Publicado em novembro de 1961, no suplemento literário d’O Estado de São Paulo, esse estudo se seguiu a outro que abordava o mesmo tema, “O maneirismo de Camões”, publicado no mesmo jornal em setembro daquele ano. Além de demonstrar o extenso conhecimento que Jorge de Sena possuía da poesia ibérica quinhentista e seiscentista, o ensaio contribui para discutir questões relativas a periodização literária, a influências de um autor nos seus contemporâneos e subsequentes, assim como valoriza os poetas da geração de Camões, que muitas vezes ficaram à sombra de sua figura, mas que guardavam qualidades próprias. Estudos aprofundados dessa geração não apenas fariam justiça ao trabalho de tais poetas como lançariam luz para a exemplaridade de Camões, que acabou se tornando epítome de um período estético e histórico na literatura de língua portuguesa.
A 1ª edição das Rimas de Camões, organizada por Fernão Rodrigues Lobo Soropita, poeta de mérito próprio, foi publicada em 1595, cerca de quinze anos após a morte do “Príncipe dos Poetas do Seu Tempo”. Nessa data, a geração que introduzira na poesia portuguesa as novas formas hispano-italianas, e a geração que, a seguir a essa lhe reconhecera o mestrado estavam, com excepção de D. Manuel de Portugal († 1606), mortas e sepultadas: João Rodrigues de Sá e Meneses († 1576), Sá de Miranda († 1558), Bernardim Ribeiro († 1552), João de Lencastre, duque de Aveiro († 1571), o Infante D. Luís († 1555), Cristóvão Falcão (1553), Francisco de Sá de Meneses († 1584), Jorge de Montemor († 1561), Pedro de Andrade Caminha († 1589), António Ferreira († 1569) [1]. Mesmo das gerações seguintes à de Camões (que é a de Montemor, Caminha, Manuel de Portugal, Ferreira, e também de André Falcão de Resende, nascido em 1627, e de Diogo Bernardes, nascido em 1530), terá morrido já Jerónimo Corte Real (1533-1590) e morre, nesse ano de 1595, Fernão Álvares do Oriente (n. 1540).
Isto significa que, quando a lírica camoniana é primeiramente impressa, os principais poetas em exercício ou ainda vivos são: André Falcão de Resende (1527-1599), Pedro da Costa Perestrelo (cujas datas de nascimento e morte são desconhecidas, mas que se supõe ter sido do “grupo” de Camões e se sabe ter tomado parte na batalha de Lepanto, como Cervantes, em 1571), Diogo Bernardes (1530-1605), Luís Pereira Brandão (1535-1600), o cronista Francisco de Andrade (1535-1614), Fr. Agostinho da Cruz (1540-1619), Vasco Mousinho de Quevedo Castelbranco (cujas datas extremas são ignoradas, mas que, em sua vida, foi impresso em 1596 e 1611), Miguel Leitão de Andrade (1559-1637), Estêvão Rodrigues de Castro (1559-1637), que vive na Itália, o supracitado Soropita (1562-?), Francisco Galvão (1563-1635), o cronista Fr. Bernardo de Brito (1568-1617), Eloi de Sá Soto Maior (cujas datas igualmente se não conhecem, mas cujas Ribeiras do Mondego são publicadas no 1º quartel do séc. XVII), Fr. Paulo da Cruz, o “Fradinho da Rainha” (?-1631), Baltazar Estaço (1570-?), Manuel da Veiga Tagarro (que deve ter morrido por volta de 1640), Gabriel Pereira de Castro (1571-1632) e Francisco Rolim de Moura (1572-1640). Rodrigues Lobo (1579-1621) é, nessa data, um rapazote ainda.
Esta cronologia é da maior importância para a compreensão da época por várias razões:
1º – Entre os poetas enumerados acima, encontram-se todos aqueles que, com um ou outro mais menor ou de que se ignora tudo (Simão da Veiga, Martim de Castro, etc.), foram pelos editores de Camões, nas edições sucessivas, confundidos com ele.
2º – Todos estes poetas, e ao contrário do que levianamente afirmam, repetindo-se, os historiadores da literatura, estão isentos de “gongorismo”, ou apenas o exploram, na medida em que toda a Europa literária tendia para esse novo estilo de que, separadamente, Gôngora (1561-1627) na Espanha e Marino (1569-1625) na Itália viriam a ser os mais polarizadores dos expoentes. Não é de resto difícil conferir que assim teria de ser, desde que as obras de Gôngora só são publicadas em 1627, logo após a sua morte [2], e o Adone de Marino é de 1623, quando, portanto, todos estes homens estariam já intelectualmente formados, ou publicaram mesmo ou estão publicando as suas obras.
3º – No tempo, há um hiato entre Rodrigues Lobo (n. 1579), que hesita em face do novo estilo, e D. Francisco de Portugal (1585-1632), Manuel de Faria e Sousa (1590-1649), Bernardo Ferreira de Lacerda (1595-1644), Miguel Botelho de Carvalho (1595- depois de 1647), Brás Garcia de Mascarenhas (1596-1656), Jacinto Freire de Andrade (1597-1657), Manuel de Gallegos (1597-1665), Francisco de Sá de Menezes (1600-1659), Manuel Quintano de Vasconcelos (1600-1655), Violante do Céu (1602-1693), que, nascidos todos quando está prestes a publicar-se a lírica camoniana ou ela acabou de aparecer, constituem efectivamente a primeira vaga de gongorismo, se é que este termo não é, assim em geral, uma manifestação da indigência mental dos historiadores, dada a extrema variedade de atitudes destes poetas todos, em paralelo do que estava acontecendo na Europa.
Foi Teófilo Braga, o tão desprezado Teófilo, tão útil aos historiadores que uns dos outros historiam, quem chamou a atenção para o facto de a publicação das Rimas, de Camões, ter desencadeado uma corrida às tipografias, ou dos impressores aos manuscritos dos poetas vivos e mortos, como a publicação (1572) em que Camões se terá empenhado, de Os Lusíadas, quebrara os preconceitos aristocráticos dos poetas palacianos. E, com efeito, desenvolvendo as observações que ele fez, notamos a sequência das publicações: em 1574, o Segundo Cerco de Diu, de Corte Real; em 1578, Austríaca, do mesmo; em 1588, a Elegíada, de Luís Pereira Brandão; em 1589, o Primeiro Cerco de Diu, de Francisco de Andrade; em 1595, as obras de Sá de Miranda, como se os admiradores do “homem de antes quebrar que torcer” se apressassem em marcar, ao lado de Camões, a prioridade do mestre; em 1596, A Vida e a Morte de Santa Isabel Rainha de Portugal e Outros Poemas de Quevedo de Castelbranco; o Lima, de Diogo Bernardes que, já em 1594, antes das rimas camonianas, imprimira as Várias Rimas ao Bom Jesus; em 1596, as Flores do Lima, do mesmo, e a Sílvia de Lisardo, de Fr. Bernardo de Brito; em 1598, quando aparece a 2º edição das Rimas de Camões, os Poemas Lusitanos, de António Ferreira, como se a prioridade, anteriormente marcada com Sá de Miranda, tivesse de ser reiterada com o apóstolo do anti-castelhanismo; em 1604 as poesias de Baltazar Estaço; em 1605 as de D. Manuel de Portugal e as Éclogas, de Rodrigues Lobo; em 1607, Jardim do Céu, de Eloi de Sá Soto Maior, e a Lusitânia Transformada, de Fernão Álvares do Oriente. Poderíamos, ainda, enumerar: Laura de Anfriso (1627), de Manuel da Veiga Tagarro, Ribeiras do Mondego (1629), de Eloi de Sá, e em 1632, em Florença, as obras de Estêvão Rodrigues de Castro.
De longa data, os preconceitos nacionalistas (no mau sentido da palavra, e não pode havê-los para historiar pretéritos) têm insistido no facto de este súbito gosto pela publicação, em contraste com o que anteriormente a Camões sucedia, se dever a que, na “ocupação espanhola”, iniciada em 1580, os portugueses teriam desenvolvido uma saudade das grandezas passadas e uma defensiva atracção pela literatura em sua própria língua. Antes de mais, a crise de 1580 só para uma pequena minoria que seguia o infeliz rei D. António, o filho do Infante D. Luís supracitado, teve características nacionalistas e a união das duas coroas, portuguesa e espanhola, pareceu uma solução digna a espíritos tão isentos e cultos como Fr. Bartolomeu dos Mártires ou o humanista Jerónimo Osório, que haviam, por sinal, ambos sido professores de D. António, o Prior do Crato. E, de resto, nas décadas anteriores, a política da coroa portuguesa, ao mesmo tempo que acautelava os interesses imperialistas da corte de Lisboa, trabalhara sempre por uma unificação que nos reis de Portugal se identificasse; e o patriotismo exaltado e exaltador da expansão ultramarina nunca se acharia, no espírito dos escritores portugueses, em colisão com o bilinguismo literário que, pode dizer-se, no fim do século, só Ferreira não praticou, e Camões não deixou de praticar.
O que Camões desencadeia, em vida ou postumamente, é menos uma competição de nacionalismo político ou linguístico, do que uma nova atitude do artista enquanto tal, em face do público, independentemente de fenómenos marginais da vida literária como a coincidência das edições de Sá de Miranda e de António Ferreira. É que, assim como na Espanha o pintor Greco (1545(?)-1614) é o primeiro pintor europeu a fixar ele o valor dos seus quadros (o que lhe custou demandas judiciais em que consumiu parte do seu tempo, em defesa da dignidade e da independência do artista), Camões é o primeiro poeta a quebrar o círculo vicioso do elogio mútuo de que, em grande parte, era feita a poesia dos “renascentistas”, que mutuamente, em epístola e soneto, se declaravam génios, para enfim falar de si mesmo para um público abstracto que tanto é o que, virtual, o rodeia, como aquele que, humanidade abstracta, o lerá através dos tempos. Aos homens que se satisfaziam com a permuta de manuscritos e que eram parte integrante de uma classe que aliava a propriedade rural, os cargos de corte, o exercício das armas e do comércio da pimenta ao nível do generalato, e a cultura literária em termos de “odeio o profano vulgo”, Camões põe a meditação individual sobre a História (em Os Lusíadas) ou sobre o destino humano (na lírica), redigida em termos de expressão necessária e não apenas “suficiente” como a da arte imitativa que contentava os outros. É esta a grande clivagem intelectual e social que o separa deles, mesmo de homens da sua geração como António Ferreira ou Andrade Caminha, e lhes permite que, na batalha de uma nova mentalidade, já tão largamente ganha por Sá de Miranda, Rodrigues de Sá e Meneses, Bernardim Ribeiro e Montemor, ele introduza a concepção nova de escrever como lhe apraz, mais fiado em si mesmo que nos modelos clássicos (antigos ou recentes), os quais lhe servem, apenas, como os ensinamentos dos venezianos haviam servido ao Greco, para ser ele mesmo. Camões descobre que a expressão existe como virtualidade autónoma: e toda a sua obra lírica é precisamente uma exaustiva meditação acerca disso mesmo. Em nada disto, ao contrário do que tem sido dito (na gaguês mental de ser-se incapaz de compreender alguma coisa sem analogias idealmente colhidas no fluxo dos tempos), há uma mentalidade pré-romântica. Há, sim, como estava havendo em toda a Europa, uma mentalidade maneirista.
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O maneirismo desenvolve-se a partir da crise céptica do chamado Renascimento. Nele, persistem, em grande parte (e como natural seria num mundo que não reformara ainda as suas estruturas), os géneros, as formas, as referências culturalistas, os tópicos, a imagística, etc. dos autores e dos artistas do Renascimento. O ponto de vista é que é radicalmente outro: uma exigência individualista que não mais se compadece com o formulário de uma casta culta que mutuamente se apoia, e que é comensal directa dos grandes potentados europeus. No vácuo aberto entre o medievalismo que vem morrer no Renascimento, e a idade moderna que nascerá, oculta, nas vascas curvilineamente geométricas do Barroco, o maneirismo é uma angustiada liberdade. E daí que, soltos na desgovernada amplidão de um mundo que geograficamente se encurva em definitivo até aos antípodas, e que socialmente se estratifica numa hierarquia unitária, eles usem do arsenal artístico que os antecessores lhes legaram, mas para dizerem outras coisas. É como se todo um arsenal de estilo fosse chamado a significar, e não, como sua função fora, a demonstrar e ornar uma visão aristocrática do mundo. Daí que, na angústia de um desamparo que, para altos espíritos, não serão as censuras, as inquisições e as intolerâncias (católicas, anglicanas, calvinistas ou luteranas) que poderão suprir, eles tendam todos para um religiosismo dramático, bem diverso do que tradicionalmente se agregava às novas ou velhas “medidas”, e para uma nostalgia política de mundo heroico e medieval, de que igualmente são expressão o historicismo de Camões ou a fantasia de Torquato Tasso (1544-1595), que não sem razão morreu louco, como aquele terá morrido de pouco menos que fome. O religiosismo dos “humanistas” e seus herdeiros como o tradicionalismo deles, é muito diverso. Esse religiosismo, quando se manifesta (e, no caso português, Bernardim Ribeiro não manifesta nenhum) limita-se ao convencionalismo devoto; e a contrição do poeta, como a dos pintores do século XVI, não vai além do que é necessário para ganhar o céu e a forma artística. Mas as meditações sobre o Livro de Job, de Pedro da Costa Perestrelo, ou Sobre os Rios, de Camões, diferem profundamente do que em Sá de Miranda era acidental. São algo como se a polémica de Erasmo e de Lutero sobre o Livre Arbítrio repercutisse enfim no mais íntimo da “consciência infeliz”, e não apenas ao nível das preocupações moralistas ou ético-sociais. E daí que tantas vezes tenha sido tomado por manifestação mística (que até certo ponto inevitavelmente seria) o que é, mais imediatamente, a expressão da angústia de homens que, na “apagada e vil tristeza” que se abate sobre a Europa, não podiam ainda vislumbrar as harmonias barrocas do melhor dos mundos possíveis, que Leibnitz (1646-1716), exactamente contemporâneo da serenidade quietista do Padre Manuel Bernardes, poderá proclamar. Da mesma forma, o tradicionalismo dos “humanistas”, que tão relevado tem sido em Sá de Miranda, não é de ordem política, como o dos Maneiristas, mas de ordem moral e social. É, na maior parte dos casos, uma combinação da “aurea mediocritas” (bastante áurea, e bem pouco medíocre) de Horácio, com uma paralela revolta contra a derrocada dos estratos sociais e patriarcais no vendaval do desenvolvimento urbano e mercantilista. O tradicionalismo que se desenha nitidamente, desde as objurgatórias de Camões nos Lusíadas à Corte na Aldeia, de Rodrigues Lobo, e que, explorando uma tópica especificamente idealizante, se manifesta também no apego ao bucolismo como expressão literariamente transposta, é sobretudo político, não evidentemente no sentido de pugnar por determinadas soluções doutrinárias, mas sobretudo no de orientar-se para uma estruturação místico-nacional da política, em oposição à pluralidade paroquial que os “renascentistas” pugnavam para a vida privada, em contraste com o anseio, que era também o deles, de que fossem cantadas as glórias pátrias (principalmente porque, em Roma, com Virgílio, assim acontecera…). A superação desta antinomia efectuou-a Camões e, ainda e sempre, se processa com ele uma revolução expressiva. Do condicionalismo da época, porém, decorre que tal superação se faz em termos de retrógrada visão, sonhando o poeta com a unidade do mundo sob a égide do ideal de “cruzada”, do mesmo modo que Tasso reverteria à libertação de Jerusalém: “Sobre os rios que vão”… Quando, no fim deste ciclo, Rodrigues Lobo tenta cantar o “Condestabre” Nuno Álvares Pereira, teoriza arcaicamente de “Menosprecio de Corte y Alabama de Aldea”, como fizera muito antes o espanhol Guevara, e desenvolve o romance pastoril, a visão grandiosa encolheu à escala de uma metrópole que se identifica com o ducado de Bragança e que, daí em diante, vai ser um país sustentando o seu provincianismo com as rendas de exportar as populações agrárias destituídas ou os espíritos cultos ou livres, não menos destituídos também.
A persistência do bucolismo, nos chamados líricos menores contemporâneos e subsequentes de Camões, e que acabamos de interpretar como uma tópica idealizante, ainda pode, no presente contexto, ser vista mais latamente, por forma a iluminar-se melhor esta época. É notório que a literatura europeia do século XVI e primeira metade do século XVII caminha para uma consciência de si e do poeta como tal; e que uma consciencialização não vai sem apreensão, em termos realistas, da circunstancialidade imediata. Mas, e é tão evidente isso no teatro europeu, desde Gil Vicente a Shakespeare e Calderon de la Barca, é impossível a uma sociedade que se estratifica em dois grupos – o dominante que é o da Corte e da nobreza real ou pretensa, e o povo genérico que deixou de assumir até aos fins do século XVIII qualquer papel na administração pública – para o primeiro dos quais a literatura é concebida, resolver a cisão entre o realismo exterior e o interior, que se identificam respectivamente com as classes dominadas e as classes dominantes. A comicidade do realismo exterior, pitoresco, apurar-se-á no teatro, através das figuras plebeias; e disfarçados em pastores arcádicos, em figuras mitológicas, em cavaleiros de antanho, em “poetas”, os membros das classes dominantes ou os que se sonham pertencentes a elas pelos direitos do génio, como é o caso de Camões, analisam-se psicologicamente em termos de erotismo transposto. E só os Barrocos, firmada já a cisão, não de dois realismos, mas, mais do que isso, da vida e da criação artística (que adquire enfim, embora à custa de muitos sacrifícios, a sua autonomia de objecto estético, com leis próprias que não são apenas as da imitação dos ideais clássicos), poderão, com segurança não posta em causa, atrever-se a um realismo até linguístico e vocabular adentro do jogo, de que o mesmo Gôngora ou o mesmo Marino são excelente exemplo, logo no início dessa transformação estética.
Apontamos como era absurdo ver nos “líricos camonianos” um gongorismo que eles não poderiam ter recebido como influência. Reparemos, agora, como é absurdo que Camões tenha influído neles.
A confusão dos editores de Camões, ou dos colectores de “cancioneiros de mão”, fizeram com que, acidentalmente, fossem atribuídas a Camões obras de Sá de Miranda, do Duque de Aveiro, do Infante D. Luís, além do ainda mais pretérito Garcia de Resende. As do compilador do “Cancioneiro Geral” estavam já impressas antes de Camões ter nascido; e só o facto de as redondilhas serem, na época, um género muito estereotipado (e é-o largamente no próprio Camões) explica a confusão. Que o velho Sá, que o neto de D. João II, e que o pai do Prior do Crato tenham sido também vítimas dessas confusões, muito acidentais para o Sá e o duque, explica-se pelo ineditismo em volume de todos eles, numa época em que o soneto era furiosamente cultivado e experimentado a ponto de soneto de um autor poder parecer variante de soneto de outro. Mas nunca ninguém se lembrou de achar que Sá de Miranda “camonizasse”; e é idiota supor que o fizessem o Infante D. Luís, morto quando Camões tinha vinte e cinco anos, ou um grande senhor como o Duque de Aveiro. Depois deste primeiro grupo de equívocos (alguns efeito de mera leviandade crítica), temos as confusões de que foram objecto Jorge de Montemor, D. Manuel de Portugal e o próprio António Ferreira, homens da geração de Camões. Estes poetas, estreitamente ligados ao mestrado mirandino, e só o segundo sabidamente ligado a Camões, por declarações deste mesmo, foram confundidos por atribuições tão disparatadas e facilmente destrutíveis, que não importa considerar-se-lhes o caso; no entanto, note-se que D. Manuel de Portugal, se é que estimou Camões mais do que estimaria outros, apresenta características estilísticas que o aproximam muito mais da atmosfera que Montemor cristalizaria superiormente na Diana, do que do lirismo camoniano que, cuidadosamente, separa o convencionalismo bucólico e a meditação lírica em forma de ode, elegia ou canção.
Depois destes… observemos que, de todos os poetas líricos com um mínimo de nome, nascidos entre Camões e Rodrigues Lobo (duas dúzias deles), só Fr. Agostinho da Cruz, Elói de Sá Soto Maior e Manuel da Veiga Tagarro não foram confundidos com ele, embora não tenham deixado de ser chamados seus discípulos. O que transformaria numa escola camoniana de líricos todos os poetas nascidos nos cinquenta e cinco anos que Camões viveu! E nem os “épicos” – Jerónimo Corte Real, Luís Pereira Brandão, Gabriel Pereira de Castro e Francisco Rolim de Moura – que haviam escapado à lírica confusão, escapariam também, visto que escreveram ou publicaram os seus poemas, depois de Camões publicar Os Lusíadas. O ridículo disto saltaria à vista, se os historiadores profissionais da literatura fossem sensíveis ao ridículo.
No nosso tempo, em que a mania da originalidade permite paradoxalmente que as influências sejam muito mais poderosas do que no tempo de Camões, um Fernando Pessoa não foi imitado por nenhum dos poetas que o admiraram, senão depois de 1940. O que significa que, praticamente inédito como também estivera durante a vida toda (e tendo publicado sobretudo poemas destinados a ter uma violenta influência polémica) Pessoa só influiu depois de morto, e cinquenta anos depois de ter nascido. Mutatis mutandis, as hipóteses são as seguintes: ou toda a poesia portuguesa lírica e épica, sem uma única excepção, sucumbiu à influência tirânica de Camões, durante três gerações, o que é um disparate que, mesmo para Shakespeare, nem nas piores épocas de idolatria a crítica inglesa proferiu para a época isabelina e jacobita; ou Camões é hoje para nós o mais alto expoente de toda uma época com características próprias, que, por isso mesmo, se viu indiscriminadamente confundida com ele.
Examinemos mais detidamente estas duas hipóteses. Imaginar como tirânica a influência de um poeta que, até ser publicado (isto é, no período que vai de 1572 a 1595) não assumira para ninguém, sobretudo como lírico, a importância exclusiva que os positivistas do século XIX, na cauda dos românticos, lhe atribuíram por preconceito político (quando, na verdade, a política de Camões, se podia seduzir o medievalismo romântico, não deveria poder seduzir os positivistas, a não ser na medida em que estes eram a primeira expressão do reaccionarismo laico), é ter uma visão primária da maneira como funciona, entre os seus pares, um génio literário. André Falcão de Resende, Pedro da Costa Perestrelo, Diogo Bernardes, Francisco de Andrade, que são os poetas líricos nascidos nos dez anos subsequentes ao nascimento de Camões, absurdo seria que fossem seus “discípulos”. Bernardes está notoriamente ligado à facção cortesã mirandina em que é preeminente Andrade Caminha, e o conjunto da obra que coligiu e publicou em vida, define-o como um poeta muito diverso de Camões, a quem é superior pela presença do concreto na lírica, e com o qual pode marginalmente ser confundido pela idêntica vibração melancólica, pela fluência sonhadora da linguagem, pelo arroubo de um religiosismo visionário, características que partilha em maior ou menor grau com todos os poetas tidos por camonianos. Se é pouco o que de Falcão de Resende ou de Francisco de Andrade permite um juízo, o pouco e provável que se conhece de Perestrelo não permite identificação alguma com Camões, a não ser na severidade austera e áspera de um religiosismo dramático, que no entanto se exprime com uma intensidade que Camões reserva muito mais para a meditação sobre o próprio destino em termos de generalidade humana, que, como Perestrelo faz, para a meditação do destino humano em termos de uma situação figuradamente concreta (a de Job). Fernão Álvares do Oriente, Fr. Agostinho da Cruz (cujas poesias só são publicadas em 1771, e que viveu fora do circuito da convivência literária a que seu irmão Diogo Bernardes tanto se entregou) ou Vasco Mousinho de Quevedo Castelbranco, nascidos entre 40 e 50, são poetas que, nitidamente “amaneiraram” aquilo que, em Camões ou Perestrelo, ou mesmo em Bernardes, vinha sendo religiosidade solipsista, alheada da comunidade, ao contrário da fé tão comunal de um Gil Vicente ou de Sá de Miranda. Mas a linguagem deles caminha para um abstracionismo não-intelectualista que não é de Camões. Seria como se a mansa loucura agnóstica de Bernardim Ribeiro ficasse fechada no problema da santidade ascética. Miguel Leitão de Andrade, Estêvão Rodrigues de Castro, Soropita, Francisco Galvão, Fr. Bernardo de Brito, Elói de Sá Soto Maior, Fr. Paulo da Cruz, Baltazar Estaço, Manuel da Veiga Tagarro, nascidos todos entre 1553 e 1570, continuam essa linha, ou prolongam em fluidez bucólica que atinge o limite em Tagarro e no mais jovem Rodrigues Lobo, ritmo ondulante de uma sentimentalidade que nada possui do erotismo camoniano. Quanto aos épicos, há que separá-los, antes de mais, em duas classes: os épicos mesmo, os poetas narrativos, e os que escreveram poemas filosóficos que não são nem pretendem ser poesia épica ou narrativa, em que pese à confusão mental dos historiadores. Jerónimo Corte Real, por exemplo, pertence à primeira espécie no Segundo Cerco de Diu e no Naufrágio de Sepúlveda (que não é propriamente um poema épico, mas um poema narrativo, género que a crítica portuguesa nunca soube distinguir, levada no ímpeto de ver em tudo uma progénie de Os Lusíadas), e à terceira, como grande poeta, nos Quatro Novíssimos do Homem, poema só publicado em 1768. Luís Pereira Brandão descreve na Elegíada o desastre de Alcácer-Quibir: é um poeta narrativo, em cujo poema não aparecem os ingredientes da composição épica. Francisco de Andrade é épico no Primeiro Cerco de Diu; Vasco Mousinho de Quevedo não o é em A Vida e Morte de Santa Isabel, poema narrativo de índole religiosa, publicado 24 anos depois dos Lusíadas, e é épico em 1611, com Afonso Africano, quarenta anos depois de publicados Os Lusíadas; Gabriel Pereira de Moura não o é, mas um poeta filosófico e religioso nos seus Novíssimos do Homem, belíssimo poema impresso em 1623, quase século e meio antes do de Corte Real que então morrera havia trinta anos. Isto significa que, mesmo na melhor das hipóteses, a tão tremebunda escola de épicos camonianos se reduz, nos poetas nascidos nos cinquenta e cinco anos da vida de Camões, e de entre os poemas dignos de algum registo, a dois cercos de Diu e um Afonso V das guerras de Marrocos, já que o poema de Gabriel Pereira de Castro se coloca inteiramente no maravilhoso mitológico. A redução seria maior ainda, se se atentar em que, estilisticamente, o verso branco de Jerónimo Corte Real nada tem a ver com as oitavas camonianas.
Resumamos agora o que vem sendo dito. Todos os poetas portugueses, desde Camões a Rodrigues Lobo, se prolongam o espírito dos “renascentistas” (e que já está largamente representado no Cancioneiro Geral de 1516, não pela colaboração de Sá de Miranda ou de Bernardim, mas pela de outros poetas anteriores a eles, como o excelente Diogo Brandão, que morreu em 1530), diferem radicalmente desse espírito, por aquele conjunto de características de ordem intelectual, religiosa, social, política, etc. [3], que permite considerá-los uma época autónoma, e não um grupo literário (que seria impensável ao longo de gerações sucessivas). Essa autonomia manifesta-se igualmente em relação às características que, à semelhança do que se passa na Europa, a poesia vai assumir desde o fim do primeiro quartel do século XVII até meados do século XVIII. As afinidades existentes, quando existem não apenas exteriormente, entre um Camões quase inteiramente póstumo, cuja obra lírica – dispersa ou ignorada – não podia antes de 1595 ter começado a exercer qualquer impacto (e o roubo do Parnaso, com a “inevitável” consequência de todos os poetas repartirem entre si o corpo lírico de um poeta que estava vivo e não era desconhecido, não explica nada senão para débeis mentais que, paradoxalmente, só Faria e Sousa não foi, porque o meritório Teófilo o era na medida em que era um positivista estrito e patrioteiro), demonstram esteticamente, menos do que uma influência de Camões, a existência de uma atmosfera peculiar e específica e, portanto, de uma época com fisionomia própria.
O facto de os poetas dessa época terem sido, em circunstâncias diversas, confundidos com Camões, só abona em favor da qualidade geral de todos eles, e daquela especificidade: se Camões foi um génio, por certo não lhes cabia a culpa. Mas, mesmo a este respeito, a menoridade deles não é assim tão grande quanto convém aos adeptos do “rastro camoniano”. Daqueles cuja obra está publicada ou reeditada recentemente por forma a poder ser apreciada no seu conjunto (às vezes tão precário pela incúria dos organizadores), um Diogo Bernardes, um Agostinho da Cruz, um Soropita, um Rodrigues Lobo, são poetas por direito próprio, e alguns deles mesmo dos maiores da língua portuguesa. Quanto à maioria dos outros, aguarda ela que lhe seja feita justiça, para o que necessário é que a “erudição” em vez de fingir-se do que não é, e citar sempre os mesmos sonetos (sem indicação das referências, que são Costa e Silva e Teófilo Braga), os desenterre dos cancioneiros manuscritos ou os reedite, e ofereça à crítica os documentos que mais amplamente confirmem as deduções que aqui vão feitas, as únicas que logicamente o podem ser. Nenhuma crítica interna se encontra, nos historiadores da literatura, para provar os lugares-comuns que repetem uns dos outros e essa crítica desmentiria. E é bem certo que assim seja, dado que a história literária, quando a não ilumina um autêntico amor da poesia, é, por definição, desonestidade, leviandade e estupidez. Honestamente, responsavelmente e inteligentemente, aqui proclamo que Camões e os outros até Rodrigues Lobo (quod erat demonstrandum) são maneiristas.
NOTAS
1 A ordem da enumeração é a das prováveis datas de nascimento. As datas das mortes são às vezes duvidosas. E há que pôr a reserva de Cristóvão Falcão ter existido como autor de Crisfal. O mesmo se dirá das datas dos poetas seguintes.
2 As Soledades e o Polifemo circulavam manuscritas desde 1613, em Espanha. E, em 1605, vários sonetos, letrilhas, romances, etc., de Gôngora, haviam aparecido na colectânea antológica, Flores de Poetas Ilustres. Mas o grande surto do chamado “gongorismo” filia-se nas Soledade e no Polifemo, muito mais do que nos sonetos. As letrilhas e romances, tradicionalistas de intenção e forma, se são belíssimos e originais, não contribuíam para a renovação sensacional da linguagem poética. Parece, portanto, lícito considerar uma época pré-gongórica (1613-1627), em que a nova moda levantava curiosidade, mas na qual os “maneiristas” portugueses já estavam formados, e outra, após 1627, em que o impacto podia ser directo, e é-o de facto, para os nascidos depois de 1580.
3 Não se tem atentado devidamente na sucessão das datas, a que tanta significação anacrónica tem sido atribuída. A censura inquisitorial dos livros começara em Portugal a funcionar em 1539, e só em 1547, quando a Inquisição está definitivamente instalada, é publicada a primeira lista de obras proibidas. Isto nada tem que ver com o Concílio de Trento, cuja convocação é feita em 1545, que sofreu vicissitudes várias que fizeram o papado desesperar de levá-lo a bom termo, e de que só em 1564, terminadas as discussões, o Papa Pio IV promulga as decisões que tiveram de aguardar a sanção dos diversos soberanos nacionais. De modo que, em Portugal, se havia em reforço político-religioso da concentração monárquica, não havia a reorganização socio-religiosa que o Concílio de Trento, através de adaptações nacionais, iria lentamente difundir na Europa católica (e não sem razão Gôngora e Marino nascem quando o Concílio se encerra, cerca de quarenta anos depois de nascido Camões), em paralelo com o estabelecimento definitivo do anglicanismo, na Inglaterra, no reinado de Isabel I que sobe ao trono em 1558. Também em França as lutas religiosas só terminam – e provisoriamente – com a subida ao trono, em 1589, de Henrique IV. Deste modo, a “pacificação barroca” só começa a estabelecer-se na última década do século XVI e primeira do século XVII, o que explica que o período histórico em que se situam Camões e os seus contemporâneos imediatos – algo que vai de 1550 a 1620 – pareça prolongar o Renascimento já defunto e antecipar o Barroco que ainda não chegara. E, nesse período, se já era tarde para o optimismo renascentista se manter, era cedo ainda para que as teses tridentinas resolvessem a perplexidade dos espíritos que o Renascimento libertara desorientadamente.