das vivências de homens cujos exemplos são eternos:

Eu sei que os povos só valem como humanidade, nunca valeram como outra coisa. E a alegria que sinto […] não provém de esta ser milenária, estranha, distante, bárbara ou requintada, mas sim de eu sentir em tudo, desde as estátuas aos pequeninos objetos domésticos, uma humanidade viva, gente viva, pessoas, sobretudo pessoas. (ibidem)

Luís Adriano Carlos refere que “Metamorfoses e Arte de Música representam momentos de articulação superativa dos regimes testemunhal e circunstancial: o poeta testemunha e interroga o sentido criador da humanidade na circunstância da fruição de objetos estéticos, plásticos e musicais” (1999: 120). Mais adiante, o ensaísta acrescenta: “O testemunho não implica outra coisa senão a ‘atenção expectante’ que mantém a poesia desperta para o mundo” (idem: 122).

Na perspetiva de Sena, porém, o imprescindível para poetizar não se prende tanto com o tipo de objeto plástico de onde parte; liga-se, antes, à mensagem que a obra de arte pretende transmitir às gerações vindouras. Nesse sentido, diz que a Poesia tem um papel didático e, por conseguinte, transformador do mundo: “a poesia pretende ser, ela mesma, o lá onde se transforma o mundo, e, portanto, a quem a lê ou ouve, ensina algo de novo” (1988: 156). A despeito de os poemas de Metamorfoses serem considerados “ensaísmo literário, meditações moralísticas, impressionística crítica de arte” (ibidem), Sena inscreve neles ensinamentos, numa poética de “crítica da vida” (idem: 157), já que não lhes nega (nem, no seu entender, a toda a Poesia) a inexistência da meditação moral “num sentido escatológico, de inquirição aflita sobre as origens e os fins do Homem” (ibidem). Não nos parece, no entanto, que com o termo “escatológico” Sena se referisse ao fim dos tempos, procurando, sim, designar o futuro da Humanidade e os objetivos últimos da manutenção da sua dignidade, como prova das sucessivas metamorfoses conducentes à sua imortalidade – “a celebração e a glorificação poética do triunfo humano”, segundo Luís Adriano Carlos (1999: 189) –, porque “é pelo rosto e pelos seus gestos, e pelo que [o Homem], com o olhar transfigura [sic], que podemos, interrogativamente, incertamente, inquietamente, angustiadamente, conhecer-lhe a vida. E, se não fora a poesia olhando a História, nenhuma vida em verdade conheceríamos, nem a nossa própria” (Sena 1988: 157). Nesse olhar, nesse poder da visão, Sena radicará a procura do conhecimento. Na verdade, a poesia seniana baseia-se numa visão múltipla (Carlos 1999: 35) da realidade que a absorve para se tornar “numa atitude enunciativa visualizante” (idem: 37), “estrutura que faz ver” (idem: 39). Isto é: pela visão do mundo, a Poesia torna-se consciência do poeta sobre a realidade, uma vez que invoca para os seus poemas a sua reflexão sobre o meio envolvente, numa atitude que Luís Adriano Carlos descreveu como “a reflexão da consciência [a] transformar-se em consciência da reflexão” (ibidem).

Todavia, no critério de cronologia histórica usado para ordenar os poemas de Metamorfoses, este pensar o mundo leva Sena a negar, no posfácio em causa, a para ele detestável e repugnante “existência da intemporalidade da experiência humana” (Sena 1988: 155). Como veremos, o poeta nem sempre cumpriu essa negação. Em “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”, por exemplo, tirará de um caso histórico particular uma lição de universalidade. O mesmo acontecerá noutros poemas, sobretudo quando assume que eles “são líricos, integrados numa estrutura épica” (idem: 159). Ora, o valor epopeico de um texto, sabemo-lo, assenta num assunto grandioso, heroico, pelo que Sena ter-se-á obrigado como poeta a cumprir “uma fidelidade a uma visão do mundo” (idem: 160) baseada na meditação poética. Rebelando-se contra a falta de “tradições especulativas e culturais” (idem: 155) na poesia de língua portuguesa, espera ultrapassar o “mero registo impressionista ante uma obra de arte” (idem: 156), preferindo “especular emocionalmente para além das obras, com a emoção complexa de um espírito culto, para quem a História tem de estar presente na compreensão da própria e pessoal humanidade com a qual lhe é dado compreender a dos outros” (ibidem).

Uma das práticas da poesia anglo-saxónica adotada por Sena, no que ela assume de “abertura a novos diálogos e novos encontros estéticos” (Avelar 2006: 15), tem que ver com a interação comunicativa entre a poesia e as artes visuais, nomeadamente no que diz respeito à écfrase. Luís Adriano Carlos refere que a poesia de Sena assenta na tradição clássica do dito de Simónides “Poema pictura loquens, pictura poema silens”, exatamente porque é possível encontrar correspondências entre os poemas e os objetos plásticos que os inspiraram. Todavia, existem certas tensões nessas correspondências: “O poema move-se em torno do objeto plástico, mas realizando uma órbita irregular, digamos elítica” (Carlos 1999: 195). Há, pois, a necessidade de os poemas se fazerem acompanhar da reprodução da fonte inspiradora, a fim de o leitor compreender mais eficazmente a transposição da totalidade ou de parte do conteúdo temático de um medium para outro (cf. idem: 196). Servindo-se da metáfora da translação dos planetas em torno do astro-fonte, o ensaísta acrescenta, com Francisco Cota Fagundes, que essa transposição é antes transporte e adaptação pelos poemas do conteúdo temático dos objetos plásticos, que, vivendo de forma independente, sugam a luz do sol que os ilumina, isto é, os poemas são motivados pelo conteúdo das obras plásticas, não se limitando a ser a sua reprodução verbal.

Efetivamente, os poemas de Metamorfoses são composições ecfrásticas, mas não no sentido em que a ἔκφρασις (ekphrasis) é a descrição de uma pintura ou de uma escultura nem na aceção de Heffernan, que a define como a representação verbal de uma representação visual.[1] São-no antes na medida em que, segundo Clüver, se corresponde à “verbalização de um texto real ou fictício composto num sistema sígnico não verbal” (1996: 42),[2] neste caso, uma verbalização em que a obra de arte não literária motiva reflexões poéticas por parte do autor, as suas “meditações aplicadas” (Sena 1988: 158). A reflexão sobre os objetos visuais “é menos uma representação na superfície de um espelho do que uma refração contínua, uma mediação mediada pela mediação da linguagem poética. Os poemas constituem espaços de produtividade em contraponto, meditações aplicadas” (Carlos 1999: 199). Desta forma, descobrimos o poeta enquanto crítico, condição igualmente inspirada na tradição poética anglo-saxónica. No que importa para este estudo, relembramos o papel do poeta que, pela mediação interartística, reflete sobre o sentido do mundo, procurando o humanismo através da função testemunhal dos poemas. Quer isto dizer que Jorge de Sena desenvolveu na sua poética uma meditação social em que procura instruir o leitor sobre o conhecimento do mundo, ética e moralmente falando, edificando, assim, uma poesia que procura uma sageza universal baseada na humanidade (Cf. Carlos 1999: 237-247).

Exemplo dessa reflexão sobre a condição do Homem buscando a humanidade é a que Sena incute no poema “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”, de Metamorfoses, para cuja criação tomou como base um famoso objeto plástico. Falamos de El 3 de mayo de 1808 en Madrid ou Los fusilamientos en la montaña del Príncipe Pío, de Francisco de Goya, um quadro de 268 cm x 347 cm, pintado a óleo, que fez do pintor uma espécie de pioneiro da reportagem fotográfica. A obra, que constitui um díptico com o quadro El 2 de mayo de 1808 en Madrid ou La lucha con los mamelucos, ilustra uma situação crítica: a repressão de prisioneiros através de uma bárbara execução coletiva.

A nível histórico, o quadro de Goya, que pertence à coleção permanente do Museu do Prado, perpetua um acontecimento trágico da história de Espanha, ocorrido na noite de 2 para 3 de maio de 1808. Nessa madrugada, revoltado contra a ocupação napoleónica, o povo de Madrid, numa atitude instintiva de patriotismo, de luta pela independência do seu país, atacou com pedras, facas e navalhas o exército do comandante Murat, cunhado do Imperador, o qual, de forma desigual, replicou com armas de fogo. Depois de todo um dia de confrontos, a rebelião foi dominada e os soldados franceses cumpriram uma ordem drástica. Como forma de retaliação, fuzilaram, na montanha do Príncipe Pio, nos arredores da capital espanhola, cerca de quarenta resistentes, homens e mulheres comuns. Este massacre nunca foi esquecido, muito menos perdoado. Imerso em raiva e indignação, Goya, uma das supostas testemunhas oculares, ilustrará em tela, seis anos após o sanguinolento acontecimento, a violência desses factos, de uma forma bastante realista, “[p]ara tener el gusto […] de decir eternamente a los hombres que no sean bárbaros” (Serna 1958: 191).

Como consegue o pintor transmitir a sua mensagem? A cena reproduzida, que dá ares de fotografia de reportagem, tem um núcleo de base: uma multidão está prestes a ser fuzilada. Nesse conjunto, destaca-se, iluminado por uma lanterna, uma mancha de luz como que celestial, um homem de calças claras, camisa branca e peito disponível para as balas francas; um homem que, no entanto, de braços abertos, de mãos estigmatizadas, qual Cristo ainda por crucificar mas já sofrido, semelhante a um outro Cristo que jaz diante de si, parece implorar por piedade e compaixão, pedidos que um padre, também ele prestes a ser chacinado, orienta pela prece ao Divino. Num charco de sangue a seus pés, três cadáveres, sobrepostos uns aos outros, contribuem para a atmosfera gélida do quadro: o pincel de Goya espessa realisticamente o vermelho das massas de sangue que quase tocam os carrascos, assim coagulando a matéria pictórica da tela. Diante do condenado que protagoniza o episódio, posiciona-se o pelotão de fuzilamento, máquina de execução, marioneta dos poderosos, desagradável, anónima, pois sem rosto, sem alma, sem vontade própria. Aparentemente, apenas dois dos fuziladores, todavia, apontam a sua arma àquele mártir. Todos os outros soldados dirigem as armas contra as próximas vítimas, os que se seguem ao primeiro grupo de execução e que, em segundo plano, desesperados, atemorizados, apavorados, de mãos nos rostos, escondendo a dor profunda, caminham para a morte inglória, massacrados que serão à queima-roupa, um pouco mais tarde. Segundo Eugenio D’Ors, é esse cenário, gratuita e maquiavelicamente violento, que inquieta o observador:

El resto del pelotón, en un movimento colectivo, dirigido netamente hacia el fondo del cuadro, parece apuntar, no a los que estão a punto de ser ejecutados, pero a los otros, a los que, izados sobre um montículo, no serán ejecutados sino más tarde. Evidentemente, no es la inminente descarga la que se les destina. Este detalle, que, desde el punto de vista puramente anedótico, encierra una contradiction, un ilogismo, es aqui profundamente revelador de un estilo, de una disposición de la sensibilidad, no sólo por el antagonismo de los movimentos, sino por el antagonismo de las intenciones. Es el triunfo de lo multipolar. Oscuramente, el visitante experimenta un choque y la obra se le impone violentamente. (D’Ors s/d: 62-65)

Goya atinge este impulso através de variadas técnicas plásticas. A consciente gradação cromática destaca, primeiramente, o branco da inocência, da pureza dos ideais e da paz de espírito, valores concentrados na camisa imaculada do mártir, a qual se converte na bandeira da denúncia universal contra a guerra. Por seu turno, o amarelo-ocre simboliza a riqueza interior dos prisioneiros face à luta pelos ideais de apego à sua terra. Finalmente, o vermelho revela a coragem, mas também a crueldade da cena, a violência da morte. Estas cores contrastam com o preto da noite sem estrelas, o opaco, representante do medo, da interrupção da vida e da escuridão ideológica dos repressores. Neste sentido, a iluminação do local para onde estão apontadas as espingardas opõe-se à escuridão noturna, o que marca o contraste entre os ideais dos sacrificados – seres lutadores cujas vozes (re)clamam a liberdade – e o obscuro fanatismo ideológico dos militares (por extensão, o dos seus comandantes), aludindo ainda ao ambiente tétrico do pesadelo. Pelo recurso ao chiaroscuro (já não no sentido vinciano original do contorno que serve a noção da tridimensionalidade), corporizam-se as formas e enfatiza-se o dramatismo da situação. Jean-Louis Schefer explica: “Le noir, moins que de l’ombre, [est] une réserve onirique de production des corps. Et ceci: la peinture produit des corps. […] L’ombre éclairée, la nuit blanchie par parties fait venir des corps, non des formes” (apud Milner 2005: 176). Por outro lado, se a clareza dos rostos dos sacrificados marca a valentia da luta pelos objetivos, os rostos obscuros dos atiradores demonstram a maldade da barbárie. Para este jogo de luz e sombra contribui o traço do artista, espontâneo e expressivo, a pincelada livre que não pretende o contorno das figuras. É um pincel dramático, terrífico, evidente, por exemplo, no desenho impreciso da cidade, ao fundo, a qual, parecendo abandonada, pois que a sua população será dizimada, adquire um ar fantasmagórico.[3] Esta ideia do extrassensorial perpassa ainda, e em ligação direta, pelas figuras humanas, na medida em que os inocentes são menos definidos do que os carrascos mortíferos. Estes estão em comunhão com a terra, encarnam a dureza do momento; aqueles, sugere-se, são espíritos a caminho da liberdade da alma, elevados a heróis graças à sua coragem.[4] Ascendendo à glória celestial, as vítimas envolvem-se em eternidade e, logo, em divinização dos valores humanos que representam. Reside aí a intemporalidade da obra goiesca, materializada pela colossal estatura do mártir iluminado (que, de joelhos, não aparenta ser um homem mais alto do que os restantes elementos humanos). Há um jogo entre o físico e o espiritual, em que o primeiro flui no sentido da maior humanidade da personagem que, se, por um lado, se nivela aos soldados na estatura, ou seja, se mostra como um ser semelhante aos seus algozes, por outro lado, o da alma, revela possuir um estatuto superior ao dos outros seres humanos, precisamente porque é o símbolo dessa grandeza de alma que o conduz (como poderia conduzir os demais) ao intemporal.

Goya destaca a brutalidade militar e denuncia a arbitrariedade do poder e da guerra que vitimiza o povo inocente e enfraquecido. A obra constitui-se, pois, como grito silencioso e revoltado contra os opressores. Simultaneamente, em clara anunciação da visão crítica e subjetiva do Romantismo, o pintor aragonês defende o patriotismo e a liberdade, e imortaliza o heroísmo do povo espanhol. Olhemos, assim, esses mártires “desemoldurando- -os da contingência histórica e tomando-os como emissários sem tempo de uma mensagem de dignidade resistente que é de todas as épocas” (Pereira s/d).

Resumindo: Goya, imbuído ainda de um certo espírito das Luzes,[5] não calou a contradição existente entre a ação de Napoleão e a Revolução Francesa, que pugnara, nem vinte anos antes, pelos Direitos Humanos. Buscando um novo entendimento moral do mundo, criou, desta forma, uma das mais perturbantes obras-primas da pintura moderna. Segundo Dino Formaggio, “[l]a storia anonima dei fucilati di ogni rivolta popolare trova in quest’opera la sua impressionante, monumentale epopea” (Formaggio 1951: 123). No pensamento de Xavier de Salas, “[p]ar leur terrifiante beauté, ces scènes sont bien plus qu’une représentation documentaire, elles atteignent à la grandeur” (Salas 1961: 76).[6]

Tendo o quadro de Goya como inspiração poética, num claro jogo de “cadeias de ressonância e de redes de relações” (Carlos 1996: 27) que implica uma profunda competência enciclopédica e intertextual (ibidem),[7] Jorge de Sena escreveu “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya” (1959), composição poética em que o poeta se serve da meditação sobre a realidade, a sua realidade até (a Guerra Fria, a ditadura em Portugal, o seu exílio), para relevar, com uma profunda carga afetiva, “no plano da intelecção do mundo, […] uma discursividade orientada para a captação dos variados e subtis nexos dum real em constante devir” (Vieira-Pimentel 1981: 73). Nesse poema, fica claro o efeito que Sena pretende retirar da sua obra poética, nomeadamente a que subjaz a Metamorfoses: a ação humana como elemento modificador,[8] como fonte metamórfica do mundo, baseada na História, que é um início de que se parte, mas igualmente um fim a que se pretende regressar. Este ciclo é a verdadeira metamorfose, uma vez que, revivendo, recordando, refletindo sobre os exemplos do passado, o Homem poderá reconstruir o seu casulo anímico e renovar-se, aprimorar-se, exceder-se em Bem universal: “Ao [fazer a Arte] comparecer na praça pública das gentes, das ações e dos acontecimentos exemplares, o poeta opta decisivamente pelo Homem e pelo seu esforço transformador. Nas ‘histórias’ que em todos os poemas se dizem é na História que, confusa e atormentada, se procura” (idem: 65).

Nesta ordem de ideias, “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya” foi criado como poema-testemunho, uma “forma de conhecimento e de intervenção num mundo que, neste caso, já foi sujeito a uma elaboração sinuosa” (idem: 68). É a intenção “radicalmente formadora” a que alude Luís Adriano Carlos quando se reporta à(s) intencionalidade(s) da poesia de Jorge de Sena (1999: 124).

O poema-carta é construído, assim, como uma espécie de herança ideológica de um pai para seus filhos, um pai que não lhes exige, exigindo, a continuação do seu património intelectual, pois o mundo em que viverem poderá ser

[…] [u]m simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto,
o vosso anseio, o vosso prazer, o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós. (Sena 1988: 123)

O eu tem, como fica claro, a esperança de que os seus filhos venham a viver num mundo em que tudo seja “simples e natural” (ibidem), em que consigam realizar a sua vontade e expectativas, e em que o respeito entre as pessoas seja uma prática enraizada. Ou, então, desanimado, confessa que “é possível que não seja isto, nem seja sequer isto / o que vos interesse para viver” (ibidem).

Porém, porque não importa esse futuro incerto, porque o fundamental é a função do pai que molda consciências e personalidades, continua o seu propósito de desejar um mundo de liberdade, em que ninguém estrangule a liberdade dos outros e onde seja possível sonhar:

[…] Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo. (ibidem)

Sena apropria-se, então, da verdadeira força anímica do seu poema, esse fogo que luta pela harmonia no mundo, que a História teima em desrespeitar, mas que deveria contribuir para a evolução da Humanidade. Ao afirmar

[u]m dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse “com suma piedade e sem efusão de sangue.” (ibidem),

o sujeito poético enaltece aqueles que, ao longo da História, tiveram as mesmas crenças, os mesmos princípios que ele. Sena continua a sua argumentação, mostrando aos filhos como o “sacrifício” destas pessoas decorre de motivos religiosos, ideológicos, do seu patriotismo, de questões raciais e sociais. Ou seja, apresenta-os àqueles seres superiores que lutaram pela liberdade de religião, pelo direito de opinião, pelo direito à igualdade, sem discriminação, e que, por tal, expiaram fatalmente os seus pecados:

Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. (ibidem)

Neste momento da sua missiva, Sena comemora esses lutadores, exalta a sua força e torna-os eternos, porque para si são heróis de uma epopeia que se repete ao longo dos tempos.[9] Tal como Goya havia feito no seu El 3 de mayo de 1808 en Madrid, Jorge de Sena dá ênfase à imortalidade desses heróis – “Mas também aconteceu / e acontece que não foram mortos. / Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer, / aniquilando mansamente, delicadamente, / por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.” (ibidem) –, estabelecendo a relação ecfrástica do seu texto com o quadro, ao inferir a reação do pintor aos acontecimentos de Madrid, pautados que foram pela violência e pela injustiça. Estrategicamente, Sena só agora focaliza a sua atenção no quadro de Goya (ao contrário do que o título do poema poderia ter feito prever), não para o descrever, rejeitando a écfrase figurativa,[10] mas para, servindo-se da écfrase interpretativa,[11] dele extrair “as correspondentes inferências didático-moralizantes” (Pereira s/d), e relevar, assim, que o pintor não se mostrou indiferente aos fuzilamentos dos populares madrilenos, razão pela qual exigiu de si, como testemunha, uma ilustração pictural dessa violência:

Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya,
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. (idem: 123-124)

Na perspetiva do eu poético, este acontecimento não foi um facto isolado, mas um “episódio breve” (idem: 124) entre muitos outros que marcaram tragicamente a História. Pela referência às atrocidades levadas a cabo na Segunda Guerra Mundial, quando são evocadas as câmaras de gás que vitimaram tantos judeus, por exemplo, o tempo do seu (quase) presente é um tempo intemporal, pois carrega uma carga simbólica universal. Deste modo, Sena reconfigura o tempo, num microcosmo de fim do mundo, não só dependente do caos bélico em que imerge o seu pensamento, mas sobretudo baseado na consequente perda de valores intrínsecos à Humanidade.

É nessa ótica que o locutor pretende dar uma lição de vida aos seus descendentes: ao lembrá-los de que é “nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis) / de ferro e de suor e sangue e algum sémen / a caminho do mundo que vos sonho.” (ibidem), o pai-poeta mostra como, malgrado o horror histórico retratado por Goya, ele é apenas um dos variadíssimos episódios da imensa cadeia de crueldade e injustiça humanas de que os seus interlocutores (sejam eles os filhos ou os leitores) fazem igualmente parte, porque são humanos e, como tal, não devem, não podem, abstrair-se da sua condição. A referência metafórica ao sangue e ao sémen valoriza a capacidade de esses destinatários revivificarem os valores humanos que tanto o poema quanto o quadro pretendem preservar. Fica, pois, o esclarecimento de que é possível protegerem e transmitirem às gerações vindouras os ensinamentos que a História vai adquirindo a partir dos erros passados, cuja anulação é o alvo a atingir. O onírico que encerra os versos de ensinamento envolve o poema numa certa vidência do poeta, que, abraçando a imaginação, se esforça por iluminar a mente dos seus destinatários com a visão de um mundo ideal que poderão ser eles a edificar.[12] É um ver ao longe que “faz vibrar o mundo” (Carlos 1999: 70) e que se inscreve, assim, na poética do testemunho que Sena advoga: aquela em que a poesia, “orientada para a ilustração dos mais altos valores humanos” (idem: 83), pelas suas funções educativa e revolucionária, é motor transformador do mundo.[13]

De imediato, o eu poético passa à reflexão, apelando ao valor da vida humana:

Acreditai que a dignidade em que hão de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
– mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga –
não hão de ser em vão. (Sena 1988: 124)

Interroga-se, seguidamente, sobre a importância do sacrifício, confessando não ter bem a certeza se ele valerá a pena. Acaba por reafirmar a sua crença no valor supremo da vida ao concluir que talvez as muitas mortes não tenham resolvido o “horror de tantos séculos / de opressão e crueldade” (ibidem) e não tenham possibilitado a implementação do amor entre os homens:

[…] Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objeto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam “amanhã”. (ibidem)

No fim do poema, o sujeito poético responsabiliza os seus filhos pelo futuro. Num claro discurso de “inquebrantável fé humanista” (Pereira s/d), espera que eles contribuam para a criação de um mundo melhor, honrando a memória de todos os que lutaram e sofreram pelos seus ideais. Como seus filhos, têm a obrigação de conservar os valores dos que sacrificaram a vida pelos seus direitos, ou seja, faz-se o apelo à luta pela dignidade humana consagrada pelos Direitos do Homem, como Goya fizera um século antes:

E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram. (Sena 1988: 124)

Ressoa, neste instante, a voz de Vieira-Pimentel, ao afirmar, relativamente a estes derradeiros versos do poema, que “o poeta olhando, lúcida e aplicadamente o mundo, [sic] verifica que tão lobo do Homem quanto a Natureza é o próprio Homem. E então surge, palavras dele, ‘o poema goiesco e tão diretamente pessoal’, manifesto apaixonado contra a tirania, onde o aflorar do ceticismo e do pessimismo não enfraquecem” (Vieira-Pimentel 1981: 68) as ideias expostas, resultantes que são da “expressão muito pessoal de vivências emotivo-intelectivas” (idem: 72) do poeta.

Uma conceção do mundo aproximada a esta que acabámos de perspetivar surge quatro décadas depois pela voz de Ana Luísa Amaral. No seu poema “Um pouco só de Goya: Carta a minha filha:” (2002), de Imagias, a poetisa estabelece, por um lado, relações transtextuais[14] com “Carta a meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya”, de Jorge de Sena, e, por outro, apropria-se tangencialmente do jogo ecfrástico em relação ao já mencionado quadro de Goya. É, podemos dizê-lo, uma écfrase da écfrase ou, nas palavras de Paulo Pereira, “uma espécie de ekphrasis em segundo grau” (s/d).

O título do poema de Ana Luísa Amaral denota, assim que o lemos, dois aspetos que o aproximam do texto seniano. Há de imediato o indicativo arquitextual[15] do género escolhido – a epístola –, para lançar o leitor na emotividade do eu poético. Deparamo-nos, simultaneamente, com a evidente referência a Goya, o pintor-inspiração das reflexões poéticas sobre a realidade. Ao longo do poema, enquanto a ligação a Goya se limitará a breves afagos imagísticos ou plásticos, a relação de transposição medial (Rajewsky 2005: 51) entre os dois textos poéticos passará pela intertextualidade[16] (na medida em que há a alusão a Sena e ao seu poema), mas sobretudo pela hipertextualidade,[17] devido ao facto de o hipotexto seniano ecoar no hipertexto de Amaral, que imita criativamente aquele, em forma e conteúdo, ainda que mantenha a sua autonomia, pelas intenções particulares com que foi criado.

Ana Luísa Amaral inicia a sua composição com uma homenagem a um dos gigantes da poesia portuguesa do século XX. Essa sua admiração por Sena acabará, mais à frente, no corpo do poema, por ser confessada à sua interlocutora, coincidentemente a filha, quando explica o modo como lhe falará de uma das facetas da vida: “Num estilo que gostava, esse de um homem / que um dia lembrou Goya numa carta a seus / filhos” (Amaral 2002: 27).

A aproximação do poema de Amaral ao de Sena vive do seu pendor pedagógico: a voz da poetisa lança um discurso de herança à filha sobre os fatores que compõem a vida, numa tentativa, em simultâneo, de a proteger do mundo, mas ainda de a deixar enfrentá-lo autonomamente, para que desenvolva a sua capacidade de autoproteção, necessária a um crescimento desenvencilhado. Trata-se, segundo a voz parental, de um ato de amor: “Porque te amo, queria-te um antídoto / igual a elixir, que te fizesse grande / de repente, voando, como fada, sobre a fila. / Mas por te amar, não posso fazer isso” (idem: 28).

De facto, o sujeito poético está consciente da necessidade de deixar a filha aprender por si a enfrentar os horríveis habitantes do futuro: “um dragão sem fogo, ou unicórnio / ameaçando chamas muito vivas” (ibidem) e também aqueles que têm “olhos de gigante ou chifres monstruosos” (ibidem). O uso simultâneo de léxico inerente ao sonho e à fantasia, próprios da infância, em contradição com o vocabulário disfórico da guerra, do pesadelo, do horror, do caos, enfim, contribui exatamente para a desmistificação da vida como um conto de fadas. É essa a lição: a vida não é um sonho paradisíaco; é a “fila ou / [o] novelo” (idem: 27) que tanto têm de bom quanto de negativo e, consequentemente, é marcada por “sons de espanto” (idem: 28), as aprendizagens vivenciais que mostrarão “se o justo e o humano aí se abraçam” (ibidem).

Apesar de tomar esta posição, a proteção visceral da cria perpassa por todo o poema, o que é notório pela sua própria iconicidade: o texto, em verso, não é mais do que prosa poética no qual o enjambement lembra o embalo do bebé nos braços protetores de sua mãe.

Mas de que protege esta mãe a sua filha? O poema gira (regressa-se ao balanço do embalo) em torno de uma tentativa de dar uma definição de vida à pequena filha curiosa sobre o nascimento e a morte: “perguntavas do espanto / da morte e do nascer, e de quem se seguia / e porque se seguia” (idem: 27). A explicação metafórica da vida, “mascaramento imagístico” (Pereira s/d) menos claro que a mensagem seniana, não tardava: a vida prende- -se às palavras fila e novelo, ou seja, a vida é o fluir encadeado de situações que se enredam umas nas outras, nas diversas e diferentes “formas plurais de habitar o mundo” (ibidem), até culminarem na morte.

Se, na infância, a menina tinha já “olhos iguais” (Amaral 2002: 27) aos de agora, no presente, o “Hoje” (ibidem) que inicia a segunda estrofe do poema, o seu cabelo castanho claro escureceu, este chiaroscuro indiciando a perda da inocência, o amadurecimento, a maior capacidade de entendimento da realidade. Assim, é já possível abrir o jogo e mostrar- -se, com laivos de Sena, que a vida passa de geração em geração – “a vida é também isso: / uma fila no espaço, uma fila no tempo, / e que o teu tempo ao meu se seguirá.” (ibidem) – e que, lembrando a guerra e a tirania do quadro de Francisco de Goya (agora sim, o “pouco” do título), ela tem tanto de bom quanto de mau – “a vida é também / isto: uma espingarda às vezes carregada” (ibidem) –, tanto de sonho como de terreno, de quotidiano – “Mostrar-te leite-creme, deixar-te / testamentos, falar-te de tigelas” (ibidem) –, tanto de genésico quanto de apocalíptico.

Está sempre presente, porém, o cuidado da proteção e da manutenção do lado bom da vida, tentativa de desvio da atenção do mundo da mentira e da falsidade: “Mas é também desordenar-te à / vida, entrincheirar-te, e a mim, em fila descontínua / de mentiras, em carinho de verso” (ibidem). O sujeito poético retoma esta crueldade da vida, feita de aparências, quase a finalizar o poema, quando se serve da imagem pictórica da camisa branca do mártir prestes a ser fuzilado do quadro de Goya, para assumir que a vida decididamente não é feita dos leites-cremes da infância, mas do fel do estado adulto: “A vida, minha filha, pode ser / de metáfora outra: uma língua de fogo; / uma camisa branca da cor do pesadelo” (idem: 29). Nesse sentido, importa enfatizar o oximoro presente nesta imagem da veste do herói, numa reminiscência ecfrástica do chiaroscuro patente na obra goiesca. Nesta ordem de ideias, a poetisa acaba por concluir que “tudo está bem e é bom” (idem: 28): está bem, porque a vida é como é; é bom, porque não se vive de ilusões.

Ana Luísa Amaral não esquece a sua intenção pedagógica: ensinar à filha que as maldades do mundo, se não podem ser evitadas, poderão ser pela certa minimizadas ou, até, evitadas. Como tal, mostra-lhe que “o respeito inteiro e infinito / não precisa de vir depois do amor. / Nem antes.” (ibidem) e que é fulcral olhar os outros como “espelhos e não janelas” (ibidem): olhá-los é vermo-nos, pois entre eles e nós existem “pontos / paralelos” (ibidem), igualdades. Daí que exigir o nosso respeito depende, antes, da bondade de respeitar o semelhante. É neste sentido que a poetisa encerra a sua lição de sabedoria. É a voz que, pela experiência, mostra que a vida pode ser plantar algo de bom, fazê-lo crescer e espalhá-lo:

Mas [a vida é] também esse bolbo que me deste,
E que agora floriu, passado um ano.
Porque houve terra, alguma água leve,
e uma varanda a libertar-lhe os passos. (29)

Concluindo, Ana Luísa Amaral canta um hino à dignidade humana, muito próximo do que fez Jorge de Sena, baseando o valor da vida no que nela se produz: a alternância entre a vida e a morte, que serve de esqueleto ao poema, resume-se, finalmente, a este projeto de fecundidade dos afetos que a mãe foi zelando transmitir à filha querida. Esta dicotomia encarrilha na de transcendência/terreno que já Goya e Sena haviam apresentado. Só que em Ana Luísa Amaral inverte-se esse chiaroscuro ideológico: heróis são aqueles que vivem de forma digna, é certo, mas a glorificação alcança-se, pelo exemplo, no viver quotidiano. E aí é que reside a luz…

Bibliografia

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NOTAS

1 Heffernan considera que a écfrase é “the literary representation of visual art” (1993: 1). Afirma ainda que “[E]kphrasis is the verbal representation of visual representation.” (idem: 3). Para designar o mesmo fenómeno, Ermelinda Ferreira utiliza a expressão “transcriação intersemiótica” (2007: 2).

2 Após apresentar a sua definição de écfrase, Clüver enfatiza o sentido semiótico que atribui a texto. Por sua vez, Laura Eidt considera a écfrase moderna, estendida à cinematografia, como a verbalização, citação ou dramatização de textos reais ou fictícios compostos num qualquer outro sistema sígnico (vide Eidt 2008: 19).

3 “Les compositions de Goya, écrivait Théophile Gautier, sont des nuits profondes, où quelque brusque rayon de lumière ébauche de pâles silhouettes et d’étranges fantômes” (Milner 2005: 168).

4 “[L]es ombres ne servent aucunement (ou servent très peu) à suggérer le modelé des corps ou à introduire dans le tableau […] un effet de perspective atmosphérique ; elles ont un rôle essentiellement expressif et couvrent, d’une manière souvent uniforme, des zones qui ne sont pas directement déterminées par l’incidence de la lumière. Elles visent beaucoup plus à désintégrer les formes qu’à les intégrer dans un monde dont la lumière constituerait le lien (ce lien fût-il d’opposition […])” (Milner 2005: 178).

5 Segundo Werner Hofmann,

[s]i Goya était un ilustrado, ce n’est pas parce qu’il vénérait la raison et trempait son pinceau dans l’intelligence pure ; et pas non plus parce qu’il prenait le parti des égarés et des humiliés, mais parce qu’il élargissait le domaine de l’art pour révéler les conditions dans lesquelles naît la privation de liberté. Il ramenait l’art à sa fonction première en entreprenant de placer l’oeil en face d’horreurs inouïes et insondables afin de “lui épargner de regarder dans la terreur et dans la nuit” (Nietzsche, La Naissance de la tragédie, chap. 19) (apud Milner 2005: 171).

6 As cenas referidas remetem para os dois quadros que constituem o díptico.

7 Entenda-se aqui intertextualidade na aceção semiótica de texto.

8 “A missão da literatura como cultura evoca a potência do espírito, tudo o que nas paixões e nos sentimentos humanos nos estimula e nos comove. Estes estímulos estão ao serviço da transformação da sociedade. Será a emoção, a subjetividade, o principal motor de transformação social. Os estímulos artísticos estão ao serviço do homem, isto é, o discurso literário, como toda a grande arte, quer ação política” (Rogel Samuel, Manual de Teoria Literária, 1985, apud Silva 2010: 165).

9 Francisco Cota Fagundes indica, a este propósito:

Embora os poemas individuais de Metamorfoses tratem uma larga variedade de tópicos – homem social, homem religioso, o homem modelando a história e sucessivamente sendo modelado por ela, o homem como criador e o homem como destruidor – vistos todavia na sua totalidade, i.e., como um todo orgânico, o livro de Sena pode ser considerado a epopeia da humanidade na sua luta constante, desde o momento em que o homem emergiu do primevo mar da vida até à Idade Espacial, para se libertar das algemas do tempo e alcançar a imortalidade em corpo e alma” (Cf. “History and Poetry as Metamorfoses”, apud Carlos 1999: 187-188).

10 “Depictive ekphrasis” (Eidt 2008: 47).

11 “Interpretative ekphrasis” (idem: 50).

12 Luís Adriano Carlos resume claramente esta ideia: “A vidência torna-se não raro o termo mediador do testemunho; e, nessa mediação, o poeta vê o infinito no finito, a essência das coisas na contingência das coisas. A revelação testemunhal é, contudo, menos visionarismo do que visão múltipla da revelação que se manifesta na linguagem, projetada sobre o horizonte da existência e da história” (Carlos 1999: 98).

13 No prefácio a Poesia I, Sena define a sua poética do testemunho nestes termos:

É que à poesia, melhor que a qualquer outra forma de comunicação, cabe, mais que compreender o mundo, transformá-lo. Se a poesia é, acima de tudo, nas relações do poeta consigo mesmo e com os seus leitores, uma educação, é também nas relações do poeta com o que transforma em poesia, e com o ato de transformar e com a própria transformação efetuada – o poema –, uma atividade revolucionária. Se o “fingimento” é, sem dúvida, a mais alta forma de educação, de libertação e esclarecimento do espírito enquanto educador de si próprio e dos outros, “testemunho” é, na sua expectação, na sua discrição, na sua vigilância, a mais alta forma de transformação do mundo, porque nele, com ele e através dele, que é antes de mais linguagem, se processa a remodelação dos esquemas feitos, das ideias aceites, dos hábitos sociais inconscientemente vividos, dos sentimentos convencionalmente aferidos. Como um processo testemunhal sempre entendi a poesia, cuja melhor arte consistirá em dar expressão ao que o mundo (o dentro e o fora) nos vai revelando, não apenas de outros mundos simultânea e idealmente possíveis, mas, principalmente, de outros que a nossa vontade de dignidade humana seja convocar a que o sejam de facto. (apud Carlos 1999: 80)

Abstemo-nos, neste estudo, de tratar a questão do fingimento poético na poesia de Jorge de Sena, remetendo o leitor para a consulta do capítulo “O testemunho” (in Carlos 1999).

14 Invocamos as designações genettianas, em que a transtextualidade tem que ver com tudo o que põe um texto em relação, manifesta ou secreta, com outros textos (Genette 1982: 7).

15 Genette define arquitexto como a relação do texto com o estatuto a que pertence (1982: 11).

16 Segundo Genette, intertextualidade é a presença efetiva de um texto num outro. Das três variantes da intertextualidade propostas por Genette, importa-nos a alusão (Cf. Genette 1982). O autor baseia a sua conceção de intertextualidade na definição mais abrangente criada por Julia Kristeva, dependente, também ela, dos estudos de Mikhaïl Bakhtine: “[T]out texte se construit comme mosaïque de citations, tout texte est absorption et transformation d’un texte” (Kristeva 1969: 85). Adiante, Kristeva acrescenta: “Pris dans l’intertextualité, l’énoncé poétique est un sous-ensemble d’un ensemble plus grand qui est l’espace des textes appliqués dans notre ensemble” (idem: 194).

17 Relação (que não é de comentário) que une um texto B (hipertexto) a um texto A, anterior (hipotexto) (Genette 1982: 11-12).

NOTA: As citações foram integralmente adaptadas à ortografia implementada pelo Acordo Ortográfico de 1990.