Neste artigo, os autores se debruçam sobre um aspecto ainda a ser bastante explorado da obra seniana que é a sua atuação política, mais especificamente a sua visão de uma comunidade de países lusófonos. Aqui, o foco recai sobre as críticas literárias, feitas pelo escritor, de autores africanos. Chama a atenção no artigo a “precocidade” deste entendimento de Sena, uma vez que as suas primeiras resenhas datam de 1942, quando ele tinha pouco mais de vinte anos e acabava de publicar seu primeiro livro de poemas. A compreensão da necessidade de os países lusófonos se lerem mutuamente é algo que o poeta manterá ao longo de toda a vida.
Lurdes Macedo[1] – Universidade Lusófona (CUP) e CICANT
Nuno Bessa Moreira[2] – Universidade Lusófona (CUP) e CITCE
Introdução: Jorge de Sena de olhos postos em África
Jorge de Sena (1919-1978), um dos mais fecundos intelectuais portugueses do século XX, manifestou desde cedo a sua liberdade de pensamento, recusando sacrificá-la perante correntes literárias ou ideologias políticas, o que o levou a exilar-se no Brasil a partir de 1959, e nos Estados Unidos a partir de 1965, onde viveu até ao final da sua vida. Autor proscrito pelo regime de Salazar, legou uma vasta obra ao património da cultura de língua portuguesa, a qual é reconhecida pela relevância e pela originalidade da poesia e da ficção, bem como pela renovação dos estudos camonianos, sobretudo nos restritos círculos de investigadores que a ela se dedicam. Porém, conforme evidenciam alguns desses investigadores (e.g., Santos, 2019; Baltrusch, 2019), outros aspetos centrais do legado intelectual de Jorge de Sena permanecem por estudar. O seu pensamento sobre a interdependência cultural entre Portugal, o Brasil, as então colónias e as diásporas – tema sobre o qual Sena se debruçou ao longo do seu percurso em numerosos textos e alocuções públicas – será um dos aspetos ainda por trazer à luz de entre o seu extenso legado (Cunha et al., 2018; Macedo, 2023).
A partir da análise de dois textos que marcaram a estreia de Jorge de Sena na crítica literária publicada na imprensa especializada[3], em 1942, este estudo procurará compreender se o autor, ao debruçar-se sobre obras poéticas com origem em dois dos então territórios portugueses em África, estaria a demonstrar uma precoce apetência para se posicionar sobre a complexa questão das colónias, sobretudo a partir do viés da autonomia das suas culturas, abrindo o caminho a uma reflexão mais alargada às possibilidades de construção de uma comunidade (inter)cultural de língua portuguesa.
Sugerimos esta denominação, para aquela que hoje poderá ser entendida como comunidade lusófona, por duas razões que se prendem com o respeito devido ao rigor do pensamento de Jorge de Sena. Primeiro, porque no período em que o autor escreveu os textos que subsidiam esta proposta, a controversa noção de lusofonia não havia ainda entrado no léxico da língua portuguesa. Em boa verdade, nunca saberemos se a lusofonia seria uma ideia à qual Jorge de Sena estaria disposto a aderir se tivesse vivido o suficiente para com ela se familiarizar: por um lado, por não corresponder com exatidão às propostas ensaiadas nos seus textos e nas suas intervenções públicas; por outro, por não ser consensualmente aceite nem no Brasil, nem nos países africanos de língua oficial portuguesa, cuja autonomia cultural o autor muito estimava. Segundo, porque se é certo que Jorge de Sena foi pensando esta comunidade a partir das possibilidades de construção de um património cultural comum que afirmasse a sua dimensão e a sua diversidade, discorrendo sobre as oportunidades e os óbices que se colocavam a tal empreitada, também é certo que o fez num tempo anterior à globalização que introduziu a noção de interculturalidade. Daí a opção por colocar entre parêntesis o prefixo “inter” na adjetivação desta comunidade que o autor conjeturou a partir das suas virtualidades culturais.
As recensões críticas da autoria de Jorge de Sena a analisar neste estudo foram ambas publicadas no número 1 da revista Aventura[4], em maio de 1942: a primeira incide sobre Poemas de África, de António de Navarro, comparecendo entre as páginas 46 e 49[5]; e a segunda aborda Ambiente, do poeta cabo-verdiano Jorge Barbosa, entre as páginas 49 e 50[6]. Estes dois textos são precedidos por “Crítica Literária, Poesia”, nas páginas 45 e 46[7], uma breve, mas densa reflexão de Jorge de Sena sobre a crítica literária e a poesia que se faziam naquela época, na qual o jovem estreante deixa claros os seus preceitos para o exercício de tais escritas. Este texto introdutório será tomado em consideração, na medida em que é nele que Jorge de Sena entretece considerações que servem de referencial para a análise das duas recensões objeto deste estudo. De salientar ainda a necessidade de enquadrar a publicação destas recensões no contexto da época, politicamente complexo, caracterizado pelo endurecimento do regime ditatorial do Estado Novo, e com cerceamento de liberdades fundamentais, contra o qual um jovem com era então Jorge de Sena reagiu por escrito, escolhendo criteriosamente um género mais resguardado da censura para o fazer.
2 – Jorge de Sena e o início de um itinerário intelectual ligado às colónias durante o apogeu do Estado Novo
Jorge de Sena revelou, desde muito jovem, interesse pela cultura produzida nas então colónias portuguesas, bem como preocupação com a situação política e social que nelas se vivia. Tal atenção dedicada às colónias talvez se tenha ficado a dever, em parte, à sua trajetória de vida, marcada pelo desejo de seguir os passos do pai, comandante da Marinha Mercante. Jorge Fazenda Lourenço, destacado estudioso da vida e da obra de Sena, confirma que o autor entrou para a Escola Naval aos 17 anos, tendo partido
(…) a 2 de Outubro de 1937, no navio-escola Sagres, para a viagem de instrução de cadetes – viagem que durará até Fevereiro do ano seguinte, proporcionando-lhe um primeiro contacto com a África (Cabo Verde, S. Tomé, Angola), o Brasil e as Canárias, e acima de tudo com o Mar (Lourenço, 1987, p.7).
Esta viagem parece ter sido decisiva para o percurso que viria a trilhar daí em diante, ao proporcionar-lhe o primeiro contacto direto com as colónias africanas de Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Angola, e com o Brasil, aos quais dedicaria atenção em muitos dos textos e das intervenções públicas que assinou ao longo da sua trajetória. Este interesse deve ser, antes de mais, observado a partir do contexto em que Jorge de Sena iniciou a sua atividade enquanto intelectual com obra publicada, em 1942. Estávamos então no início da década de 1940, com o regime autocrático do Estado Novo em plena consolidação, após o enorme aparato da Exposição do Mundo Português. Este acontecimento político-cultural de dimensão inédita, realizado precisamente em 1940, serviu não só para assinalar as comemorações centenárias da fundação de Portugal e da restauração da independência face a Espanha, como também, e sobretudo, para legitimar o ideário do próprio regime.
De acordo com Cunha (2001), a exposição albergava três secções, para além das áreas de lazer: a Secção Histórica, que constituía a componente central da exposição; a Secção da Vida Popular e a Secção Colonial que, sendo menores, exibiam “por um lado a perenidade da alma nacional que o povo preserva e por outro a visão do Império que actualiza a grandiosidade do passado português” (Cunha, 2001, p. 80). Sobre a Secção Colonial, o autor enfatiza a sua perificidade no espaço expositivo, numa analogia à situação geográfica das colónias face à metrópole, e a folclorização das aldeias indígenas, cuja diversidade era anulada pela narrativa de uma suposta “união espiritual” sob a mesma governação política. Em suma, o poderio de Portugal sobre os territórios coloniais em África e na Ásia foi ostensivamente demonstrado nesta exposição, através de “bijagós, bochimanes e timorenses, (…) como ilustração e prova da vastidão da nação e da aceitação do domínio que sobre eles se exerce” (Cunha, 2001, pp. 83 – 84).
Apesar das perseguições aos opositores ao Estado Novo, Jorge de Sena não temeu demonstrar a sua liberdade de pensamento nas suas primeiras recensões críticas. Aliás, esta liberdade de pensamento, da qual nunca prescindiu, viria a constituir umas das característica centrais do seu percurso intelectual. Cumpre destacar, pela sua relevância, o contributo crítico de Picchio (1998) sobre a matéria em apreço, patente no título da intervenção apresentada num Colóquio sobre Jorge de Sena, em agosto de 1998, no Brasil: Jorge de Sena e a cor da Liberdade. No texto desta intervenção, a filóloga italiana convoca e problematiza a ideia de liberdade no pensamento e na trajetória do autor, ao longo do tempo, ressaltando o quanto estes foram avessos a todo o tipo de revisionismos.
É no exercício dessa liberdade que Jorge de Sena, de forma notoriamente precoce, publica, em maio de 1942, as suas primeiras recensões críticas na imprensa especializada, debruçando-se sobre obras poéticas que, não sendo as mais auspiciosas para a sua afirmação enquanto estreante neste mister, poderiam ainda comprometer a sua situação face ao regime político de então.
3 – Jorge de Sena, a crítica literária e a poesia: contra o velho distanciamento, a favor de uma nova originalidade
É certo que o jovem Sena era um intelectual estudioso, portador de vasta cultura, de grande erudição, e de boa capacidade de atualização face às novidades editoriais. A dedicação à recensão crítica comparece como natural num intelectual com as suas características, dado tratar-se de um género textual que acompanha o quotidiano literário e, ao mesmo tempo, permite a junção de uma dimensão informativa a uma perspetiva hermenêutica.
Antes de se debruçar sobre as recensões críticas a Poemas de África e Ambiente, Jorge de Sena envereda por uma introdução que intitula “Crítica Literária, Poesia”, na qual discorre de modo sugestivo sobre a questão do distanciamento face à realidade por parte da crítica, bem como acerca da originalidade, entrelaçando tacitamente ambas as dimensões. Quanto à primeira, a crítica, Jorge de Sena dedica-lhe apurada atenção, apoiando-se em Rilke e deplorando o distanciamento como seu eixo central. O recenseador alerta para os perigos da valorização da postura distanciada e meramente culta, deixando implícito que recusa esse tipo de abordagem alicerçada na projeção de uma inteligência crítica que enclausure a vibração poética em si mesma e na sua gramática formal. No seu entendimento, o verdadeiro crítico de poesia atravessa o espaço em volta do poeta recenseado para lhe ser mais próximo e, assim, atingir o seu pensamento criador. Jorge de Sena é claro quanto à principal faculdade a convocar para se conseguir essa proximidade: “(…) uma humildade construída da mais pura ideia de camaradagem, (..), da ideia de uma intelectual coexistência humana” (Sena, 1942, p. 45). Resulta desta reflexão que Jorge de Sena defende a camaradagem e a intelectual coexistência humana como eixos da crítica, sem os quais esta fica condicionada e muitas vezes sujeita a injustos “malabarismos interpretativos”.
Jorge de Sena prossegue a sua dissertação sobre uma crítica assente nestes dois eixos, considerando que esta deverá resultar de uma de duas atitudes, sendo estas expressão da própria poesia – a alegria celebrada ou a lamentação permitida – originando ambas um combate à incompreensão e ao aprisionamento, “visto que se foi dando uma assimilação da obra realizada, uma espécie de sua consciencialização no corpo de uma consciência receptiva” (Sena, 1942 a, p. 45). A seu ver, a alegria celebrada está presente no encontro com o “núcleo de poesia intrínseca” e no louvor ao esforço de escrevê-la, ao passo que a lamentação permitida emerge da falta de plasticidade e da incompreensão à qual a aprisionam. Sendo, em sua opinião, dois casos extremos que estabelecem juízos de valor sobre as obras, o jovem crítico admite que “o tempo, a repetição, o desassombro, as afinidades, serão factores de julgamentos vários” (Sena, 1942a, p. 45).
Neste estudo, analisaremos em que medida Jorge de Sena aprecia Poemas de África e Ambiente a partir dos dois eixos que propõe – a camaradagem e a intelectual coexistência humana – e como estes lhe permitem a divulgação e o elogio de uma poesia comprometida com os problemas das colónias. Sendo claro que reconhecerá sobretudo potencialidades e virtudes nas obras recenseadas, procura nelas pontos de partida decorrentes do entusiasmo da leitura, sem elidir que tal exercício requer cautelas para se proteger a si mesmo: “(…) para lá da constatação de uma pobreza poética, para lá da análise amarga de uma insuficiência, o nosso entusiasmo defender-se-á e julgará defender o futuro da arte ao defender-se” (Sena, 1942a, p. 45).
No que tange à originalidade, o jovem crítico repercute mais uma vez as tensões da sua época, afastando-se dos excessos do movimento neorrealista, relembrando que, por um lado, as regras clássicas da escrita poética conheciam ventos de renovação e, por outro, havia ainda muito quem se deixasse aprisionar, apesar dessa liberdade. A seu ver, esse aprisionamento conduzia os poetas na mesma direção, propiciando uma “originalidade coletiva” favorável àqueles que tinham pouco a dizer e que não servia a urgência de “regeneração deste mundo”. Para Sena, a originalidade encontra-se entrelaçada com a atitude do poeta face à realidade, comportando elementos contextuais e fenomenológicos, enquanto afasta a instrumentalização pelas modas de época e a ideia de genialidade.
O recenseador sublinha que o poeta não pode concentrar-se apenas na sua criatividade, devendo abrir-se ao mundo e aos seus problemas. Ao admitir um substrato ontológico iniludível, que não deve confundir-se com exercícios autocontemplativos que obliterem outros seres humanos, Jorge de Sena deplora o fechamento face à realidade exterior, que é multidimensional e por vezes carenciada. Muito significativa, na sua abordagem à originalidade, é também a revalidação da importância da coexistência humana, agora imputada ao próprio poeta:
E o poeta não pode esquecer-se que está entre outros homens que não são poetas (…) e não tem o direito de supor cumprida a sua função poética, desde que se abandonou, egoisticamente, ao prazer de criar. Toda a loucura criativa tem o dever de ser lúcida e de não negar nunca, mesmo no auge da solidão, o mistério da coexistência humana (Sena, 1942a, p. 46).
Ato contínuo, Jorge de Sena aprofunda a sua reflexão sobre as qualidades que definem o poeta, lamentando que muitos que assim se intitulam, de modesto valor humano, procurassem afirmar-se a partir de uma mesma ideia sempre repetida, ou a partir de ideias subtraídas a outros, sem nada acrescentarem ao “progresso formal que vai de acordo com a vida” (Sena, 1942a, p. 46). No seu entender, mais valioso é o poeta que, na sua simplicidade formal, pede a si mesmo a coragem de dar alguns passos em frente para o destino comum.
O jovem crítico refere-se de seguida a uma nova “orquestração de ecos” que passavam despercebidos, estabelecida pela relação entre várias obras, que deveria relativizar o modo como era entendida a originalidade, sobretudo se esta for tida em conta a partir dos contributos individuais daqueles que do destino comum se ocupam na sua poesia. Jorge de Sena termina este texto introdutório munindo-se de uma sugestiva metáfora para valorizar uma poesia que, no seu interior, revela uma “verdade contida”, mesmo que à superfície pareça nada dever à originalidade.
Assim, em “Crítica Literária, Poesia”, ao entrelaçar a rejeição do velho distanciamento com a proposta de uma nova originalidade, Jorge de Sena pratica corajosamente a sua liberdade de pensamento para contestar o cânone vigente, defendendo um alargamento de horizontes à crítica literária e, sobretudo, à própria poesia. Esta tomada de posição que, no sentido mais imediato, servirá para fundamentar o exercício a realizar em torno das duas obras visadas, revela também aquele que viria a ser um dos seus combates daí em diante: a defesa e o culto de “uma poética do testemunho como metamorfose e peregrinação de linguagem” (Lourenço, 2021 [1998], p. 19), com claras implicações éticas no seu empenhamento cívico. Porém, a aplicação dos preceitos defendidos por Sena à sua própria crítica não se confunde com condescendência ou empatia face às obras e aos autores visados nas recensões objeto deste estudo, já que o recenseador não envereda por um discurso laudatório ou de glorificação de Poemas de África e Ambiente, preferindo o reconhecimento das suas qualidades.
4 – Poemas de África, de António de Navarro: o “próprio direito à vida” e a realidade concreta das colónias
Poemas de África foi publicado em 1941, em Lisboa, pela Portugália, fruto do labor de um poeta motivado pela sua curta, mas intensa experiência em Moçambique, entre 1939 e 1940. Foi o primeiro livro de António de Navarro, poeta que publicava na Presença[8] desde o seu lançamento, sendo por isso considerado um dos mais representativos deste conceituado periódico. À primeira vista, Poemas de África não seria uma obra surpreendente para a estreia de Jorge de Sena enquanto crítico literário. Todavia, as possibilidades oferecidas por estes poemas de António de Navarro à crítica lato sensu, bem como à crítica da situação colonial, matizam esta conjetura.
Jorge de Sena começa a sua recensão a esta obra numa linha de continuidade em relação às ideias expostas no texto introdutório: “Impunham-se estas considerações sobre originalidade quando se vai falar de um poeta como António de Navarro (…)” (Sena, 1942b, p. 46). Considerando que o poeta recenseado vale sobretudo por ser original, o recenseador repara que Navarro não passa ao lado das questões inerentes a uma crítica simultaneamente pessoal e comprometida com o mundo, reelaborando-o fenomenologicamente: “Navarro é um poeta que nos dá o mundo (…) pela compreensão de uma expressão poética interior determinada pela sua existência no mundo” (Sena, 1942b, p. 47).
Sem deixar de assinalar os aspetos menos conseguidos da poesia recenseada, Jorge de Sena encaminha a sua crítica no sentido de demonstrar que a maior virtude do autor de Poemas de África é não pertencer a uma maioria de poetas medrosos que, aprisionados dentro da liberdade concedida, não diziam nada de novo, nem ousavam contribuir para um mundo necessitado de regeneração. Em sua opinião, António de Navarro fazia precisamente o contrário, ao combinar as palavras com uma “exactidão confiada” para, de forma atenta, propor essa regeneração através da escrita de versos sobre “o próprio direito à vida” (Sena, 1942 b, p. 47). Aliás, Jorge de Sena enfatiza que é a crença do poeta nesse direito inalienável que o faz persistir numa ideia esperançada de renovação da “virgindade do mundo”, mesmo após a morte prematura da sua bem-amada, provavelmente para esconjurar a dor brutal que sente e não sublima. Partindo da dedicatória que António de Navarro consagra à esposa desaparecida, o recenseador louva a sua admirável poesia, já que nela “(…) tudo surge iluminado por um clarão que reúne sem unificar” (Sena, 1942 b, p. 47), para propor a questão que pretende discutir daí em diante: “E a África tem sido, entre nós, tratada poeticamente?” (Sena, 1942b, p. 47).
O elogio à especial forma de “apreensão poética” de António de Navarro que, segundo o jovem crítico, oferece uma visão do todo através de uma representação concreta da realidade, serve-lhe então de contraponto para denunciar uma poesia conivente com a situação colonial, através da recensão a Poemas de África. Jorge de Sena reconhece que o seu autor recusa o cânone de uma literatura colonial reprodutor de uma ideologia e de práticas catalisadoras de desigualdades e de assimetrias sociais. Rejeitado também pelo recenseador, esse cânone baseava-se, a seu ver, em visões de África que a instrumentalizavam, delas se servindo os poetas mais concentrados em cumprir as suas ambições literárias do que em transformar o mundo. Contrariamente ao cânone, os poemas de António de Navarro concretizam uma África que “é também fundo, na medida em que fundo é horizonte e leito, e é puro objecto, na medida em que a fascinação se torna angústia” (Sena, 1942b, p. 48). É assim que, através da crítica a Poemas de África, Jorge de Sena pugna pela sua compreensão num outro plano, que recobre um sentido bem diverso de “fundo”, metaforicamente encarado como “leito” e “horizonte”; ou seja, por outras palavras, o recenseador defende uma abordagem a África “em si própria”, que compreenda as suas singularidades, destacando-se o respetivo devir concreto, assim como as especificidades socioculturais incidentes nas suas vivências quotidianas. O jovem recenseador não detalha estas questões, mas a sua escrita rica em figuras de estilo alberga e permite estas interpretações, parecendo antecipar uma dupla dimensão temporal: se, por um lado, África é leito no presente múltiplo e coevo de Sena e Navarro, consignando um espaço daquilo que mais tarde Koselleck (2006) virá a designar como “experiência”; por outro, África é horizonte, podendo ser analisada em função da projeção do seu futuro, ou daquilo a que o filósofo e historiador alemão chamará “horizonte de expectativa”.
Bem revelador da cumplicidade do crítico com o poeta recenseado é o destaque que Jorge de Sena dá, logo de seguida, a alguns versos de Poemas de África, em que o seu autor clama por um mundo que é todo da sua carne e pelo mistério da vida que se justifica em qualquer vivente, para daí em diante passar à denúncia clara e inequívoca, embora numa linguagem marcada por sugestivas metáforas, do que se passava nas colónias e deveria ser corrigido. Sena socorre-se de um núcleo semântico delimitado, assente na dicotomia “sol / sombra” para, através dela, engendrar uma estratégia discursiva, desenhando nos seus interstícios a projeção de realidades que permaneciam invisibilizadas e que era necessário trazer firmemente à superfície. Abdicando de alarido que obliterasse a transmissão da mensagem no contexto de uma censura atuante, Jorge de Sena entretece o discurso em torno de sinestesias indiciadoras de apurados sentidos: “António de Navarro ouve, a cada passo, as «lançadas do sol», que anda gravando as sombras (…)” (Sena, 1942b, p. 48). Inspirado pela lírica de Navarro, o recenseador expõe, sequencialmente, o paternalismo do “velho colono”, o desconhecimento dos que chegam e se superam para sobreviver, e a ingenuidade dos locais, para concluir, em apoteótica alusão aos versos do poeta, que nas colónias, o sol grava a sombra dos portugueses com maior profundidade e durabilidade.
O lado mais sombrio da presença portuguesa em África, e a ideia de que os territórios coloniais não deveriam ser idealizados, nem menorizados pelo colonizador, são imediatamente reforçados por Jorge de Sena ao sugerir o respeito pela “natureza enorme que o homem branco ainda não afeiçoou aos seus olhos, ante a qual não pode, por pequenez e inferioridade expansiva, usar de seu erro humano de considerar animais domésticos todas as coisas vivas e inanimadas” (Sena, 1942b, p. 48). Não resulta, por certo, exagerada, uma leitura destas palavras que as aparente com uma veemente acusação de exploração do homem pelo homem, da qual as colónias portuguesas em África seriam palco. Trata-se de uma denúncia corajosa e contundente, especialmente se tivermos em conta o momento em que ocorre (apogeu do Estado Novo), os riscos inerentes a tal ato (censura e perseguição política), e a condição de quem a faz (jovem com aspirações ao reconhecimento intelectual).
Porém, trata-se de uma denúncia amparada na sinceridade do autor de Poemas de África, ressaltada positivamente por Sena, e que, em sua opinião, advém da recusa do poeta em “inventar uma imagem que lhe aprisione e simplifique o que parece ser indefinível” (Sena, 1942b, p.48). Assim, ao comentar o último poema da obra, sobre a experiência do regresso de Moçambique para Portugal, o crítico estreante frisa que a cruz a que Navarro se refere não é apenas alegórica ou divina, remetendo para versos em que pensamentos fogem de uma cruz para logo encontrarem uma outra, nos quais facilmente se depreende que se a situação é penosa nas colónias, não o é menos na metrópole. É nesta sinceridade, capaz de um posicionamento crítico face à situação colonial e ao Estado Novo, que Jorge de Sena encontra razão suficiente para a consagração de Poemas de África.
Fica assim demonstrado que, a partir dos preceitos de camaradagem e de intelectual coexistência humana, aplicados por Jorge de Sena na sua crítica a Poemas de África, o recenseador encontra nesta obra uma original exceção ao cânone colonial. Outra exceção assinalada pelo jovem crítico seria a da poesia escrita em Cabo Verde, introduzida habilmente no decorrer desta recensão, certamente para abrir caminho à crítica que a seguir irá apresentar a Ambiente, de Jorge Barbosa.
5 – Ambiente, de Jorge Barbosa: a condição existencial do intelectual das colónias e a coragem do “protesto de solidariedade”
Pode de algum modo espantar a opção de Jorge de Sena por este título aquando da sua estreia na crítica literária. Ambiente, de Jorge Barbosa, havia sido impresso na tipografia da Minerva, na Cidade da Praia, em 1941, o que nos remete para uma reflexão evidente: num tempo em que a circulação de bens e de ideias conhecia diversas condicionantes, é significativo que este livro tenha chegado com alguma rapidez às mãos do jovem Jorge de Sena, que se encontrava em Portugal. Note-se também a prontidão da sua crítica a este escrito, dado à estampa no ano anterior, em Cabo Verde, por um dos cofundadores do movimento literário Claridade[9]. Este movimento, em desacordo com o regime fascista e colonial, procurava emancipar aquele território em termos culturais e políticos. Segundo Monteiro (2013), o descontentamento dos fundadores do Claridade com a governação de Salazar, e com as condições a que a sociedade cabo-verdiana estava sujeita, levou a que este movimento assumisse uma atitude crítica perante a realidade, inaugurando uma literatura autónoma, inspirada pelas vivências do arquipélago e associada a uma ideia de cabo-verdianidade. Como é fácil depreender, o movimento Claridade era alvo de desconfiança pelos setores conservadores pró-Estado Novo, o que valida a liberdade de pensamento e a coragem de Jorge de Sena, ao escolher uma obra de um autor deste movimento para se estrear na crítica literária.
Na sua recensão a Ambiente, Jorge de Sena começa por referir-se ao título da obra: “O título do último livro deste poeta cabo-verdiano é duplamente justo: porque o livro nos dá, de facto, um ambiente, e o autor está, na sua poesia, identificado com ele” (Sena, 1942c, p. 49). Note-se que o adjetivo “justo” poderá ultrapassar os limites cognitivos da adequação e do rigor para se alojar na sua dimensão ética. Embora não seja possível imputar a Jorge de Sena qualquer intenção explicitamente dual ao utilizar este termo polissémico, poder-se-á sugerir essa hipótese.
Seja como for, é indubitável que Jorge de Sena adere ao título escolhido por Jorge Barbosa, explicando que tal se deve à existência de um ambiente na obra recenseada. Sem explicitar os sentidos que atribui ao vocábulo que titula o livro, “ambiente” passa a designar um território à partida conhecido, ligado a certas coordenadas geográficas e características naturais, numa geografia física que detém e oprime a geografia humana, e até sentimental, portadora dos seus próprios traços sociais e antropológicos.
Apesar de ficar claro, desde o início, que Ambiente foi publicado em Cabo Verde, Jorge de Sena não volta a nomear esta então colónia portuguesa, usando em seu lugar, sempre e apenas, a palavra “ambiente”. Sobre este recurso estilístico, será lícito aventar a necessidade de chamar a atenção para a poesia de Jorge Barbosa de modo simultaneamente afirmativo e discreto, permitindo que se inferisse, das cuidadosas linhas escritas pelo jovem crítico, as questões instigantes propostas por Ambiente, e contornando a censura de modo hábil.
Após a abordagem ao título da obra, a recensão de Jorge de Sena debruça-se, em seguida, detida e concentradamente, sobre a temática da identificação, tomando por ponto de partida a problematização desse sentimento do autor em relação ao ambiente em que vive. Aproveita a ocasião para destacá-la, elegendo-a como dimensão fundamental para a compreensão de Ambiente, de Jorge Barbosa. A identificação comparece inicialmente como conceito, mas congrega, desde a origem, uma realidade multímoda, que participa das circunstâncias de vida do autor e do trabalho recenseado, assumindo uma tonalidade de cunho existencial, uma “vivência profunda”. No entanto, essa profundidade, assim designada por Jorge de Sena, não se perde, nem resulta atenuada, se associada a uma outra entidade conceptual e vivencial: a inadaptação. Esta associação pode parecer paradoxal ao leitor menos avisado ou mais desprevenido, mas Jorge de Sena não deixa margem para dúvidas: “(…) é necessário esclarecer que, por identificação poética se deve entender vivência profunda indissociável e igualmente profunda nos casos reais de inadaptação” (Sena, 1942c, p. 49).
Depois de relacionar em termos complexos, mas mais próximos do que seria de esperar, o binómio identificação e inadaptação, Jorge de Sena convoca um terceiro conceito, que funciona como seu contraponto. Trata-se do desenraizamento, sugerindo o jovem crítico literário que Jorge Barbosa nunca foi afetado por tal sentimento, mais propício ao derrame de uma experiência pessoal negativa, do que à produção poética de Ambiente, na qual o escritor cabo-verdiano dá a ver o meio no qual se move: “Apenas uma coisa é ser inadaptado e outra é ser desenraizado. O desenraizado será sempre impotente para a dádiva de uma poesia do ambiente (…). E pode o inadaptado extrair, por oposição, e do que o cerca, uma grande poesia”. (Sena, 1942c, p. 49).
A partir daqui, depreende-se, através das distinções conceptuais que leva a cabo, que Jorge de Sena é solidário com a condição de ilhéu, e mais ainda com a condição existencial do poeta recenseado, extensível a outros intelectuais das colónias, e que a poesia de Jorge Barbosa reclama, assente naquilo que pode parecer um paradoxo: com identificação e sem desenraizamento, há, no entanto, uma inadaptação. A pertença ao meio cabo-verdiano não se coloca em causa; aliás, concretiza-se através de um conflito próprio da insularidade, entre a ilha presa à sua reduzida dimensão e à própria natureza, e a imensidão do mar que a limita, mas faz sonhar com “continentes distantes”. Depreende-se das palavras de Jorge de Sena uma sintonia com os propósitos do poeta recenseado, interpretando a sua inadaptação como “protesto de solidariedade” para com os demais cabo-verdianos, que comparece numa poética que dignifica as “tragédias vulgares”:
A inadaptação, porém, é susceptível de residir apenas num protesto de solidariedade, numa comovida narrativa da condição humana, numa, como diz o poeta, “silenciosa revolta melancólica”. A solidariedade expressa por Jorge Barbosa atinge admiravelmente o já referido mistério da coexistência. A sua poesia aproxima-se da gente cabo-verdiana e com uma simplicidade nua, nunca esquemática, aponta, um por um, os prisioneiros de uma terra seca… (Sena, 1942c, p. 49).
A temática da liberdade, e mais concretamente os problemas decorrentes da ausência dela, comparecem implícitos, mas determinantes nas observações críticas de Jorge de Sena em torno do livro de Jorge Barbosa, parecendo assomar no poeta cabo-verdiano a consciência de um ambiente de clausura, devido não só, mas também, ao controlo político exercido pela metrópole. Em reação, Jorge Barbosa oferece uma resposta lírica que declina a possibilidade de uma vida mais civilizada e o conforto material que com ela se interligue, em nome de uma liberdade coletiva: a de um povo que, de forma corajosa, espiritualiza a evasão “(…) em cada esquina da aventura, (…) para alongar a própria sombra pelos caminhos possíveis” (Sena, 1942c, p. 49). No entendimento de Jorge de Sena, o poeta cabo-verdiano fá-lo com “sinceridade verbal”, menos sujeita aos preconceitos de tempos anteriores devido a novas tendências que a poesia de então começara a incorporar, e que, no caso em apreço, se traduzia na “coragem de falar com verdadeira naturalidade”. O recenseador sugere que a coragem do autor de Ambiente só poderia advir da certeza de que o drama plasmado na sua poesia correspondia, em bom rigor, à realidade do povo do arquipélago, podendo daqui interpretar-se uma aproximação à originalidade defendida no texto introdutório. Demonstrada pela sua “humildade formal”, esta coragem de Jorge Barbosa permitia-lhe escrever uma “grande poesia”, para dar a conhecer a “realidade do espírito”, ganhando assim profundidade e pureza, enquanto se libertava de ideias feitas. Em sua opinião, Jorge Barbosa é cultor desta outra forma de escrever uma “grande poesia”, ao dignificar a vida dura das gentes de Cabo Verde, com ironia e ternura, de forma singela, mas disruptiva e renovadora. Para fazer jus às suas afirmações, o jovem crítico transcreve o poema Môça-Velha, extraído de Ambiente, que não sendo, a seu ver, o melhor do livro, “(…) dá uma ideia segura deste poeta tão cheio de verdadeira solidariedade” (Sena, 1942c, p. 50). Trata-se de um poema que dá atenção às vivências da mulher cabo-verdiana, negra e pobre, em duas fases distintas: na juventude, com os sonhos próprios da idade, modestos mas difíceis de concretizar, devido à penúria em que vive; e na velhice, com as mazelas próprias de quem deu à luz uma grande prole que lhe seguiu os passos de uma vida difícil e sem esperança.
Merece relevo o facto de o estreante Jorge de Sena se concentrar numa análise com viés psicossocial sobre as motivações do poeta cabo-verdiano Jorge Barbosa, para, a partir do seu exemplo, lançar o problema da condição existencial do intelectual das colónias. Tal é possível devido aos preceitos para a crítica literária e para a própria poesia enunciados pelo recenseador: através da camaradagem enfatiza o lugar de Jorge Barbosa enquanto poeta; e por via da intelectual coexistência humana dá destaque à sua condição existencial. É precisamente essa condição existencial, a de alguém que pertence ao seu “ambiente”, que com ele se identifica, mas que, por conhecê-lo bem, vive-o sem a ele se adaptar ou render, que lhe permite fazer o seu “protesto de solidariedade” pela situação em que a sociedade colonial vive mergulhada, bem como usar a ilha enquanto metáfora de um aprisionamento que vai muito para além daquele que a geografia impõe. Reconhecendo que o autor de Ambiente foge ao lirismo simples para se instalar numa virtualidade poética que propõe a sua própria inteligibilidade, Jorge de Sena enaltece-lhe o olhar atento que honra o quotidiano das pessoas de Cabo Verde, lamentando que a sua obra passe despercebida, podendo até ser desacreditada.
Notável é também o comprometimento do jovem Sena com uma poesia de protesto, escrita numa colónia, e por isso desconsiderada pela inteligência culta, logo na sua estreia como crítico literário, aos 22 anos. Num tempo em que a ditadura do Estado Novo se consolidava, o regime colonial se encontrava em pleno fulgor, e a liberdade de pensamento estava condicionada pelos mecanismos de repressão do aparelho ditatorial, Jorge de Sena ousou divulgar e fazer o elogio de uma poesia que brotava de um movimento cultural autonomista, demonstrando não ter medo de concretizar as suas próprias escolhas. Como viria a reconhecer muitos anos depois: “Desde muito cedo, alinhei na oposição ao regime salazarista, e em várias ocasiões em que havia limitada liberdade de imprensa, fiz declarações a esse respeito” (Sena, 1977, p. 241).
6 – Notas conclusivas: liberdade, realidade e crítica ao colonialismo para uma comunidade (inter)cultural de língua portuguesa
A análise realizada às recensões de Jorge de Sena a Poemas de África e a Ambiente demonstra que a estreia deste autor na crítica literária já evidenciava três aspetos essenciais do itinerário intelectual que então iniciava: a liberdade de pensamento de que nunca abdicou; a defesa de uma poesia comprometida com a realidade e capaz de fazer o mundo avançar; e um posicionamento crítico face ao colonialismo português em África, consentâneo com a proposta de construção de uma comunidade (inter)cultural de língua portuguesa, que foi apresentando de forma gradual ao longo da sua trajetória.
Não nos cabendo neste trabalho desenvolver a questão da liberdade de pensamento em Jorge de Sena, interessa perceber que este foi um tópico sempre presente na sua obra, perspetivado de forma complexa, variada, e alicerçada em expressões múltiplas, difíceis de circunscrever ou delimitar. As recensões a Poemas de África e a Ambiente, pelos preceitos utilizados e pelo olhar crítico sobre a situação das colónias, constituem prova de que essa liberdade já estava presente aquando da sua estreia como crítico literário na imprensa especializada. É possível que Jorge de Sena tenha aproveitado o espaço editorial das recensões críticas para, deliberada e conscientemente, capitalizar a maior liberdade concedida por este género, exprimindo-se sem deixar de dizer o que queria, de um modo consequente, mas atenuando o risco de o fazer. Convém relembrar que, aquando da publicação destes textos, a censura destacava-se entre os mecanismos de repressão do Estado Novo. Jorge de Sena ousou contorná-la, fazendo-lhe frente de forma hábil, manifestando assim o seu desejo de liberdade, lúcido e amadurecido, apesar da sua juventude. É nessa condição, e no exercício livre e responsável da crítica propriamente dita, que o recenseador apresenta as suas credenciais.
Por outro lado, enquanto estreante, Jorge de Sena saberia que tinha muito a provar para se dar a conhecer e para se afirmar entre os seus pares. Ainda assim, sem abdicar da sua liberdade de pensamento, e combinando-a com elevadas doses de inteligência e de coragem, arrisca afrontar o cânone literário do tempo em que escreve, para transpor o espaço em volta dos poetas recenseados e lhes ser mais próximo, num esforço de compreensão das suas ideias criadoras. Deplorando o distanciamento de uma poesia e de uma crítica fechadas em si mesmas e em exercícios puramente formais, substituindo-o por preceitos de camaradagem e de intelectual coexistência humana, enquanto defende a originalidade da criação poética comprometida com a realidade concreta do mundo, o recenseador apresenta, em primeira mão, um dos princípios centrais que viria a marcar o seu itinerário intelectual. Sobre esse princípio, postula Martelo (2022, p. 327):
O poeta tomava assim uma posição dura contra a poesia como prática cultural encarada como fruição cómoda e amável, dado que este tipo de receção, ainda que fascinada e respeitadora, ofuscaria a potência do ato poético em toda a sua dimensão.O poeta tomava assim uma posição dura contra a poesia como prática cultural encarada como fruição cómoda e amável, dado que este tipo de receção, ainda que fascinada e respeitadora, ofuscaria a potência do ato poético em toda a sua dimensão.
O mesmo é dizer que, nas recensões críticas analisadas, Jorge de Sena lança as bases de uma lírica comprometida com os problemas do mundo, que Lourenço (2021) [1998] denomina como poética de testemunho, numa relação de implicação mútua com as noções de metamorfose e de peregrinação. O autor é claro ao referir que “esses três aspetos não são isoláveis, e sim consubstanciais a uma praxis altamente consciente das próprias contradições da poesia como objeto de linguagem” (Lourenço, (2021) [1998], p. 19). Como demonstrado, Jorge de Sena aplica esta teoria da atividade poética às recensões a Poemas de África e Ambiente, obras que concretizam uma crítica à exploração colonial portuguesa. Não por acaso, Martelo (2022) toma de empréstimo palavras de Jorge de Sena, com as quais o próprio se definia, para considerá-lo “inimigo da cantiga dormente”. Por antonomásia, será lícito afirmar que António de Navarro, com a sua atenção ao pulsar da realidade concreta de Moçambique, e Jorge Barbosa, através do “protesto de solidariedade” com o povo de Cabo Verde, constituíam exemplos eloquentes do tipo de poesia que interessava a Jorge de Sena, sendo esta viva e atuante, intimamente mergulhada nos problemas dos espaços e do tempo em que foi escrita. Ao dirigir-se a um público de nicho, pertencente à elite culta, Jorge de Sena garantia a possibilidade de alertar algumas consciências para o despontar de um certo tipo de literatura proveniente das então colónias, podendo as obras em análise representar o alvorecer de uma literatura anticolonial.
As recensões apresentadas configuram, assim, instrumentos ao serviço do pensamento de Jorge de Sena, e da sua tomada de posição assertiva e sem condescendências em relação à situação das colónias. Ao analisar estes dois textos, publicados no início do seu itinerário intelectual, fica claro o seu posicionamento crítico quanto à questão colonial, que devemos considerar antecipatório, se tivermos em conta que o mesmo foi manifestado antes do final da II Guerra Mundial e do consequente estabelecimento de uma nova ordem mundial favorável à independência das colónias europeias em África. Compreender este posicionamento de Jorge de Sena afigura-se como peça fundamental para o ensaio de uma hipótese de investigação sobre a qual temos vindo a trabalhar mais amplamente: a sua vasta obra é trespassada por um pensamento crítico, ousado e original que vai propondo, de forma gradual e consentânea com a sua temporalidade e historicidade, a construção da comunidade (inter)cultural de língua portuguesa.
Embora Jorge de Sena não tenha sistematizado o seu pensamento sobre esta comunidade, nem promovido quaisquer articulações conducentes a essa sistematização, a leitura diacrónica do seu itinerário intelectual permite identificar uma preocupação constante, que vai crescendo e ganhando densidade ao longo do tempo, com a comunidade de língua e cultura à qual afirma e reafirma a sua pertença e que, a seu ver, apesar da sua magnitude no mundo, se encontrava menorizada por diversas circunstâncias (Macedo, 2023). De entre os textos que viria a publicar mais tarde sobre esta sua preocupação, destaque-se, a título de exemplo, “Possibilidades Universais do Mundo Luso-Brasileiro” (s.d./1988), escrito em data incerta durante o seu exílio em terras de Vera Cruz, entre 1959 e 1965. Neste ensaio, o autor sugere a concertação cultural e linguística entre Portugal e o Brasil, mas já com os olhos postos na iminente independência das então colónias portuguesas em África, defendendo ser esta a comunidade de língua e cultura resultante dos impérios coloniais europeus mais protegida em relação ao risco de identificação com os “pavores do capitalismo euro-americano” (Sena, s.d./1988, p. 195), por nela se terem propiciado condições à manutenção da diversidade cultural.
Cumpre destacar que, por ainda não ter sido sistematizado e evidenciado, o contributo substancial de Jorge de Sena para o debate contemporâneo sobre esta comunidade tem sido ignorado. A comprová-lo, assinale-se um texto assinado por Boschi (2022) sobre os precursores e as origens da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, que exclui Sena e o pioneirismo da sua proposta intitulada “A Comunidade de Estados Portugueses”, publicada no jornal oposicionista ao regime Portugal Democrático, em agosto de 1960. Estas constatações remetem para a necessidade de dar prosseguimento ao estudo da obra de Jorge de Sena, não só com a captação de novos investigadores para a restrita comunidade académica que a ele se dedica, como também com a proposta de novos problemas, novas questões e novas hipóteses sobre o itinerário intelectual deste autor. É esse o trabalho para o qual pretendemos contribuir, e que agora iniciamos, remetendo desde já para a importância de abordar os contos-crónica que Jorge de Sena publicou em 1942 e 1944, de modo a neles ressaltar as linhas mestras da respetiva historicidade, eventualmente cúmplice de uma atitude anticolonial que as recensões estudadas deixam adivinhar.
Referências
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FONTE: Artigo originalmente publicado no Anuário Internacional de Comunicação Lusófona 2023/2024: Lusofonias de Decolonialidade, editado por: LUSOCOM, SOPCOM e CECS: https://www.lusocom.net/anuario/anuario-2023-2024/
NOTAS
1 E-mail: lurdes.macedo@ulusofona.pt
2 E-mail: knunoclio@gmail.com
3 Embora Jorge de Sena tenha publicado em jornais e boletins estudantis desde 1938, a sua estreia em publicações na imprensa especializada de circulação geral deu-se em 1942, ano em que publicou também o seu primeiro livro de poesia Perseguição.
4 Revista de literatura, editada entre 1942 e 1944, sob a direção de Rui Cinatti.
5 Páginas XLVI e XLIX, no original.
6 Páginas XLIX e L, no original.
7 Páginas XLV e XLVI, no original.
8 A Presença foi uma revista publicada entre 1927 e 1940. Num primeiro momento, e até 1938, foram dados à estampa 54 números, e mais dois entre 1939 e 1940. A ideia do nome do periódico foi da autoria de Branquinho da Fonseca, que o dirigiu numa primeira fase, com José Régio e João Gaspar Simões. A revista protagonizou a segunda fase do Modernismo Português.
9 O movimento literário Claridade foi responsável pela publicação da revista também assim intitulada. O periódico foi o principal centro congregador de uma vontade comum que consistia na procura da emancipação sócio-cultural e político-ideológica de Cabo Verde e a consequente afirmação identitária relativamente ao domínio colonial português. Alguns membros da publicação inspiraram-se no modelo do neo-realismo português que, na metrópole, prodigalizava, na literatura, uma oposição face ao Estado Novo.