Neste artigo, Alessandro Santos discute a produtiva e algo controversa relação entre Jorge de Sena e o Surrealismo, que se inicia ainda nos anos 1940 e se estende pelas décadas seguintes. Mobilizando tanto a poesia quanto a crítica seniana, o autor aborda alguns temas recorrentes nessa leitura que o poeta faz do movimento, assim como de alguns dos seus principais expoentes dentro e fora de Portugal.
Alessandro Barnabé Ferreira Santos
I JORGE DE SENA, POETA – LEITOR DO SURREALISMO, OU UMA INTRODUÇÃO
Os trabalhos e os dias
[…]
Uma corrente me prende à mesa em que os homens comem.
E os convivas que chegam intencionalmente sorriem
e só eu sei porque principiei a escrever no princípio do mundo
e desenhei uma rena para a caçar melhor
e falo da verdade, essa iguaria rara:
este papel, esta mesa, eu apreendendo o que escrevo.
(Sena, 2013, p. 88)
Jorge de Sena, poeta e leitor do Surrealismo – por conta alheia? Ou talvez pelo convívio entre as testemunhas, toda a gente e o afeto, tal como expressa no verso emblemático de “Os trabalhos e os dias”, de Coroa da Terra (1946), sobre o qual o poeta avidamente refletiu em sua poesia (e não só), buscando praticá-lo em toda a sua vida: “Uma corrente me prende à mesa em que os homens comem / E os convivas que chegam intencionalmente sorriem / e só eu sei porque principiei a escrever no princípio do / mundo”(Sena, 2013, p. 88). O poeta lisboeta, engenheiro de formação e professor de literaturas portuguesa e brasileira no Brasil e nos Estados Unidos, tornou-se, devido ao duplo desterro, um caso singular em que vida biográfica e poesia se entrelaçam em um trânsito constante entre o particular e o universal.
A consciência poética de Jorge de Sena, moldada pelos acordes aquáticos e sonoros da catedral debussyana no poema “«La Cathédrale Engloutie», de Debussy”, publicado em Arte de Música (1968), revelou a miséria da vida e a fragilidade humana, temas que permeiam as muitas metamorfoses de sua obra. A poesia-testemunho de Jorge de Sena emerge como uma tradição própria, promovendo um convívio dialético com as tendências literárias dominantes na primeira metade do século XX em Portugal como o sopro estético-formal proveniente da Revista Presença, a questão ética e humana do Neorrealismo e a aventura do Surrealismo. Este último, como movimento organizado, surgiu em Portugal apenas em 1947 e será explorado neste artigo, tanto no plano da expressão poética quanto no plano da expressão crítico-ensaística do poeta. Sena destacou-se por sua produção escrita vasta e multifacetada, que fascina e intimida o leitor pelo caráter poliédrico e a atenção minuciosa com que registrava sua poesia-testemunho em variados formatos.
Jorge de Sena foi um verdadeiro monstro: a sua produção escrita – e ele sempre se definiu sobretudo como poeta – constitui uma obra-monumento que fascina e intimida o leitor pelo caráter poliédrico, diverso e multifacetado. A vasta profusão de gêneros aos quais se dedicou revela o intenso cuidado e a atenção dedicados à criação de testemunhos – poesia-testemunho – nos mais variados registros de escrita, da poesia à prosa de ficção, ao teatro e à crítica, além da numerosa família que constituiu junto de Mécia de Sena. Poder-se-ia aqui referir-se à afirmação de Sena feita em entrevista para o número 59 de O Tempo e o Modo, edição a ele dedicada, na qual o poeta afirma, ao fim de sua resposta[1], que: “Talvez eu seja um «monstro de la natureza», como Cervantes chamou ao seu amigo Lope de Vega, que também teve tempo para tudo” (apud O Tempo e o Modo, n. 59, Abril de 1968, p. 425); o monstro da natureza que performou o milagre do tempo, dos tempos.
O trânsito entre poesia e crítica será ilustrado pelos cinco textos que Jorge de Sena escreveu sobre o Surrealismo, ao longo de sua vida-obra: “Poesia Sobrerealista”, “Surrealismo (A propósito de uma exposição e de algumas publicações conexas)”, “A primeira referência ao Surrealismo feita em Portugal”, “O Surrealismo em Portugal” e, por fim, “Notas acerca do Surrealismo em Portugal. Para a análise comparatista entre os cinco ensaios, utilizarei as versões dos textos que constam do volume Estudos de Literatura Portuguesa-III (1988), na edição de Mécia de Sena, no qual se reúnem uma coletânea de textos do poeta sobre as mais variadas matérias da poesia e da narrativa portuguesas, além de assuntos que envolvem a cultura.
II JORGE DE SENA E A ESCRITA CRÍTICA – LEITURAS DO SURREALISMO
Ode ao Surrealismo por conta alheia
[…]
Que transportas ao colo
em silêncio e num xaile?
É a vida? Anúncios luminosos? Casas económicas? O mar? Irmãos?
Reivindicações? Um livro?
Embalas e não respondes.
É a vida? A noite que cai? As luzes distantes? Um gesto? Um olhar?
Um quadro? Uma poesia lírica?
(Oportunamente interrompida pela chegada de uma pessoa conhecida)
(Sena, 2013, p. 165)
Jorge de Sena escreveu seu primeiro ensaio sobre o Surrealismo em 1944, ano em que publicou Poesia Sobrerealista no jornal O Globo (edição de 14 de outubro de 1944). Este texto serviu como uma introdução à então novíssima vanguarda estética em Portugal, que viria a se estruturar como movimento organizado apenas em 1947. O “sobrealismo” mencionado no título reflete a confusão inicial na tentativa de traduzir fielmente o termo francês surréalisme, uma questão terminológica que seria resolvida apenas anos depois com o estabelecimento do termo “surrealismo” para designar essa nova aventura estético-poética.
Dentre os cinco textos que Jorge de Sena dedicou ao Surrealismo português, este primeiro ensaio foi acompanhado, em sua publicação original, de uma tradução[2] direta e feita “apressadamente” (Sena, 1988, p. 216), do francês para o português, de cinco poemas, ilustrando algumas tendências marcantes do movimento. Os poemas selecionados destacam a produção de quatro poetas expressivos: Paul Éluard, Georges Hugnet, Benjamin Péret e André Breton, evidência que faz Jorge de Sena sublinhar a “influência incalculável” do movimento, surrealista, que já se fazia notar em sua época.
De Paul Éluard, Jorge de Sena destacou a “densidade crítica” (Sena, 1988, p. 216) que toma conta de “Poema” e “O espelho de um instante”, de Capitale de la douler (1926); em Georges Hugnet, ele destacou a imagem das “botas-de-elástico profissionais”, do poema “Quando a água embala”, de La belle en dormant (1933), como atestado de “verdadeira poesia”; sobre Benjamin Péret, ele chamou a atenção para “a veia satírica”, em “Noites de insónia”, de Derrière les fagots (1934); já em André Breton, identificou “o poder da transfiguração” no trecho narrativo de “As inumeráveis possibilidades”, de Les vases comunicants (1932).
Jorge de Sena apontou, nesse ensaio, a configuração de traços ou gestos que identificam imediatamente aqueles artistas como representantes do Surrealismo. E para além de evidenciar alguma tendência dominante desta aventura, poder-se-ia dizer que o poeta, ao mesmo tempo, sugeriu aproximações e distanciamentos em relação de sua própria poesia-testemunho à aventura surrealista. O caráter introdutório do ensaio reflete o contexto tardio em que o Surrealismo chegou a Portugal, quase duas décadas após a publicação do Manifesto do Surrealismo de André Breton, em 1924. Esse intervalo temporal marcou a recepção do movimento em Portugal como “tardia”, o que, muitas vezes, resultou em avaliações depreciativas. Contudo, Sena antecipa-se a tais críticas, propondo um entendimento mais amplo do Surrealismo como uma “sensação” ou “espírito” que antecede a estruturação formal do movimento.
Ainda neste (brevíssimo) ensaio, Jorge de Sena também adota uma postura de defesa. Ele argumenta em favor de um Surrealismo concebido como uma manifestação perene de uma consciência humana nova que, por isso, sempre existiu. Esse posicionamento responde às críticas que viria a receber, especialmente de Mário Cesariny, líder do movimento em Portugal, e reafirma sua posição de poeta-testemunha. Sena menciona, por exemplo, a adoção de técnicas surrealistas em seu primeiro livro, Perseguição (1942), e seu refinamento em Coroa da Terra (1946), além de reivindicar ter sido um dos primeiros a escrever criticamente sobre o Surrealismo no país. Ainda assim, nunca se identificou como surrealista, como declarou no prefácio à segunda edição de Poesia I (1977).
E isto é suficiente, por ora, para evidenciar um caráter de sua obra que parece fundamental: esta interseção entre gesto poético e crítica caracteriza Jorge de Sena como um “poeta crítico”, uma marca distintiva de parte da poesia do século XX, como observou Octavio Paz (2012). Em última análise, Sena defende a plenitude do movimento surrealista como algo inextricavelmente ligado a uma consciência humana renovada e atemporal. Destaco o excerto a seguir, na qual Jorge de Sena faz a defesa de um surrealismo para além do Surrealismo:
O «surréalisme» não foi, nem é um movimento literário. Não incidiu apenas sobre o estilo; correspondeu à aparição de uma nova consciência do homem criador perante a vida. Poderia dizer-se que através dos tempos (sic), sempre houve «surréalistes», naquele sentido que Breton tão bem define, quando diz: «encontro em cada um deles um certo número de ideias preconcebidas, nas quais – muito ingenuamente – acreditavam»” (Sena, 1988, p. 215).
Há uma concordância salutar entre o pensamento bretoniano e a afirmação do poeta, na medida em que este último afirma que o Surrealismo vai além de ser simplesmente um movimento literário. Sua estruturação filosófica consiste na “aparição” de uma nova consciência do homem-criador diante da vida. Pergunto: em que consiste essa nova consciência? E em que momento se pode recuperar sua aparição? Pode-se considerar que uma consciência humana, surrealisticamente concebida, está relacionada ao encontro ou à descoberta de uma “visão mágica da vida”, capaz de despertar no ser do poeta um estado em que as antinomias tradicionalmente celebradas pela poesia e pelo pensamento lógico – vida e morte, real e imaginário, passado e futuro, comunicável e incomunicável, cima e baixo – deixam de ser percebidas como contradições.
É nesse ponto que reside o limite que separa o criador do poeta: o criador desaparece para dar lugar ao poeta, cujo ofício parte de uma posição individual – o ato de criação enquanto expressão singular –, que contribui, simultaneamente, com o “total dos tempos”. Assim, o ato de criação passa por um processo de metamorfose, tornando-se também um ato coletivo que participa da formação da humanidade. Ora, o poeta de Metamorfoses (1963) está aqui refletindo sobre uma consciência surrealista que, embora atemporal, é também histórica. Não seria irrelevante notar semelhanças entre essa concepção e a própria constituição de sua poética do testemunho, marcada por um compromisso inelutável com a verdade e a dignidade humanas. Se à poesia cabe a função formativa da sociedade, então ela precisa ser compreendida como “poesia-actividade do espírito”, em oposição à “poesia-meio de expressão”, como defendia Tristan Tzara, conforme aponta Jorge de Sena em seu ensaio.
Assim como Breton reconhece a existência prévia de um surréalisme na obra de poetas que antecederam o movimento estruturado – criando, a partir de critérios específicos, um cânone surrealista autoral que inclui Sade, Rimbaud e Lautréamont, entre outros, como exemplos da ascensão à consciência mágica da vida –, também os surrealistas portugueses elegeram seus próprios modelos. Em Portugal, Teixeira de Pascoaes foi considerado um poeta mais representativo que Fernando Pessoa, por ter congregado em sua obra o ímpeto ascendente essencial para o surrealismo português. Sob essa perspectiva, a questão do “atraso” na chegada formal do Surrealismo a Portugal torna-se irrelevante diante da construção de um movimento fértil. Jorge de Sena, de maneira acertada, sintetizou essa influência futura ao afirmar: “A influência do sobrealismo é incalculável e faz-se sentir em quem menos o supõe, e em toda a parte” (Sena, 1988, p. 216). De fato, esse vaticínio revela-se evidente ao observarmos o rio caudaloso de artistas que mantiveram – ou ainda mantêm – vínculos explícitos ou mais discretos com a aventura surrealista até os dias de hoje.
Jorge de Sena escreveu seu segundo texto sobre o Surrealismo em 1949, mais longo que o anterior, publicado originalmente na revista Seara Nova (1921–1985), importante e longevo periódico que abordava temas políticos, sociais e literários em Portugal. Do programa editorial da revista constam diretrizes que não apenas delineavam sua linha editorial, mas também encarnavam um propósito humanista e universalista, representando um projeto maior para a nação portuguesa.
Este segundo texto do poeta foi publicado em três partes, cada uma em um volume distinto da Seara Nova, acompanhado, ao final, de uma “Conclusão” e do poema “Ode ao surrealismo por conta alheia”, que mais tarde seria incluído em Pedra Filosofal (1950), especificamente na parte II, intitulada Poética. Esta é precedida por Circunstância (parte I) e sucedida por Amor (parte III), índices que parecem orbitar em torno de uma esfera surrealista. Desde o início, o poeta esclarece que o ensaio não é uma crítica direta à exposição surrealista realizada naquele ano de 1949, mas sim uma “revisão crítica do surrealismo por tal exposição sugerida” (Sena, 1949, p. 217). Este procedimento é semelhante à abordagem que ele adotaria mais tarde, em Metamorfoses e Arte de Música, quatorze e dezenove anos depois, respectivamente, configurando reflexões poéticas elaboradas a partir de objetos estético-musicais. O que se encontra, de fato, no ensaio tripartido de Jorge de Sena é um exercício refinado de análise sobre a atitude surrealista em contraste com o Surrealismo como movimento, aprofundando, expandindo e esclarecendo pontos que, devido às limitações dimensionais da publicação anterior, não puderam ser suficientemente desenvolvidos.
Jorge de Sena reafirma, com caráter ilustrativo, a ausência de pretensão do Surrealismo em ser apenas um movimento literário ou escola artística, ainda que seja praticamente impossível pensar na produção artística do século XX sem considerar sua influência ou as múltiplas transformações que ele gerou. O poeta parece reiterar essa visão ao compreender que a essência do Surrealismo está em ser uma aventura – um empreendimento que valoriza, acima de tudo, a liberdade individual e coletiva. Essa liberdade, segundo ele, não poderia ser plenamente alcançada no âmbito restritivo das estruturas formais de um movimento literário:
O surrealismo não pretendeu nunca ser uma escola literária embora seja impossível estudar e compreender a literatura de hoje desconhecendo-o ou menosprezando-o; assim como não é possível compreender as artes plásticas de hoje sem o reconhecimento da influência dos grandes mestres surrealistas, cujo surrealismo igualmente não visou, nunca, a doutrina particular das artes plásticas. […] As escolas de pintura, bem mais que as escolas literárias, são de ordem técnica. […] O surrealismo plástico não discutiu nem doutrinou sobre este ponto, a não ser negativamente, para afirmar, em contrapartida, que todos os meios são lícitos, desde o extremo academismo ao extremo abstracionismo, para significar os mais profundos impulsos do autor (Sena, 1988, p. 217-218).
Em seguida, o poeta afirma que os traços presentes no Surrealismo formal também podem ser identificados em autores anteriores. Contudo, nesses casos, tais traços configuram apenas um ímpeto de atitude surrealista, sem que isso implique que esses autores possam ser considerados surrealistas no sentido restrito que define as estruturas do movimento – pois, de fato, não o foram. O Surrealismo atravessa essas atitudes, mas não se reduz integralmente a elas:
O surrealismo é, na sua essência, uma aventura que excede as possibilidades humanas correntes. O reclamar de Sade, dos românticos alemães, de Rimbaud, de Lautréamont, que caracteriza o tom dos panfletos surrealistas, é uma tremenda e dolorosa responsabilidade, para a qual não estão talhados todos os homens, e que esmaga tragicamente aqueles mesmos cuja coragem os destina a essas aventuras (Sena, 1988, p. 218).
Por isso, o poeta acentua e identifica, sobretudo, no caráter revolucionário do Surrealismo uma atitude intrínseca e inerente a esse movimento. A consciência da precariedade da liberdade individual e coletiva orienta a aventura surrealista em direção à conquista de uma plena liberdade dos indivíduos, mediada por uma consciência revolucionária historicamente situada. Esse aspecto, embora apenas insinuado no ensaio anterior, ganha destaque aqui. Nesse contexto, o Surrealismo transcende o âmbito da arte como simples fruição e se torna um movimento engajado na prática de transformação da ordem social vigente. Vale lembrar, ainda, que a atitude surrealista dissolve as barreiras entre o homem-criador e o artista:
a liberdade, a luta humana pela liberdade individual ou coletiva, é profundamente surrealista. E é precisamente a consciência de que a liberdade é precária se não é garantida pela liberdade alheia, que, por um lado, dá consciência revolucionária ao surrealismo, e por outro, o leva a fazer sua a frase célebre de Lautréamont acerca da poesia, que deverá ser feita por todos e não por um. A fraqueza do surrealismo residiu sempre nisto: em ser uma aventura prodigiosa, que exige qualidades pessoais e de preparação excepcionais, e que, ainda por cima, decorre sempre a arte e a política (Sena, 1988, p. 219).
Entretanto, a luta humana presente em autores como Sade, Lautréamont, William Blake, os românticos alemães e tantos outros – inclusive na poesia-testemunho – não deve ser confundida com o sentido que o termo Surrealismo adquiriu a partir de André Breton. O que se observa nesses autores e nos surrealistas modernos é a busca por uma liberdade humana vinculada à integração da consciência na natureza, configurando uma atitude surrealista que transcende as barreiras históricas.
Essa continuidade histórica, contudo, dificulta distinguir a atitude surrealista – percebida na identificação de uma “sobre-realidade” evocada, por exemplo, no primeiro ensaio de 1944 sobre o “Sobrerealismo” – do Surrealismo propriamente dito. A confusão entre essas categorias muitas vezes surge da tentativa de explicá-las por meio de circunstâncias históricas, o que mais obscurece do que esclarece a diferença.
Nesse sentido, Jorge de Sena reafirma, como em textos anteriores, a proposição de Breton sobre um ponto de intuição em que ideias e conceitos antitéticos deixam de ser percebidos como opostos, superando antigas antinomias. Para Sena, a atitude surrealista haveria de reconhecer os contrários como congruentes, algo evidenciado na prática escrita surrealista, que justapõe imagens díspares – como no jogo do “cadáver esquisito” ou na escrita automática. Essas práticas forçam a imaginação humana a buscar similitudes e congruências entre as imagens, resultando em um automatismo psíquico que muitas vezes se confunde com a própria essência do Surrealismo.
Sena identifica nessa equivalência exata entre prática e essência três consequências imediatas para o Surrealismo, que ele menciona diretamente:
a realidade é muito mais vasta do que a pretende um cientismo atrás do qual se esconde um imenso terror da complexidade do real; e a convicção, igualmente experimental, de que as virtualidades humanas são mais poderosas, violentas e terríveis que quanto pretendem os fariseus de qualquer espécie. Significa, ainda, a convicção de que só o livre exercício lúdico de todas as apetências humanas, por absurdas que sejam, é capaz de harmonizar a vastidão da realidade natural e a intensidade das virtualidades humanas, tornando feliz o homem (Sena, 1988, p. 222).
E, ao refletir, conclui que:
Daí que o surrealismo, sendo materialista dialéctico e apoiando calorosamente a acção revolucionária, se recuse a submeter-se e a submeter esta última a necessidades imediatas de ordem política, porque, se os compromissos podem ser oportunamente úteis politicamente, neles se perde sempre, irremediavelmente, alguma dignidade humana. Precisamente porque não é idealista, a atitude surrealista rebela-se contra qualquer sacrifício, sabedora, que é, de como o homem dificilmente recupera a liberdade que alguma vez cedeu (Sena, 1988, p. 222).
A possível perda de alguma dignidade é o que instaura no Surrealismo uma resistência em aderir a agenciamentos políticos institucionalizados. Tal adesão comprometeria o sentimento absoluto de liberdade essencial à aventura surrealista. Isso também reflete o gesto poético de Jorge de Sena, para quem a poesia deve ser, acima de tudo, um testemunho – de si mesmo e do outro – preservando a dignidade humana como valor primordial. Assim, o poeta estabelece uma conexão precisa entre sua crítica ao Surrealismo e sua própria poesia-testemunho.
Essa ligação se torna ainda mais evidente ao enfrentarmos as críticas de Mário Cesariny, nas quais Sena antecipa, de forma pioneira, um valor que incorporará à sua poética, teorizado mais tarde no prefácio da coletânea Poesia-I. Por fim, o poeta questiona: qual é, afinal, a distinção fundamental entre uma atitude surrealista e o Surrealismo do século XX? Sena provoca: “Mas… perguntará o leitor: se o surrealismo é isso que foi descrito, se a atitude surrealista é tal como foi dito – que diferença há entre essa atitude e a de qualquer artista profundamente sério, atento à liberdade e ao sentido da criação?” (Sena, 1988, p. 222-223).
E o poeta responde:
Nenhuma, a não ser que o surrealista não considera o estado de artista como diferente de qualquer outro, nem vê na arte mais do que um meio de libertação. Claro que – e tem sido, por vezes, um contra-senso de certos surrealistas – isso implica, precisamente (sic) que dos meios de expressão artística se tenha um domínio total, tão completo, que o fazer exactamente feito seja, no acto da criação libertadora, um resultado perfeitamente óbvio. Porque, se é libertar que se busca, a libertação será tanto mais autêntica quanto mais completamente expresso o que há a libertar (Sena, 1988, p. 223).
Ao prosseguir no texto, o poeta analisa a exposição surrealista realizada em Portugal, destacando a publicação do catálogo, que inclui três cadernos surrealistas: Balanço das atividades surrealistas em Portugal, de José-Augusto França; Proto-poema da Serra de Arga, de António Pedro; e A ampola miraculosa, de Alexandre O’Neill. Para Jorge de Sena, o alinhamento desses três nomes ao Surrealismo é indiscutível, mas ele adverte:
Mas, sem dúvida também, este movimento, como se apresenta agora entre nós, quer pelas manifestações actuais, quer pela orientação do «balanço» efectuado por J.-A. França, é principalmente uma actividade de plásticos com talento literário ou literatos a quem as actividades plásticas fascinam (Sena, 1988, p. 223).
O poeta retoma a questão da diferença entre uma atitude surrealista e a prática surrealista enquanto escola, ponderando: “se o surrealismo não é escola de pintura nem escola literária, mas, antes de mais, uma atitude do espírito, parece evidente que ser-se surrealista esporádica ou intermitentemente só numa questão de grau, ou de escola, se distingue do que fazem e são os surrealistas encartados” (Sena, 2013, p. 223). Embora essa questão parecesse resolvida no ensaio anterior, em que o autor evoca a consciência do surrealista em não se reconhecer diferente das demais pessoas por ser autor, aqui Jorge de Sena dá ênfase ainda maior ao conceito de “atitude do espírito”.
Neste segundo texto, o poeta também discorda da análise de José-Augusto França sobre as causas da possível ausência do movimento surrealista em Portugal, atribuídas à “ausência de tradições duma imaginação criadora e duma inteligência e duma cultura atentas” (apud Sena, 1988, p. 224) e ao “circunstancialismo que vem limitando a vida portuguesa” (apud Sena, 1988, p. 224). Sena reconhece que essas causas são válidas e, inclusive, emprega argumentação semelhante em sua contracrítica à recepção inicial de sua obra na década de 1940. No entanto, segundo ele, essas mesmas causas, de forma ambígua ou até dialética, justificariam também o surgimento e a formação do movimento surrealista em Portugal. Sobre isso, Jorge de Sena (1988, p. 224-225) afirma:
Sempre assim foi. Porque não há uma cultura conscientemente elaborada, mas apenas viva, à custa de muitos sacrifícios, naqueles espíritos que, para si próprios e para uma colectividade ignara, a sustentam, tudo entre nós parece esporádico, logo que, de umas leituras ou de uns contactos mais ou menos parisienses, venha, para outros, a descoberta da pólvora.
Apesar dessa aparente discordância – que, na verdade, não se configura como tal, já que o poeta de Metamorfoses compreendeu a questão sob uma perspectiva dialética –, Jorge de Sena elogia as excelentes qualidades do Balanço de José-Augusto França. No final do ensaio, avança para a análise dos três objetos surrealistas discutidos por França.
O poeta destaca, em especial, A ampola miraculosa, de Alexandre O’Neill, um breve “romance” surrealista que apela às nossas memórias infantis, apresentadas de forma quase justaposta, evocando o efeito da colagem – um procedimento digno de nota no romance em questão. Por sua vez, António Pedro ganha destaque em um parágrafo curto, mas significativo, que faz justiça à singularidade de sua obra.
Jorge de Sena escreve de maneira hiper elogiosa ao sugerir uma superioridade qualitativa de um “surrealismo regionalista” na prosa narrativa de António Pedro. Esse surrealismo, segundo Sena, seria antilírico ou mesmo oposto à predominância lírica associada ao espaço-tempo do Minho. No entanto, o poeta não explicita os contornos ou a forma exata desse conceito de “surrealismo regionalista”:
O Proto-poema da Serra de Arga […] posto ao lado da prosa magnífica de Apenas uma Narrativa, (não sem razão é dedicada a Aquilino esta obra) de ambos os trabalhos sobressai, curiosamente, um surrealismo regionalista, que corrige, com salutar brutalidade, a visão predominante lírica do Minho de um Pedro Homem de Melo. Esse regionalismo, entre plástico e literário, entre o pormenor concreto e «realista» e o transformismo imaginoso, é, sem dúvida, uma característica da personalidade de A. Pedro, igualmente válida para os seus quadros e para as suas prosas críticas ou ocasionais, e defende-o de certo abstraccionismo cosmopolita em cujo exercício, citadinamente, se tem perdido algum surrealismo (Sena, 1988, p. 227).
Jorge de Sena manteve sua crítica hiper elogiosa à obra de António Pedro até os últimos ensaios que escreveu sobre o Surrealismo, ou seja, ao longo de toda a sua trajetória pública. Essa postura, no entanto, foi alvo de ressalvas, tanto por parte de surrealistas quanto da crítica especializada, que considerou Apenas uma narrativa uma obra demasiadamente fraca para sustentar a importância e o relevo atribuídos a ela por Sena.
De forma ilustrativa, António Maria Lisboa respondeu à avaliação crítica de Sena com uma conferência bastante ácida no Jardim Universitário das Belas Artes (JUBA), em maio de 1949. Nessa ocasião, desqualificou tanto a competência crítica de Jorge de Sena para julgar o Surrealismo quanto as habilidades artísticas de António Pedro como surrealista. Leia-se:
A atividade Surrealista não é, como Jorge de Sena quere é (e outros também) uma simples acção libertadora das coisas que chateiam, mas um golpe fundo, e de cada vez que é dado, na Realidade presente. Não é de facto uma simples purga seguida de um dia de descanso e caldos de galinha, mas revolta permanente contra a estabilidade e cristalização das coisas. Não é mero exercício para se dormir melhor na noite seguinte, mas esforço demoníaco para se dormir de maneira diferente (Lisboa, 1949 apud Tchen, 2001, p. 114).
Entretanto, Jorge de Sena jamais tratou o Surrealismo como uma “simples acção libertadora”, como se pode observar nos ensaios que escreveu. A conclusão deste texto inclui ainda uma breve análise de outros artistas que participaram da Exposição, destacando os nomes de Fernando de Azevedo e António Da Costa. O poeta observa que, em suas obras, há uma certa tendência para o abstracionismo, que “pode ser uma solução da pintura como pintura [… e poderá interessar ao surrealismo” (Sena, 1988, p. 230). Por fim, é importante ressaltar o que o poeta escreveu sobre o Bestiário privado, de António Pedro, que considera esteticamente muito próximo de Apenas uma narrativa:
Não são da sua melhor pintura os quadros desta vez expostos. Mas são encantadores, e bem irmãos de Apenas uma narrativa, aquelas páginas de Bestiário privado, em que desenho e poesia se reúnem numa manifestação de exuberância individualista, que é mais da sua personalidade que do surrealismo que tão naturalmente viria a apetecer-lhe… Essa exuberância, que, na pintura, por vezes lhe confina em delicadeza de factura e num lirismo de pormenor, que não é habitual na nossa pintura de hoje, é que o faz então parecer (e até, por vezes, ser) um amador excelentemente dotado de todas as manhas dos profissionais, e não um profissional com deficiências de amador (Sena, 1988, p. 231).
No excerto acima, há mais uma vez a reiteração da sincera apreciação crítica de Jorge de Sena pelo trabalho de António Pedro. Esse gesto de reconhecimento se repetirá no ensaio O surrealismo em Portugal, originalmente escrito em inglês e datado de outubro de 1974: “Em 1942, António Pedro publicou Apenas uma narrativa, uma bela e poética novela que permanece uma das melhores obras surrealistas em qualquer língua” (Sena, 1988, p. 242). Talvez, assim como toda a tradição cria para si o seu próprio cânone, Sena esteja a criar o seu panteão surrealista próprio, encabeçado por António Pedro.
Ou seja, não se trata apenas de conferir justiça à obra de António Pedro no contexto do Surrealismo que se desenvolvia em Portugal, como pensava o poeta, mas também de inseri-lo no panteão do Surrealismo universal, reforçando todas as qualidades que ele sempre identificou na obra daquele surrealista, com um toque de “surrealismo regionalista” sui generis, sobre o qual não explicou claramente sua diferença em relação a outros tipos de Surrealismo.
Por fim, o poeta conclui este ensaio com o poema “Ode ao surrealismo por conta alheia” – poema do qual, aliás, deriva parte do título deste ensaio – que mais tarde seria publicado em Pedra Filosofal (1950), como já mencionado anteriormente.
III JORGE DE SENA, A ÚLTIMA AVENTURA – E UMA CONCLUSÃO
«Estão podres as palavras…»
Estão podres as palavras – de passarem
por sórdidas mentiras de canalhas
que as usam ao revés como o carácter deles.
[…]
Usá-las puras – como serão puras
se logo a infância as cobre de seu cuspo?
Estão podres: e com elas apodrece o mundo
e se dissolve em lama a criação do homem
(Sena, 2013, p. 694)
Este breviário sobre uma parte do ensaísmo crítico de Jorge de Sena dedicado ao Surrealismo, composto por cinco ensaios escritos e publicados ao longo de sua vida, chega aos momentos finais com os últimos textos do poeta. Nesse contexto, o terceiro texto sobre a aventura surrealista – na ordem sequencial aqui apresentada – trata da primeira aparição do Surrealismo em Portugal, feita por Agostinho Campos, em 1925. Sobre o “ilustre catedrático”, o poeta escreveu: “Agostinho Campos, que era feroz contra as modernidades e guardião da pureza da língua, além de partidário do chamado ‘reaportuguesamento’. Quando era jovem (porque o havia sido), fizera parte, em Coimbra, do grupo de amigos de António Nobre, que lhe chamava, segundo se conta, D. Agostinha” (Sena, 1988, p. 233).
É, então, curioso pensar que a primeira referência a uma vanguarda moderna tenha saído da pena de um perfil conservador e contrário às “modernidades”, como o descreve Jorge de Sena. Esse artigo, aliás, gerou uma reação contra o poeta por parte da família de Agostinho Campos. Dessa forma, Jorge de Sena expressa surpresa ao apontar que a primeira referência ao Surrealismo em Portugal ocorreu quase simultaneamente à publicação do primeiro Manifesto do Surrealismo, de Breton, um ano depois:
Pelos idos de 1936-38, não posso precisar exactamente, andava eu a fazer-me algum conhecimento da poesia portuguesa, e foi quando deparei com a primeira referência que vi ao surrealismo, feita por Agostinho Campos em 1925. Pois é verdade – em 1925, e deve pois ter sido a primeira referência ao movimento que em Portugal se fazia, e logo pouco depois da publicação do Primeiro Manifesto de Breton, em 1924 (Sena, 1988, p. 233).
O poeta destaca, ainda, a ferocidade com que Agostinho Campos inicia seu texto, dirigindo “setas envenenadas” a Sá-Carneiro e a alguns “meninos traquinas” – obscurecendo os referentes e destinatários imediatos da crítica – que, de acordo com Jorge de Sena, certamente corresponderiam a Fernando Pessoa, Almada Negreiros, Alfredo Guisado, António Ferro e outros que o poeta não arrola. Apesar do desvario, Jorge de Sena reconhece o mérito de Agostinho Campos por se mostrar, diante das diversas limitações da época, bem-informado sobre os movimentos de vanguarda, “quiçá mais que vários dos vanguardistas eles mesmos” (Sena, 1988, p. 235), praticamente no calor do momento.
No quarto texto, Jorge de Sena traça um panorama do Surrealismo em Portugal, reafirmando os posicionamentos previamente assumidos nos textos anteriores. O poeta aborda o surgimento do Surrealismo, em 1947, destacando sua breve, mas profícua duração nas artes: “O movimento como tal não durou muito, mas deixou uma profunda marca, quer na literatura (sobretudo na poesia), quer na pintura”. Esse juízo, evidentemente, contrapõe-se à afirmação feita por ele em texto anterior, sobre a radical influência do Surrealismo, mesmo em obras nas quais sua presença é pouco perceptível. Tal radicalidade, aliás, será a responsável pela inserção e permanência do Surrealismo na cultura e na vida literária do século XX português após a década de 40.
Jorge de Sena retoma, ainda, o fato curioso de que a primeira referência ao Surrealismo em Portugal tenha partido insolitamente de um crítico bastante conservador e avesso às modernidades, Agostinho de Campos. Além disso, faz um desenho histórico do impacto do pós-guerra no desenvolvimento do Surrealismo, como o conhecemos hoje. O poeta também sublinha e reforça o papel fundamental de António Pedro no Surrealismo português, papel que será frequentemente menosprezado por outros surrealistas. Escreve:
O que aconteceu com alguns jovens poetas e artistas em 1947, sob a liderança de um poeta mais velho e pintor, António Pedro (1909-1967), tornou-se possível por várias e curiosas circunstâncias. António Pedro tinha, durante os anos 300 e começos de 40, tentado, em vão, ser reconhecido como poeta e artista de Vanguarda, no despertar da
geração de 1915. A sua poesia desenvolvera-se de um elegante tradicionalismo em exercícios de Vanguarda que, no entanto, conservou o delicado sentido da terra e das coisas vivas que caracterizam a sua obra. Em 1940, uma exposição da sua pintura conjuntamente com pintura de António Da Costa (n.1917) foi a afirmação de dois artistas igualmente distantes quer do neo-realismo quer da mitigada Vanguarda, ou do convencionalismo do séc. XIX que estavam ainda em voga nos círculos conservadores. De facto, as obras de ambos eram surrealistas sem o rótulo ou pretensão de serem um movimento. Em 1942, António Pedro publicou Apenas uma narrativa, uma bela e poética novela que permanece uma das melhores obras surrealistas em qualquer língua (Sena, 1988, p. 244; grifos meus).
Talvez seja precisamente em um “delicado sentido da terra e das coisas” (Sena, 1988, p. 244) que se encontre o sentido para a designação diferenciada que Jorge de Sena faz da obra de António Pedro, distinguindo-a como um “surrealismo regionalista” que, até este ensaio, não encontra um suporte crítico claro para caracterizá-lo. Sua afirmação quase obsessiva em torno de António Pedro acompanha-o do início ao fim de seus textos, com poucas elucidações e muito entusiasmo, reafirmando a mesma posição em seu último texto sobre o assunto, escrito e publicado no mesmo ano em que faleceu, 1978, em Santa Bárbara. Cito-o:
E, no entanto, António Pedro nesse mesmo ano [1942] publicava uma das grandes obras-primas da prosa e da ficção portuguesas, e sem dúvida uma das mais admiravelmente conseguidas tentativas de novela surrealista em qualquer língua, Apenas uma narrativa. Mas era realmente «surrealismo», pelo menos na completa consciência literária dele? Porque este livro estilisticamente e estruturalmente revolucionário transbordava de um prazer tradicional que Pedro praticava com as delícias de quem saboreia um manjar que tem tradições lusitanas desde as pompas de prosa de um João de Barros quinhentista: o gosto de explorar os efeitos da língua pelo gosto de usá-la com sumptuosa riqueza e inventiva capacidade, para ficar-se uma pessoa aí mesmo (Sena, 1988, p. 253; grifos meus).
Jorge de Sena faleceria quatro anos após escrever o texto, de que a citação acima é excerto, e seu juízo crítico sobre a obra de António Pedro permanece inalterado, como já afirmei anteriormente. Aliás, sua avaliação do autor de Apenas uma narrativa se fortalece à medida que passa da importante consideração de sua obra como uma das primeiras manifestações surrealistas em Portugal para a afirmação de sua relevância na literatura mundial. Em outras palavras, António Pedro é enaltecido pela crítica progressiva de Jorge de Sena, tornando-se um autor-monumento para o poeta. No excerto acima, também se pode encontrar uma pista para a afirmação de um certo “surrealismo regionalista” que Sena identifica como digno de nota na obra de António Pedro: parece claro que, na obra deste poeta, se conserva, de sua veia tradicionalista, o apego às coisas da terra, às coisas vivas que, no limite, refletem seu horizonte, sua paisagem e seu pertencimento telúrico, penetrando profundamente nas suas composições surrealistas e diferenciando-o dos demais.
Por fim, Jorge de Sena reitera: “Como movimento, o surrealismo, em Portugal, chegou tarde e viveu pouco. Mas a sua insidiosa presença tinha sido sentida nos anos 30 e 40; e os resultados da sua tardia aparição ainda pairam por sobre as artes e as letras portuguesas” (Sena, 1988, p. 244). De fato, Jorge de Sena pensava no Surrealismo como um movimento estruturado em torno de personalidades, quando afirmou que ele “chegou tarde e viveu pouco”. No entanto, o Surrealismo chegou em Portugal exatamente quando tinha que chegar, que foi em 1947, sem dever rigorosamente nada (ou muito pouco) ao tempo e espaço que o separava de seu surgimento na França. A sobrevivência do Surrealismo é facilmente comprovada pelas muitas derivações que essa aventura tomou ao longo do século XX português – como o Surreal-Abjeccionismo de Pedro Oom – influenciando a produção artístico-poética e a sensibilidade de forma única.
E não apenas isso: o ímpeto surrealista transcende o século XX e adentra o século XXI com a força do sonho, da aventura e do amor – elementos de que tanto precisamos hoje, especialmente no contexto das celebrações do centenário do Primeiro Manifesto do Surrealismo. Esse marco tem sido amplamente comemorado por meio de chamadas para publicações, lançamentos de livros e antologias importantes, como Navio de Espelhos (2024), organizado por Maria Lessa, que reúne pela primeira vez, no Brasil, a poesia de Mário Cesariny, e Livro do Tigre (2024), de Isabel Meyrelles, sob organização de Ana C. Joaquim. Além disso, diversos colóquios têm reunido estudiosos e pesquisadores interessados na temática. Dessa forma, a suposta brevidade do surrealismo português parece carecer de fundamento, enquanto a vitalidade da aventura dos surrealismos em língua portuguesa segue como uma ilustração sensível e apurada de uma força surrealista sempre perene.
REFERÊNCIAS
BUENO, Danilo Rodrigues. A função poético-crítica em Jorge de Sena: problemáticas do poeta moderno. 139 f. Dissertação (Mestrado em Letras – Literatura Portuguesa) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – Universidade de São Paulo, 2009. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8150/tde-04022010-
103714/publico/DANILO_RODRIGUES_BUENO.pdf Acesso: 14 jun. 2024.
FRANCO, António Cândido. Notas para a compreensão do surrealismo em Portugal. Lisboa: Editora Licorne, 2012.
PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. de Ari Roitman e Paulina Wacht. 2a Ed. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
PAZ, Octavio. Os Filhos do Barro: do romantismo à vanguarda. Trad. de Ari Roitman e Paulina Wacht. 2a Ed. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
REVISTA DE IDEIAS E CULTURA – O Tempo e o Modo, nº 59, Abril de 1968. Falando com Jorge de Sena. Disponível em: https://pt.revistasdeideias.net/ptpt/o-tempo-e-o-modo/in-issue/iss_0000001751/121. Acesso em: 21 nov. 2024.
ROCHA, Clara. Seara Nova. Disponível em: https://modernismo.pt/index.php/s/808-seara-nova. Acesso em: 1 jun. 2024.
SANTOS, Gilda. Uma alquimia de ressonâncias: O Físico Prodigioso de Jorge de Sena. 200f. Tese (Doutorado em Letras Vernáculas – Literatura Portuguesa), Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1989. Disponível em: https://pantheon.ufrj.br/bitstream/11422/1653/3/372626.pdf. Acesso em: 14 jun. 2024
SENA, Jorge de. Poesia 1. Edição de Jorge Fazenda Lourenço. Guimarães Editores (Edição Babel), 2013.
SENA, Jorge de. Estudos de Literatura Portuguesa – III. Edição de Mécia de Sena. Lisboa: Edições 70, 1988.
SENA, Jorge de. “Poesia Sobrerealista”. Jornal O Globo, São Paulo, 1944. In: SENA, Mécia de (ed.). Estudos de Literatura Portuguesa – III. Lisboa: Edições 70, 1988.
SENA, Jorge de. “Surrealismo (a propósito de uma exposição e de algumas publicações conexas)”. Seara Nova, Lisboa, v. 28, n. 1108, de 2 de abril de 1949; n. 1117, de 4 de junho de 1949; n. 1121, de 2 de julho de 1949. In: SENA, Mécia de (ed.). Estudos de Literatura Portuguesa – III. Lisboa: Edições 70, 1988.
SENA, Jorge de. “A primeira referência ao Surrealismo feita em Portugal”. Diário de Notícias, Lisboa, 10 e 17 de janeiro de 1974. In: SENA, Mécia de (ed.). Estudos de Literatura Portuguesa – III. Lisboa: Edições 70, 1988.
SENA, Jorge de. “O Surrealismo em Portugal”. Outubro de 1974. In: SENA, Mécia de (ed.). Estudos de Literatura Portuguesa – III. Lisboa: Edições 70, 1988.
SENA, Jorge de. Poesia-I. Lisboa: Círculo de Poesia/Moraes Editores, 1977.
TCHEN, Adelaide. A aventura Surrealista. Lisboa: Edições Colibri, 2001.
NOTAS
1 Publicou-se, em abril de 1968, o número 68 de O Tempo e o Modo, homenageando Jorge de Sena. O número reuniu textos de António Ramos Rosa, Eduardo Lourenço, Luís Francisco Rebello e João Rui de Sousa, que davam conta da profusão genológica da obra seniana, cada um focalizando um aspecto próprio da poesia, da ficção ou do teatro. O número encerra-se com uma entrevista composta de 13 perguntas a Jorge de Sena. Para este ensaio, interessa a resposta que o poeta fornece à pergunta de número 10: “Que trabalhos o absorvem, neste momento?”
2 Estas cinco traduções não acompanham o ensaio na versão que aparece no volume Estudos de Literatura Portuguesa – III, mas podem ser encontradas na antologia Poesia do Século XX – de Thomas Hardy a C. V. Cattaneo (1978), cuja seleção e tradução integral é de inteira responsabilidade de Jorge de Sena.
FONTE: SANTOS, Alessandro Barnabé Ferreira. Jorge de Sena, poeta: leitor do Surrealismo – por conta alheia. Revista Desassossego, São Paulo, v. 16, n. 32, jul./dez. 2024, p. 24-42.