Camões revisitado

Em nossa última postagem comemorativa dos 500 anos de Camões, trazemos um texto cujo título é já emblemático. Nesta comunicação de 1966, Jorge de Sena faz um balanço dos estudos camonianos correntes em Portugal, destacando problemas e soluções encontradas ao longo do tempo, sem, é claro, deixar de verberar suas ácidas críticas ao que ele considera não estar à altura do poeta de Os Lusíadas. Aqui também vemos de maneira sintetizada o processo de pesquisa empreendido pelo autor nas décadas dedicadas ao estudo de Camões, desde o ensaio inaugural de 1948 até, àquele momento, as investigações sobre a estrutura da epopeia. Por fim, se pudermos resumir em uma palavra a relação que Sena mantinha com Camões, ela seria respeito: pela figura histórica, pelo poeta, pela obra, pelo que ele representa para Portugal, para a língua portuguesa e para a literatura.

Falar da importância de Camões e de como ele é interessante (como exemplo de uma literatura que interessa a muito poucos), tornou-se um dos mais banais lugares comuns da cultura internacional. Sem dúvida que é este o preço de ter tido génio e de ter escrito numa língua que, antes da recente e sensacional descoberta, por parte de muita gente culta, de que a língua do Brasil não é o espanhol, não era de grande utilidade para as maquinações das grandes potências no século passado. Nunca na verdade vacilou muito, no correr do tempo, aquela atenção que Camões tão orgulhosamente procurou em vida (como podemos saber que procurou, pelo que ele diz na sua poesia, e também por alguns comentários dos primeiros biógrafos). Mas não se pode afirmar que essa atenção lhe tivesse sido sempre concedida pelas razões certas. Demasiado a grandeza de Camões tem dependido de razões outras que as poéticas; e as opiniões acerca dele e da sua obra demasiado têm confiado nos dicta de estudiosos que têm mantido o seu prestígio à custa de modesta consciência que os outros adquirem de ser impossível numa vida abranger toda a bibliografia camoniana. Por outro lado, os problemas de autoria que a obra lírica de Camões suscita arrastam para a confusão a poesia de quase todos os poetas portugueses e espanhóis de algum nome, na segunda metade do século XVI e na primeira do século XVII; e os problemas de crítica textual foram tornados extremamente complexos pelo facto de praticamente toda a gente (esquecendo que o possuirmos apenas textos impressos ou cópias manuscritas que datam de dentro de um século da morte do poeta não autoriza ninguém a tratar os textos como palimpsestos) ter rescrito Camões. Estas circunstâncias contribuíram decisivamente para intimidar os estudiosos e para levá-los a aceitar um statu-quo que confina a pesquisa a algumas áreas marginais da crítica camoniana.

No nosso tempo, podemos considerar que, depois de todos os esforços desenvolvidos pelos estudiosos no último quartel do século passado, para retirar da obra de Camões o que pudesse não ser de sua autoria, uma nova atitude só começou a frutificar na edição J. M. Rodrigues e A. Lopes Vieira da obra lírica (1932) e na antologia preparada (1923-35) por Agostinho de Campos, as primeiras edições a ter em conta as descobertas e verificações daqueles estudiosos. Mas nenhuma destas edições era cautelosa nas suas leituras; e, em matéria de crítica literária, o padre e o poeta estavam apenas interessados em provar a absurda e ridícula tese da paixão de Camões pela Infanta D. Maria, a filha de D. Manuel I. E a nenhum destes editores ocorreu a ideia de que Camões, como poeta lírico, pudesse ser compreendido como muito mais que um mavioso conquistador de grandes damas, usando desvergonhadamente, para possuí-las, de todos os artifícios petrarquistas em moda no seu tempo. Tinham, para tanto, razões académicas, visto que Joaquim de Carvalho, durante longos anos a autoridade filosófica nas universidades portuguesas, recusara a Camões, em 1925, com todo o saber que lhe reconhecia, a autêntica categoria de um espírito filosófico. Segundo esse ensaio (reimpresso em volume em 1947, sem alteração de uma palavra ou acrescento de uma nota erudita), parece que Camões amara demasiado para pretender à filosofia…

Foi António Sérgio quem, em 1934-36, primeiro pôs em causa estes disparates, atacando o prefácio da edição de 1932, e procurando estudar as ideias de Camões. Estas ideias tinham sido sempre consideradas, se vistas pejorativamente (e segundo os cânones de uma vulgar crítica romântica), como lamentáveis intrusões de pensamento abstracto na pureza lírica de hábeis imitações de Petrarca; e que o petrarquismo era então, ao tempo de Camões, e havia dois séculos, algo mais vasto que o próprio Petrarca, eis o que a crítica portuguesa inteiramente ignorava e ainda faz profissão de ignorar. Se vistas com benevolência, as ideias de Camões eram consideradas como algo que ele comprara o direito a exibir, ao preço de todo o patriotismo historicista que ostentara nos Lusíadas, em benefício dos complexos nacionalísticos de Portugal. Em 1940, uma pequena antologia preparada por Rodrigues Lapa (e ainda muito usada) tentava, pela primeira vez, o regresso às primeiras edições, e dava início, para a crítica textual, a uma reacção semelhante à que, para a crítica de ideias, Sérgio desencadeara: o libertar Camões dos maus hábitos da escolaridade primária. Para os problemas biográficos, tão obscurecidos pelo arbitrário amontoar de interpretações forçadamente biografísticas da obra de Camões, a revisão pode dizer-se que começou com Aubrey Bell em 1923. O desmontar da brilhante e vacilante cordilheira equilibrada sobre um par de documentos e sobre inumeráveis dados eruditos acerca de acontecimentos que ninguém sabe se têm que ver com a vida de Camões, terá atingido enfim uma fase de desejável crítica prudente, no prefácio de A. Salgado Jr. à sua edição da Obra Completa (1963), que, sob outros aspectos, é maculada por terríveis lapsos e por uma inesperada falta de quaisquer padrões de escolaridade moderna (cf. os nossos ensaios – «O Camões da Aguilar» – publicados em «Suplemento Literário de O Estado de São Paulo», de 25/1/64 a 22/2/64). Assim acabaram alguns mitos oficiais da biografia de Camões, tão caros à vaidade portuguesa: o ser impensável que um homem tão culto não tivesse estudado na Universidade de Coimbra; o facto de, é claro, ele ter sido aparentado com a melhor nobreza; o de ter dormido com as beldades mais altamente colocadas na sociedade imperial do tempo; etc. – como se um grande poeta tivesse necessariamente que ter sido aristocrata e universitário, e precisasse de ilustres damas para sonhar com o amor mais puro. Em 1936, Hernâni Cidade publicou o primeiro volume do seu Luís de Camões, que era uma tentativa para observar Camões de um mais literário ponto de vista. Todavia, mesmo para a época, e segundo os padrões internacionais da crítica, Hernâni Cidade manifestava uma excessiva falta de metodologia crítica que nunca adquiriu, depois disso, como uma das mais reconhecidas autoridades em estudos camonianos, e o seu comparativismo deixava muito a desejar. Mas a obra era, apesar de tudo, um esforço para atentar-se na poesia de Camões por si mesma. Em 1944, apareceu a edição Costa Pimpão das Rimas, Autos e Cartas, que desenvolvia a crítica textual iniciada por Rodrigues Lapa, e era tremendamente drástica quanto a problemas de autoria. Infelizmente, esse radicalismo em aplicar as verificações da crítica oitocentista era muito mais dirigido contra a complacência de J. M. Rodrigues e de Lopes Vieira, que para a revisão cuidadosa daquelas verificações. Cidade, na sua edição de 1946-47, que é a de mais corrente uso, reagiu contra muitas exclusões que Pimpão manteve na reimpressão de 1953 da sua edição das rimas. Esta situação, que parecia uma competição privada entre as Universidades de Lisboa e de Coimbra, levou os estudiosos a suporem que, para muitos poemas, serem ou não serem de Camões era mais uma questão pessoal que matéria de estudo: e foi essa a posição adoptada por Salgado Jr. na sua edição, em que inclui, sem hesitação alguma, e sem informação crítica, tudo o que algum dos outros achou que seria de Camões.

Com Os Lusíadas, a situação fora algo diversa. No fim de contas, havia a primeira edição, impressa em vida de Camões. Longamente se soubera que a primeira edição parecia ser duas. Depois, subitamente, ela começou a pluralizar-se. Mas, como muitas primeiras edições são edições demais, foram convenientemente reduzidas às duas supostamente inicialmente descobertas, acerca dos méritos relativos das quais os estudiosos se deram a sábias discussões filosóficas, não sem usarem na edição de uma as leituras da outra, e não sem sorrirem, com superioridade, do que imaginavam ser as incertas pontuação e ortografia de Camões. A obsessão com melhorar o estilo e a prosódia de Camões, que é a contrapartida daquele sorriso douto, não é, de resto, um resultado de má aplicação da escolaridade do século XIX, nem sequer a persistência, até ao nosso tempo, das práticas de que generosamente é acusado o seiscentista Faria e Sousa que, todavia, corrigiu muito menos do que acriticamente se lhe atribui (e por certo menos do que outros, com menos autoridade, têm feito depois dele). Essa errada tendência começou, ao que verificámos, na 2.ª edição (1958) das Rimas, em que computámos 4.000 diferenças textuais entre um exemplar dela e outro da primeira edição (1595), observadas nos poemas comuns a ambas, e mesmo naqueles que são de duvidosa autoria camoniana, sendo que, dessas diferenças, só 450 ou 11,5% podem ser consideradas variantes, enquanto a grande maioria das outras são «beneficiações» prosódicas arbitrariamente introduzidas, nem sequer de acordo com uma teoria coerente (cf. o nosso estudo «As emendas da edição de 1598 das ‘Rimas’ de Camões», Revista Camoniana, vol. 2, 1965). E essa obsessão é tão forte, que mesmo a antologia de Lapa, que declaradamente atacava tal prática, contém muitas lições não autorizadas por qualquer edição primeira ou apógrafo existente, mas destinadas a clarificar o «sentido». Praticamente nunca ninguém se interrogou sobre se «clarificar» o sentido não seria destruir alguma ambiguidade em que Camões estivesse interessado. Dir-se-ia que Camões escreveu a sua poesia tendo em mente a felicidade dos estudantes do ensino secundário…

Como estamos vendo, o problema primacial dos estudos camonianos tem sido o facto de ele ser um poeta muito maior do que a crítica oficial portuguesa é capaz de reconhecer, e de, como tal, exigir uma renovação dos estudos, que não seja tão confiada e respeitosa do que, apesar de tanto trabalho e de tantas boas intenções, continua a ser uma mistificação consagrada, sobre a qual muito suposto «scholar» vem fazer as suas habilidades, como é o caso do Luís de Camões (1959), de António José Saraiva, um livrinho que tem recebido geral aceitação que, de todo em todo, não condiz com a falta de escolaridade, que patenteia. É certo que pretendia desempenhar um diferente papel: ser um Camões para usos políticos esquerdistas, como o Camões de Pimpão o era para usos direitistas, e o de Cidade para os consumidores vulgares. Neste ponto, aqueles que me estão seguindo estarão talvez pensando que esta minha comunicação é perversa. Estão inteiramente certos; é o que ela é. Não obstante, todos os que estão a par dos problemas que Camões suscita sabem tão bem como eu, ou mesmo melhor, que isto tudo não é senão a verdade, e ainda assim não toda. É possível que a perversidade aqui manifestada seja efeito da falta de obediência às leis não-escritas da escolaridade académica internacional, segundo as quais tudo é respeitável quando acerca disso escrevemos, e deixa de o ser só quando nos falamos ao ouvido, na segurança da intimidade. Seja como for, nos últimos vinte anos, por certo que já tivemos mais do que a suportável conta de banalidades acerca do platonismo e do petrarquismo (que qualquer estudante do Renascimento consideraria risíveis), de ausência de edições verdadeiramente críticas, de assistirmos a discussões que se alimentam apenas das pesquisas de Carolina Michaëlis e pouco mais, enquanto todos os cancioneiros manuscritos que poderiam ser de alguma utilidade camoniana continuam inéditos, e a poesia de Camões, a técnica de Camões, o pensamento de Camões, os textos de Camões, continuam num confortável pano de fundo, adiante do qual ele é discutido em termos políticos, morais, etc., ou até naqueles termos «humanos» que foram moda nos anos 30 e 40.

O presente autor, para ter alguma desculpa da sua suposta malignidade, deve confessar que, quando há mais de vinte anos começou a estudar Camões, estava inteiramente disposto a reconhecer os labores dos que imediatamente o haviam precedido. Inocente como era das mistificações académicas, aceitava de boa mente muitas coisas (do mesmo modo que muitos as aceitam ainda hoje), e dedicou-se a compreender as razões de a poesia lírica de Camões ser tão interessante, tão fascinante, tão bela, e tão desafiadora de entendimento profundo. Por certo havia nessa poesia algo de muito afim do nosso estilo de pensar, ainda que a coberto de muita vulgaridade epocal; e por certo que a exactidão, a força, a subtileza, e o encanto da dicção camoniana estavam lá para nos comunicar algo mais que algumas saudades de amor frustrado ou as dolorosas experiências de um homem infeliz. Tendo sido, na sua portuguesa juventude, aborrecido até à exaustão com todas as falácias patrioteiras acerca de Os Lusíadas, e estando pessoalmente interessado em poesia, natural seria que tivesse sido primeiro levado a meditar na poesia lírica de Camões. Com efeito, António Sérgio fizera muito por acentuar o pensador em Camões, mas Sérgio estava polemicamente interessado, como sempre esteve, muito mais em lutar contra a estreiteza dos preconceitos portugueses, e em afirmar que Camões podia ser um guia cívico, não só de patriotismo, mas sobretudo de nobreza de pensamento. E a sua solução final do problema – a ideia de Camões ser um místico – era mal fundada em apressadas comparações com os místicos espanhóis seus contemporâneos. Em 1948, apresentei, numa conferência, a proposta de compreender-se o cerne do pensamento de Camões, em termos da dialéctica hegeliana, pela qual poderíamos talvez melhor ver como Camões não está interessado nas ideias em si, mas em analisar o modo como elas se transformam umas nas outras, para expormos a tese em muito simplificada forma. Nessa mesma ocasião, dizíamos que a chave do pensamento camoniano, ele a dera na sua grande canção «Manda-me amor que cante docemente». A necessidade de desenvolver melhor este ponto que fizera muito literato sorrir do alto da sua ignorância filosófica, levou à investigação sistemática da obra camoniana. E aí começaram as aflições. Muitas obras seguramente não eram dele, outras só a tradição as garantia, outras haviam sido rejeitadas sem cauteloso estudo, e outras ainda, que Carolina Michaëlis não rejeitara, aguardavam, como ainda aguardam, o ser incluídas entre as obras que nada desmente que possam ser dele. Além disto, como o presente autor não estava interessado nas suas próprias ideias ou nas dos outros acerca de Camões, mas em encontrá-las nas palavras dele, chegou à triste descoberta de que muitas dessas palavras, nas edições, eram muito menos dele do que outras o poderiam ser. Isto, é claro, não é muito importante para os fins comuns de ensinar-se Literatura Portuguesa em qualquer parte, concordo. E é evidente que se pode ser um estudioso dessa literatura, sem mergulhar em áreas tão explosivas como a dos estudos camonianos, onde uma pessoa arrisca a sua reputação, ou se arrisca a não criar reputação nenhuma, visto que terá de ir contra autoridades estabelecidas, ideias arreigadas, interesses políticos e até comerciais. Camões é, mais do que qualquer outro escritor português, um Establishment em que a pessoa pode ser admitida, se for cautelosa, reticente, humilde, e respeitosa do que tem sido dito e feito: as qualidades de todo o estudioso decente, mas aqui exigidas para pôr o sujeito no seu lugar que é o de não pôr em causa coisa alguma, e não estragar o negócio de ninguém.

Uma revisão de Camões tinha, pois, que ser conduzida em vários planos ao mesmo tempo. Na história literária e cultural, havia que instilar e difundir algum conhecimento actualizado do que o século XVI terá sido, especialmente no terceiro quartel dele, quando Camões compôs as suas obras. Demasiado em Portugal a história literária tem perpetuado uma visão simplista e mal informada do que a Renascença foi; e, em consequência, tem tendido a ver Camões como a figura romântica, por excelência, de um período da cultura europeia, que já, ao tempo de Camões, morrera nas turbulências da Reforma e da Contra-Reforma. O seu pessoal e estilizado desenvolvimento das formas, a sua angústia vital, a sua desesperada necessidade de estruturar a sua obra e o mundo que desabava, e também a sua paixão por um passado idealizado, como por um presente cuja consciência agónica sempre se está dissolvendo em passado rememorado e em futuro incerto, tudo isso define Camões como um dos primeiros porta-vozes, que ele é, da sua época, uma época que não é o Renascimento já impossível, nem o Barroco que vai surgir, mas o Maneirismo que durou mais ou menos dos meados do século XVI ao fim do primeiro quartel do século XVII. Esta definição, que já figurava na nossa conferência de 1948, foi com um misto de honra e de alegria que a vimos recentemente adoptada por um crítico como Helmut Hatzfeld. Na crítica literária, o problema era aparentemente contraditório. Havia que regressar aos primeiros críticos de Camões e vir deles até aos modernos, revendo as opiniões deles e as opiniões oficialmente repetidas acerca deles, investigando as reais razões e os veros documentos de que acaso se tivessem servido; mas, simultaneamente, tínhamos que livrar Camões de quanto peso de suposta erudição prejudica e paralisa todos os esforços para um «close reading» do que Camões terá escrito. Voltar, por exemplo, a Faria e Sousa no século XVII, para descobrir que ele é um grande e competente crítico pelos padrões do seu tempo, e que toda a gente lhe deve, sem o saber, praticamente tudo, não é tarefa fácil e muito menos o é recompensadora, visto que significa ir-se contra um século de preconceitos acumulados contra o tomar-se Faria a sério. Edward Glaser, que primeiro terá tentado a reabilitação de Faria e Sousa, saberá disto melhor do que eu. Por outro lado, o problema literário exigia o estabelecimento de métodos rigorosos de literatura comparada, para reafirmar-se a posição de Camões ante os poetas influentes no seu tempo, e para restabelecer, após tanta crítica geneticista precipitada, a originalidade dele em manipular a herança literária que tão livremente usou para os seus próprios fins. Isto o fizemos por dois caminhos diversos. Nada melhor que Os Lusíadas, para provar-se a que ponto Camões era um homem obsessivamente preocupado com a estruturalidade num sentido intelectual, visto que o poema claramente pretende representar objectivamente a transformação da História de Portugal em História Universal, e colocar o próprio Camões no centro dessa momentosa criação de mundos. Os nossos estudos sobre A estrutura de Os Lusíadas (em curso de publicação na Revista do Livro, do Rio de Janeiro) tentam ser uma rigorosa demonstração de uma estrutura tremendamente cerrada, pela qual o poema é erigido e concebido como um objecto estético inteiramente dependente de uma visão idealística e esotérica da História e do Mundo. O mesmo espírito pitagórico comanda e permeia tudo o que Camões terá escrito, ainda que de modo diverso. Tão interessado ele estava em dizer precisamente o que tinha a dizer (e para um homem que via o pensamento como algo fluído, o que ele tinha a dizer coincidia com o que podia ser dito), que a sua poesia lírica usa e desenvolve as formas que ele recebera da tradição antiga e moderna, por um modo totalmente abstracto, que elas tendem a ser representação do pensamento em si. Inventando parâmetros para avaliar com rigor as estrofes usadas na época, foi-nos possível mostrar concretamente como Camões as usa pessoal e diversamente, do mesmo passo caracterizando o grau, às vezes muito reduzido ao contrário do que se supõe, da influência que ele teria recebido de Garcilaso, Boscán, Bembo e Sannazaro. Foi-nos igualmente possível patentear como as canções petrarquistas e as odes postas em moda por Bernardo Tasso eram, no espírito de Camões, estruturas tão inteiramente definidas, que, quando os parâmetros se sobrepõem, as diferenças persistem. E ainda, e sobretudo, cremos ter conseguido provar que a canção «Manda-me amor que cante docemente» é efectivamente central na produção camoniana de obras líricas maiores, e como um cânone estabelecido em tais bases poderá ser útil para rever-se o problema dos apócrifos (porque, na maioria dos casos, as razões para rejeitá-los foram tão frágeis como as aduzidas antes para admiti-los). Isto foi o que expusemos no nosso recente livro Uma Canção de Camões. Uma terceira parte deste livro trata extensamente e minuciosamente (para acentuar quais devam ser as exigências da crítica textual) da análise daquela importante e significativa canção: um poema de que possuímos, certamente não por acaso, seis textos diferentes, representando pelo menos três diversos estádios de concepção, caso quase único em toda a obra de Camões.

Se as canções petrarquistas, em especial «Manda-me amor que cante docemente» (para o que podemos chamar as tendências dialécticas de Camões) e a monumental «Vinde cá meu tão certo secretário» (para o que será justo chamar as suas tendências existenciais de concepção da vida), são extremamente importantes, ao que entendemos, para a descoberta do pensamento camoniano em acto, elas não são, a não ser à margem do cânone que constituem, o mesmo problema de autorias duvidosas que os sonetos são. Desde a primeira edição em 1595, até às edições afanosamente ampliadas por Teófilo Braga no último quartel do século passado, o número de sonetos atribuídos a Camões aumentou, espantosamente e ridiculamente, de cerca de 60 a perto de 400, e já na primeira edição os problemas de autoria eram muito sérios e não foram seriamente resolvidos na segunda, três anos depois. Os estudos de Carolina Michaelis foram imensamente efectivos para reduzirem aquele número a proporções razoáveis, mas não foram muitas vezes sistemáticos, nem sempre eram conclusivos, e, pior do que isto, demasiado se garantiam com argumentos de autoridade («Eu vi um manuscrito»… «Numa cópia que eu possuo»… «Um dia direi as razões»…). Foram, todavia, e longamente continuaram a ser, tomados como a última palavra que a autora, quantas vezes, tinha sido por demais cautelosa em proferir. Depois deles, o conhecimento que nos é possível ter dos manuscritos ou mesmo das edições impressas melhorou tecnicamente muito – por exemplo, não basta comparar duas versões, já que a posição que um texto ocupa na sequência de uma colectânea pode ser reveladora de muitas coisas (foi assim que verificámos que a posição dos sonetos duvidosos nas primeiras edições da obra lírica de Camões não só confirma o carácter suspeito deles que estão agrupados, como lança dúvidas sobre outros que nunca haviam sido suspeitos mas que nada senão a tradição garante). As edições modernas têm confiado, sem revisão, nos dicta de Carolina Michaëlis, ou demasiado se preocupam com corrigir-se umas às outras, sem o conveniente regresso sistemático às fontes disponíveis. Aplicando aos sonetos métodos de pesquisa semelhantes, mas mais simples, aos que usamos para as canções e as odes no livro supracitado, tentámos a reabordagem das questões de autoria. Esse outro livro, publicado em edição limitada, no Brasil, em 1964, trata dos sonetos atribuídos a Camões, desde a primeira edição de 1595 à Terceira Parte das Rimas (1668), coligida por Álvares da Cunha, exclusive. Verificámos que, em muitos casos, as informações disponíveis e as observações possíveis não haviam sido exploradas extensiva e coerentemente, para garantir ou retirar a Camões a autoria deste ou daquele soneto. E foi muito interessante notar que a maioria dos sonetos duvidosos possui esquemas de rima que Camões não usa nos sonetos que nos é lícito supor seus. Isto conduziu-nos à investigação sistemática da evolução dos esquemas de rima, nos sonetos dos poetas importantes portugueses, espanhóis e italianos do tempo, com o resultado de distinguirmos uma muito definida evolução que ora se afasta ora se aproxima dos modelos que o próprio Petrarca usara, e de podermos estabelecer um corpus mais seguramente camoniano pelo qual avaliar melhor da autenticidade dos sonetos restantes. A nossa pesquisa aplica-se agora ao estudo dos sonetos atribuídos por Álvares da Cunha, Faria e Sousa, e editores seguintes. Ao estudarmos as primeiras edições, igualmente iniciámos a investigação das redondilhas, forma métrica que, depois dos sonetos, é a que mais sofre de questões de autoria. Mas a pesquisa terá de ampliar-se às restantes formas líricas, em especial as elegias.

Depois disto, será talvez possível ter-se uma ideia mais nítida do que Camões escreveu, do que é duvidoso dentro dos limites da documentação possível, e do que decididamente não é dele. Mas ainda restará o crucial problema do estabelecimento dos textos. O critério para tal, já que não possuímos textos mais «autorizados» do que outros, tem de ser o seguir-se fielmente as primeiras edições de cada texto (ou as dos manuscritos que possam ter servido para elas, como é o caso do Cancioneiro de Luís Franco Correia), sem corrigir nada que não seja claramente uma gralha tipográfica ou um lapso, não alterando sem declaração expressa a pontuação (de que, por aquele cancioneiro, se pode concluir, como de Os Lusíadas, que Camões era muito mais parco do que os seus editores o têm sido) e fornecendo todas as variantes conhecidas (claro que não as variantes inventadas pelos correctores precipitados e ansiosos de perfeições desnecessárias). E, é claro, nunca tocar nos textos, na intenção benemérita, mas desastrada, de esclarecer-lhes o sentido. O sentido de um grande poeta é sempre obscuro para quem não o atinge. De resto, a pesquisa moderna é extremamente concludente acerca da impossibilidade de sonhar-se com o estabelecimento de arquétipos textuais que, na maioria das vezes, nunca existiram, quanto um poeta morreu antes de publicarem ele mesmo, e quando podia alterar um texto a cada cópia que dava dele. Quanto aos Lusíadas, já que abandona a estéril discussão das virtudes de o pelicano do frontispício olhar na primeira edição, para a esquerda ou para a direita, e tratar a obra de acordo com as mais recentes descobertas sobre a técnica tipográfica de tempo. Os métodos de comparação maciça de exemplares, desenvolvidos por Charlton Hinman para o estudo do First Folio da obra de Shakespeare, têm de ser aplicados a todos os exemplares acessíveis da primeira edição de Os Lusíadas; e estamos certos de que, então, pela recorrência de variantes (que são alterações introduzidas pela revisão do editor durante a impressão da obra, ou a ortografia pessoal dos tipógrafos que a compuseram), será possível aproximarmo-nos com rigor, e sem falsas pseudo-filológicas, do que Camões terá dado à imprensa. De qualquer modo, no actual estádio da nossa pesquisa, as variantes pouco afectam o conjunto dos contextos, ou não são do teor que se observa tão extensamente entre os exemplares do First Folio shakespeariano, para não falarmos das diferenças entre os textos do Folio e os dos Quartos conhecidos. Mas por certo que valerá a pena possuir uma edição tão definitiva quanto possível do que é o texto mais glorioso da língua portuguesa, e um dos mais prestigiosos poemas dos tempos modernos. Restam ainda, após isto, as peças de teatro e as cartas. Estas últimas têm sido excessivamente lidas como cartas pessoais. Se, por certo, elas fazem uso de material autobiográfico, não obstante cumpre-nos entendê-las nos termos declarados pelo segundo biógrafo de Camões, Manuel Severim de Faria, quando diz: «também se acham algumas obras em prosa solta, as mais delas de matéria jocosa, e estilo metafórico, que era o que então se prezava muito na corte, por o ter introduzido Fernão Cardoso, que foi nele eminentes» (Vários Discursos Políticos, 2.ª edição, Lisboa, 1971, p. 336). E não será inoportuno apontar que o primeiro editor de Camões, Fernán Rodrigues Lobo Soropita, seu estrénuo admirador e poeta autêntico por direito próprio (ainda aguardando, como toda a segunda metade do século XVI, a atenção que merece), escreveu muita prosa nesse estilo. A maior parte dessa prosa dele e de outros dorme ainda o sono pacífico dos justos em manuscritos inéditos, roubando-nos de um importante elo na transformação da prosa portuguesa, que ninguém tomou a sério, talvez por a prosa ser jocosa… Quanto ao teatro (e só para uma das peças possuímos mais de um texto), há que tratá-las como peças modernas do seu tempo, com o uso que fazem de um argumento desenvolvido, com a caracterização cuidada das personagens, e com uma verificação que é menos da tradição do Gil Vicente, em que tem sido entendida, que da muita comédia italiana vulgar da época. De resto, a mais elementar crítica poderia reconhecer que elas, longe de serem curiosas tentativas teatrais do maior poeta da língua portuguesa, são, ainda mais que bom teatro, e com a Castro, de Ferreira, do melhor teatro ibérico entre Gil Vicente e a magnífica floração hispânica do Século de Ouro.

O autor desta comunicação não é tão insensato que se suponha capaz, por si e no prazo de uma vida, de resolver com sucesso tantos problemas que lançou ombros. Praticamente só tem ele trabalhado, e lutando contra muitas dificuldades e algumas hostilidades. Sem a generosa ajuda oficial do Brasil enquanto nele viveu, ter-lhe-ia sido inteiramente impossível coligir todo o material que compilou para iniciar em mais largas fundações o que vinha há muitos anos preparando. Mas, mesmo que as suas descobertas não sejam aceites, tem a certeza de que a massa de trabalho, que tem produzido e espera produzir, e a agitação a que se lançou das consuetudinárias áreas camonianas, constituirão um útil desafio a que outros mais competentes desenterrem para as novas tarefas, e, desde já, uma denúncia que alerte o mundo dos estudiosos contra a complacência com que tem concedido proeminência, a tantos, no campo das questões de Camões.

Madison, Julho de 1966.