“A música é só música, eu sei”: tecituras da música e do tempo em Jorge de Sena, Maria Gabriela Llansol e Ana Hatherly

Neste artigo, Ana Paixão analisa as obras Arte de música, LisboaLeipzig 2 e O Calculador de Improbabilidades à luz das relações entre poesia e música, música e tempo, experimentalismos e diálogos interartísticos.

Ana Paixão (CESEM / UNL e Universidade Paris 8)

Quando Jorge de Sena publicou Arte de Música [1] em 1968, obra de síntese e de impulso criativo, deu a ler e a ouvir modos diversos de correlação entre literatura e música. A ligação entre ambas pode partir da simples referência temática até à fusão e apropriação, através de procedimentos de escrita também explorados por Maria Gabriela Llansol e por Ana Hatherly. A conexão intersemiótica presente na obra dos três autores mostra a que ponto as duas artes se escutam, se fundem e podem gerar novas formas de articulação interartística, com fronteiras esbatidas. Da experimentação semiótica resultam objetos híbridos, numa correlação diacrónica da literatura portuguesa com a música, desde a época medieval até aos dias de hoje [2]. Daí resulta uma exploração criativa materializada em textos poéticos e literários, assim como uma produção ensaística e teórica, de retórica e de poética que concretizam linhas de escuta, de técnicas, de procedimentos de escrita e de análise musicais aplicados à literatura [3].

A permeabilidade interartística que podemos observar em Arte de música de Jorge de Sena, em LisboaLeipzig de Maria Gabriela Llansol ou em O Calculador de Improbabilidades de Ana Hatherly é acompanhada por uma permeabilidade temporal, com a abolição de limites entre momentos e com a enfatização do instante. A tecitura da música nos textos literários dos três autores associa-se assim a uma urdidura de temporalidades de tipo pós-moderno, com uma conceção criativa, uma organização discursiva e poética baseada em entrecruzamentos, justaposições e descontinuidades que valorizam o instante bachelardiano, como veremos nos três autores em análise. A escrita de Jorge de Sena captura instantes musicais para a obra poética, a partir de concertos ou gravações específicos que convocam leituras intersemióticas literárias. Da heterogeneidade durativa emergirá ainda a mistura efabulativa de Maria Gabriela Llansol que, no plano da narração, funde tempos totalmente distintos em torno de um projeto que reúne Bach e Pessoa. Os textos-partituras de Ana Hatherly concentram temporalidades que aguardam a performance, numa escrita que rompe os códigos literários e segue as técnicas, os modelos enunciativos e discursivos da música.

Começaremos por analisar de que forma as criações literárias e musicais se relacionam com as problemáticas de tempo e, simultaneamente, de espaço.

1 – Escritas literáriomusicais e espaciotemporais

O tempo é o modo de existência do som, o ouvido ouve o discurso da voz, a frase enuncia-se no tempo, o pensamento constrói-se através dele. O “em curso” subjaz ao discurso, esse correr de um lado e doutro que a língua faz confluir num único percurso de cada vez [4].

A música dá uma forma ao tempo, molda-o e ultrapassa-o [5].

Os sons das palavras e da música arquitetam-se temporalmente em discursos que constituem confluências do que Fernando Gil designa por «em curso». As obras literárias e musicais determinam modos de modelar, de dar forma às durações subjacentes aos signos das duas artes. O discurso, feito de signos, recorta e delimita fronteiras ao referido «em curso», como refere Jean Libis:

Sabemos, de qualquer forma, que a conclusão de uma obra musical, qualquer que ela seja, apresenta este aspeto essencial: assegura o regresso ao tempo não-musical, o regresso a esta duração prosaica a que Jankélévitch chama “o quotidiano desabrido” [6].

Música e literatura vivem nesse intervalo estabelecido entre o começo e o fim da obra, modelando a distância aberta entre dois pontos. O tempo da obra, representado graficamente num suporte papel ou digital, atualiza-se numa leitura ou numa performance concreta: ler um texto, interpretar uma partitura é recriar o tempo da obra que se encontrava suspenso na representação escrita. Tal como salienta Maria Gabriela Llansol, os textos literários e musicais, antes de se concretizarem, não passam de uma «língua de fogo» (LL2, p. 124) [7] que não dorme, que não é um neutro, apenas um limbo que se exprimirá em sons ou em palavras-sons. Essa manifestação ocorrerá no tempo performativo – o da duração da obra –, que tem lugar num momento preciso – na sincronia da enunciação, do ser e acontecer aqui e agora [8]. O tempo da obra encontra-se desta forma contido numa cápsula ontológica, numa ressonância in potentia, que será posteriormente atualizada na duração mensurável da performance, numa ressonância efetiva.

Além de temporalidades intratextuais e exotextuais, nas obras literárias ou musicais dialogam e fundem-se ainda presentes e passados, resultantes de intertextos, de percursos e movimentos estéticos, de montagens, de técnicas e procedimentos criativos que tantas vezes se repetem, se opõem, se completam [9]. Toda a escrita existe assim na encruzilhada de outros textos-tempos, que se reúnem numa diacronia discursiva. Estas temporalidades podem ainda ser perspetivadas num contínuo fluir, como emergência de instantes ou numa interdependência entre espaço e tempo, seguindo respetivamente uma conceção aristotélica do contínuo [10], uma primazia platónica do instante [11], ou um cluster einsteiniano [12] num continuum quadrimensional.

Tempo e som convocam ainda a noção de ressonância, entendida do ponto de vista físico enquanto prolongamento das vibrações sonoras, ou na perspetiva sociológica, enquanto mecanismo acústico de relação entre indivíduos, e entre indivíduo-mundo, ou indivíduo-arte [13]. A ressonância pode assim suscitar respostas sociológicas e artísticas diversas: de sincronia, de oposição, de rutura ou mesmo de alienação, entre outras.

Estes conceitos operativos permitem analisar modos de relacionamento intersemióticos e espaciotemporais nas obras de Jorge de Sena, de Maria Gabriela Llansol e de Ana Hatherly. Em Arte de música a tónica é colocada no irrepetível da duração de uma performance musical que desencadeia a escrita poética como resposta. LisboaLeipzig insiste na fusão geotemporal e interartística. O Calculador de Improbabilidades cria uma rotura na escrita literáriomusical encontrando novas formas de relacionamento sígnico entre as duas artes.

2 – Irrepetível

Quando, no fim, / aquele tema torna não é para encerrar / num círculo fechado uma odisseia em teclas, mas para colocar-nos ante a lucidez / de que não há regresso após tanta invenção (AM, p. 170).

Arte de Música reúne quarenta e quatro poemas escritos a partir de performances musicais concretas que Jorge de Sena identifica de forma pormenorizada nas notas finais da obra (AM, pp. 223-231) [14]. Cada texto traduz intersemioticamente uma audição específica ou uma gravação que o autor indica de modo explícito, com uma manifesta preocupação hermenêutica [15]. A experiência da escuta, o momento da audição é desta forma uma «vivência de uma obra ou de um compositor» que acaba por se «cristalizar verbalmente» (AM, p. 207), e este processo permite uma «transfiguração poética» da música (AM, p. 209). Jorge de Sena utiliza assim o princípio da transdução [16] de Lubomir Dolezel, ao retomar, ao repetir, e simultaneamente ao traduzir e ao transformar os signos musicais em verbais. O signo muda de forma, pela transição de uma linguagem artística para outra.

A poiesis seniana surge, aliás, a partir de uma escuta musical transfiguradora. A audição do prelúdio La Cathédrale engloutie de Debussy converter-se-á no momento genésico de toda a produção de Sena:

Creio que nunca perdoarei o que me fez esta música.
Eu nada sabia de poesia, de literatura […]
Um dia, no rádio Pilot da minha Avó, ouvi
Uma série de acordes aquáticos, que os pedais faziam pensativos […]
Música literata e fascinante,
Nojenta do que por ela em mim se fez poesia (AM, pp. 165, 166).

De acordo com esta autobiografia poiética, a escrita seniana resultaria assim de uma tentativa de expressão a partir de uma experiência musical: «Ante um caderno, tentei dizer tudo isso» (AM, p. 165). A produção verbal surge assim de uma emergência e de uma urgência da escrita literária desencadeada por estímulos acústicos, numa resposta intersemiótica aos sons. Jorge de Sena justifica este processo criativo de estímulo-resposta com os seus conhecimentos técnicos e teóricos desta arte, e com uma proximidade particular com a música:

A explicação disto estará em que, se todas as artes me são necessárias à vida como o ar que respiro, a música ocupou sempre, entre elas e em relação a mim, um lugar especial. Recebi educação musical e instrumental […] Na primeira adolescência imaginava-me um pianista e compositor ilustre, que dava concertos (AM, p. 205).

O conhecimento e a empatia com a música desencadearam deste modo, não apenas a escrita de Arte de música, assim como toda a obra literária de Sena. Paradoxalmente será também a música a suscitar afasia verbal: «Ante um caderno, tentei dizer tudo isso. Mas / só a musica que comprei e estudei ao piano mo ensinou / mas sem palavras» (AM, p. 165). A inefabilidade da escrita musical, tantas vezes enunciada ao longo da história da música ocidental [17], não é contudo para Sena da natureza de um interdito. Trata-se antes de um horizonte expressivo que delimita as possibilidades do dizer [18], e que a poiesis seniana supera através da identificação de categorias precisas de verbalização. Para a música, mais do que para qualquer outra arte, só há «[…] duas maneiras de falar dela: tecnicamente, ou poeticamente» (AM, p. 208). Arte de música funde ambas e apresenta-se como um ensaio poético que conjuga o conhecimento técnico de Jorge de Sena enquanto pianista e compositor [19], com reflexões e problematizações de teoria musical. São assim exploradas questões como as da combinatória dos sons [20], das formas e estruturas [21], ou da significação da música [22].

Ao exprimir-se técnica e poeticamente sobre obras musicais concretas, Jorge de Sena cria uma nova poiesis interartística, pela produção de textos que aplicam o princípio da música programática à literatura. Este procedimento de escrita sublinha o instante, quer o da performance quer o da produção poética, colocando a tónica no momento da escuta-escrita, como neste exemplo: «Mozart: andante do Trio K496. Poema escrito no salão do Centre Culturel Portugais da Fundação Calouste Gulbenkian, em Paris, no programa de um concerto pelo Trio Gulbenkian, durante uma excelente execução da obra em epígrafe» (AM, p. 224; o poema é de 24/2/1964). Nesse instante da escuta-escrita, Sena retoma, reescreve, transfigura os signos musicais em literários, numa intersemiótica que materializa a différance deleuziana. Na poiética seniana a repetição é assim também uma forma de transfiguração e de diferença [23].

A audição desencadeia o processo criativo com a passagem de signos musicais a literários pela escrita do poema. A transdução tem lugar num continuum temporal e criativo através do qual se processa, segundo o autor, uma mudança transfiguradora. A continuidade é assim simultaneamente alteração, configurando os instantes da performance, da audição e da criação como únicos e irrepetíveis: «nada no mundo, / ainda que volte ao tema inicial, repete / o que foi proposto como tema para / se transformar no tempo que contém. (AM, p. 171).

O irrepetível é para Sena uma condição existencial num mundo regido por este princípio heraclitiano. Prefigura-se assim a impossibilidade de reiteração percetiva e fenomenológica que se alicerça numa mudança ontológica: «Nem a música, nem nós, somos os mesmos já» (AM, p. 171). De acordo com Sena, a audição musical tem esta capacidade de tornar idênticas as perceções exteriores e interiores, fundindo a música ressoante com o ser da ressonância:

Um concreto de coisas exteriores – e o espanto é esse – / igual ao que de abstracto têm as interiores que o sejam. / Será que alguma vez, senão aqui, / aconteceu tamanha suspensão da realidade a ponto / de real e virtual serem idênticos, e de nós não sermos mais o quem ouve, mas quem é? A ponto de / nós termos sido música somente? (AM, p. 171).

O som anula as fronteiras entre dentro e fora, entre música e ser, numa interpenetração que é a da escuta [24]. O ouvinte penetra no som e é simultaneamente penetrado por ele, como no ato 1, cena 1 de Parsifal, em que o tempo se faz lugar, ou como nos acordes de Schoenberg que «[…] se vão do espaço-tempo renovando» (AM, 169). O presente acústico é, desta forma, antes de mais um feito espaciotemporal que se estende, ressoa, e dilata som e ser. A ressonância sonora e ontológica estabelecida entre música e ouvinte, converte ambos em lugares-instantes do irrepetível musical, onde se reúnem as temporalidades da obra e da performance. Arte de Música procura incessantemente descrever, analisar, compreender esse processo sob a forma de múltiplos ensaios poéticos.

O instante da escuta-escrita surge ainda noutros textos perspetivado como um cluster de tempos que se materializam em apenas um, como é o caso de «Wanda Landowska tocando sonatas de Domenico Scarlatti» que reúne as temporalidades da escuta, da obra, da vida da intérprete e da do compositor:

Ouço-a tocar estas sonatas / anos depois que já está morta, / e mais de duzentos anos / depois que Domenico morreu.[…] / morta música / num morto cravo / tocado pela morta (AM, p. 173).

A performance permite assim uma atualização da confluência de todas estas temporalidades numa «apoteose de ressurreição» (AM, p. 173) que se aproxima da «cena fulgor» llansoliana (LL2, p. 69), como veremos, ao mesclar tempos díspares num exaiphnés.

3 – Fusão

Em LisboaLeipzig 2. O ensaio de música, a fusão espaciotemporal domina a organização narrativa, numa construção que se concretiza pela articulação da diversidade discursiva em entrecruzamentos e dispersões numa sincronização de dados epocais diferentes. Trata-se de um processo narrativo frequente na ficção pós-moderna, numa mescla efabulativa de personagens, tempos e espaços [25]. A pluriespacialidade surge de imediato representada no título LisboaLeipzig, na reunião das cidades de Fernando Pessoa e de Johann Sebastian Bach, tal como evidencia a seguinte passagem:

Partira [Bach] cedo com Aossê a visitar uma ermida no alto da montanha que dá, a Norte, para LisboaLeipzig, Ao amanhecer era ainda Leipzig, mas o Elster deslocara-se progressivamente até se sobrepor ao Tejo […] Riam, extasiados, para o modo subtil como partes de Lisboa se imbricavam em Leipzig (LL2, p. 93)

No entanto, a fusão territorial não se confina a essa ligação entre cidades e a obra faz coincidir outros locais [26], e materializa territorialmente outras entidades como o lugar da escrita «Maria Gabriela Llansol […] que é o sítio que me foi dado para eu escrever» (LL2, p. 102). As personagens também se fundem numa única entidade: Aossê e Elisabeth são designados por «ambo» (LL2, p. 114) e o próprio Aossê é uma concentração de espaços, uma galáxia literária.

A omnitemporalidade assume diversas formas em LisboaLeipzig 2. Por um lado temos a junção de momentos históricos, um paralelismo temporal ou mesmo a ausência de tempo. Personagens e entidades como Bach, Pessoa, Espinosa, Llansol e Portugal nos anos 80 convivem num mesmo momento, numa amálgama bem exemplificada pela seguinte passagem:

«Os rapazes estão entretidos com um duelo, seguindo as instruções que lhe dá um texto do século XVIII, que é o deles. As mulheres, enquanto uma cose, ouvem uma história que lhes é contada por um texto do século XII que, por sua vez, a foi ler num texto árabe do século IX. Entre os homens, um fala de um poema que escreveu no princípio do século XX a outro que vive no século XVIII» (LL2, p. 57) [27].

A reunião de tempos históricos apresentada neste excerto contém um elemento simbólico de grande relevo – a leitura da Lenda do Graal feita pelas mulheres –, que constitui simultaneamente uma evocação wagneriana consciente por parte de Llansol, na busca de um Graal artístico pela fusão dos textos de Pessoa e de Bach, elemento central da narrativa. No início do texto, Aossê desloca-se a casa dos Bach para solicitar a Johann Sebastian que componha para os seus textos:

«[…] Aossê, a quem Bach responde: “- Deixe-me ver se compreendi. O Senhor diz-me que são vários, mas que o poema que traz consigo é um poema que só o Senhor escreveu. Se bem ouvi, esse poema é vital para a sua gente. Veio ter comigo, ou mandaram-no ter comigo para que eu o ponha em música? É isto?” “– É um pouco isso.”» (LL2, p. 56)
«E ouvimos a pergunta de Bach a Aossê “e os Senhores [28] acham que esse poema precisa da grande arquitectura da música? E, se bem percebo, entre os Senhores, há quem pense que a minha música precisa desse poema. É isso?”. “Sim, é isso”, responde-lhe o outro e, deixando-se fluir: “uma nova letra para uma grande arquitectura» (LL2, p. 57)

Para a concretização deste projeto os textos literários e musicais de ambos serão trabalhados em conjunto, numa concentração espaciotemporal que faz coincidir Bach e Pessoa no mesmo quarto, tal como refere a seguinte passagem:

«os dois [Bach e Aossê], fechados neste quarto, emitimos sons exageradamente volumosos. Emana de tudo isto uma força excessiva que modifica o tempo musical do espírito. Fechou o cravo e perguntou-lhe, indicando com o dedo uma palavra de O Guardador de Rebanhos que estava a usar como libreto […]» (LL2, p. 99).

Além da reunião de Pessoa e Bach em torno deste Graal artístico, que prevê a junção de artes, de geografias e de historicidades, em LisboaLeipzig 2 encontramos ainda momentos de tempos paralelos, que Llansol designa por «cenas fulgor», tal como exemplifica o seguinte excerto: «uma natureza que decorre ao mesmo tempo que a cena divina» (LL2, p. 69) [29]. A justaposição espaciotemporal do fulgor surge como expoente máximo da concentração de lugares e instantes, aproximando-se do exaiphnes platónico [30], dos momentos de penetração da eternidade no tempo descritos por Kierkegaard [31] ou da aproximação entre instante e eternidade, de acordo com Eduardo Lourenço [32]. O fulgor da escrita de Llansol surge como um momento génese e genésico, instante-instantâneo de plenitude que se aproxima da ucronia. Encontramo-la precisamente na mesma cena do piquenique familiar junto ao Elster, na «tarde transparente» (LL2, p. 67) quando a narradora constata: «Aqui não há tempo […] – Aqui há ser» (idem).

Em LisboaLeipzig a música de Johann Sebastian Bach surgirá como elemento aglutinador e estruturador: «[…] o tempo e o espaço, por sobre esta casa, ocorrem na arquitectação da música» (LL2, p. 60). Será ainda esta arte a ter o papel unificador do tempo, na esteira de Bergson [33], para quem a melodia constitui o exemplo máximo da continuidade: «A música não consente que a hora se divida» (p. 46). Ela é ainda a entidade sensitiva que se apodera fisicamente dos corpos e das mentes das personagens através da ressonância sonora:

A música que desce sem hesitação quer que os corpos dancem e se elevem fisicamente nos ares do templo. E aquele corpo virgem [de Anna Magdalena], que desconhecia o êxtase, cala o seu pedido de ser humano, e ergue-se como figura. Eleva-se com seriedade, liturgicamente, até que o invisível se apresente para a conduzir onde a música lhe aprouver. Naquela hora, o órgão de Leipzig tem um Senhor que lhe aponta a proa ao Universo. Olha para as suas mãos, o organista. Mãos de órgão […], pés de órgão – corpo daquele som (LL2, p. 46).

Retomamos a identificação e interpenetração entre som e corpo já analisado em Arte de Música. Aossê apresenta igualmente uma correspondência na outra arte: «o amigo estava construído em fuga musical» (p. 97). No plano da narração llansoliana, Aossê concentra assim uma pluralidade de vozes fugadas numa galáxia literária, na convergência de um corpo literário-musical.

A partitura é ela própria uma concentração de lugares e durações em potência, pronta a ser projetada e captada através de sinestesia que a síntese entre “ouvir” e “ver” expressa:

A partitura é uma rocha vulcânica, ígnea, com a frente voltada para o espaço […] [Bach] Quero que a minha música lance sons e apelos para lá do que se ouve, ou se pode ouvir. Quero que os meus ouvidos aprendam a ouver com a máxima nitidez (LL2, p. 73)

Em ouver correlacionam-se modos de apreensão sensível, procurando que a música capte e alcance sons e imagens pelos sentidos e «para lá do que se pode ouvir». É por essa mesma razão que o ato de compor ultrapassa o âmbito espaciotemporal:

O cristal multifacetado do som simples […] surgiu […] com as notas alinhadas da partitura obscura quando Johann passava o seu ouvido por entre a poeira que do Universo em extensão se deposita no tempo de vida (LL2, p. 61)

Compor consiste desta forma em ir buscar ao continuum em extensão (o Universo e a Eternidade) os sons que constituirão a partitura, ao «lançar uma ampla respiração do som [para] antecipar a contracção final do tempo» (LL2, p. 143). Escrever é assim antecipar e ultrapassar essa condição finita. Como bem refere Aossê a propósito da obra literária e musical que constrói com Bach, caberá depois à eternidade «experimentar a nossa resistência, e os nossos limites» (LL2, p. 23), saber até que ponto a obra de ambos se desinscreve do «em curso» [34] e se insere em dimensões de intemporalidade canónica através da conjugação espaciotemporal e interartística que a fusão da obra de ambos alcançaria.

4 – Rotura [35]

A poesia de Ana Hatherly tece novas formas de relação entre literatura e tempo, tal como refere a autora em Um Calculador de Improbabilidades [36], coletânea que compreende uma seleção de textos publicados entre 1959 e 1989:

Depois do Futurismo e do Surrealismo, o Experimentalismo veio acentuar a ruptura com os valores tradicionais do tempo no texto valorizando preferencialmente o espaço em que se move a palavra. (CI, p. 327).

A semantização do espaço, associada à poesia visual, implica também uma nova conceção dos tempos da obra e da performance textual. O primeiro poema concreto publicado em Portugal (CI, p. 27), em 1959, mostra claramente que a representação espacial influencia os tempos da obra e da performance. O texto pode ser lido de diferentes formas, evidenciando diversos temporalidades, em coexistência. Daniel Charles salienta precisamente essa concomitância associada à pós-modernidade: «Vivemos num tempo onde tudo é contemporâneo e não sucessivo» [37]. A obra de Ana Hatherly convoca em permanência descontinuidades, sucessões repentinas, heterogeneidades que se conjugam de forma intrínseca com o próprio lugar da escrita.

As novas formas de trabalhar o espaço-tempo da poesia de Hatherly associam-se ainda a princípios de escrita musicais [38], tal como a autora indica em «Noite, canto-te noite» (CI, p. 134-146):

O texto seguinte foi concebido como uma partitura musical em que a apresentação do silêncio, dadas as lacunas criadas no texto, vai aumentando de modo a que, na terceira fase, em que só a palavra «noite» é proferida, o silencio criado pelo texto eliminado se torne suporte da emoção poética.
I – texto integral;
II – eliminação da palavra «noite» deixando em branco o espaço que ocupava no texto integral, espaço que deverá ser lido em silêncio, como uma pausa musical;
III – a leitura da palavra «noite» deve ser feita em voz alta, com a entoação que tinha no texto integral e respeitando os intervalos que correspondem ao texto que foi obliterado. A palavra «noite» surgirá assim como uma intercortada constelação sonora. (CI, p. 134)

O texto de «Noite, canto-te noite» foi escrito para ser realizado como uma performance a partir do «programa» apresentado que supõe a execução do texto como se se tratasse de uma partitura, com pausas e com a interpretação da palavra «noite» apenas nos momentos em que seria executada na leitura integral da obra. A palavra isolada perde a sua significação, passando a ser encarada exclusivamente na sua componente fónica e devendo ser interpretada não só no mesmo momento da obra, como ainda deverá ter mesma entoação do texto inicial. O restante texto é feito de pausas, como salienta Hatherly:

[Noite Canto-te Noite] ilustra um tipo de experimentação sobre o silêncio, que tem a ver com a minha íntima ligação com a música, inclusive com a música de vanguarda, muito importante para os experimentalistas (lembre-se a presença de Jorge Peixinho nas acções dos experimentalistas) (CI, p. 19)

Ana Hatherly utiliza ainda o princípio musical do tema e variações [39] em «Leonorana» (CI, p. 193-233), a partir do mote de Camões:

Descalça vai para a fonte
Leonor pela verdura
Vai formosa e não segura (CI, p. 195).

As variações, que fundem o nome da personagem com o da própria autora, apresentam um «programa» de alteração livre (I), com rima obrigada (II), com leituras múltiplas (III) ou simétricas (IV), passando progressivamente a uma ininteligibilidade do texto por dessemantização das palavras. Segundo o «programa», a significação mantém-se através de uma semantização harmónica (variação X), que se transformará em semantização exclusivamente visual a partir da variação XIV, atingindo o seu epígono nas variações XIX e XX. Na variação XXI o signo linguístico é retomado para ser trabalhado sobretudo na componente gráfica (XXVII-XXIX), mas também musical na variação XXX. Esta última associa ainda a escrita do texto com a escrita temporal ao referir:

Escrevo Leonor porque descrevo e descrevo porque escrevendo o tempo
Inscreve-se nas linhas imaginárias por onde escrevo (CI, p. 232).

Em «Leonorana», os tempos da obra e da performance complexificam-se à medida que as variações passam de um paradigma literáriomusical para signos visuais. O tempo da obra encontra-se representado em variações como a XIX ou a XX através das linhas que supõem uma duração; não é no entanto possível concretizá-lo na performance. A penúltima variação dá conta dessa correlação entre escrever o texto, e nele inscrever os tempos da obra e da performance. Em «Leonorana» são ainda significativas as intertemporalidades que transportam um mote do século XVI, através de um procedimento de escrita muito utilizado pela literatura barroca, até ao século XX. A esta constelação diacrónica acrescenta-se ainda o facto de o tema e variações ser uma técnica abrangente a várias artes (como o mostra o próprio texto de «Leonorana») e a vários espaços geográficos, enquanto técnica de escrita artística europeia muito relevante em termos musicais, como vimos na nota anterior. Hatherly salienta:

Nessas Variações [de Leonorana], o leitor poderá observar a importância dada ao processo do anagrama aplicado à palavra-chave do poema – Leonor – assim como, e ainda mais profundamente, à própria estrutura sonora do vilancete. […] Também é muito evidente no programa de Leonorana a sua relação com a técnica de composição musical, que eu estudei, e em que a prática do tema e variações é um método recorrente ao longo da história da música (CI, p. 21, 22).

Entre 1982 e 1989, Ana Hatherly escreve «Joyciana» (CI, p. 337-364), dialogando com um dos maiores autores canónicos do século XX, fundindo-se com ele logo a partir do título, e optando por trabalhar uma obra semanticamente difusa como Finnegans Wake. As variações constroem permanentes dessemantizações e ressemantizações do texto, jogando com a alternância entre línguas (veja-se, por exemplo, a variação 21, CI, p. 361), ou com a utilização de onomatopeias (variação 11, CI, p. 351). As alternâncias entre línguas e os jogos de palavras presentes nestes textos tornam o som do signo linguístico semanticamente relevante, integrando-o como elemento de significação da obra.

A combinação entre variação e des/ressemantização sonora ocorre, por exemplo, em A Detergência morosa (CI, 180-190), obra escrita entre 1966 e 1968. O que parece ser um jogo de palavras próximo da poesia oral ou mesmo de lengalengas infantis revela-se um hábil procedimento de composição fónico e semântico que assenta em figuras de estilo como a ironia. Veja-se a título de exemplo «o livre pensador da cunha» (CI, p. 181) ou «os sumérios eram sumários» (CI, p. 183). A Detergência morosa termina exemplarmente com um texto onde as onomatopeias se conjugam com a alternância entre línguas (português, francês e italiano), em torno de um género eminentemente musical. A «Cantata para a maldade semântica» utiliza a palavra como som e altera ou esquece, de maneira sistemática, o significado verbal.

No último texto de O Calculador de Improbabilidades, Ana Hatherly imagina os criadores do futuro como «polivalentes, operadores de multimédia mas também operadores de multiculturas, abertos a todos os espaços geográficos e temporais […] Os textos serão cada vez mais textos-actos. Ao texto-acto corresponde o poeta-actor, porque a obra será cada vez mais acção – ópera-acção» (CI, p. 388). Não estamos, ainda assim, no projeto de obra de arte total wagneriana, de um modelo de identificação e de verosimilhança, mas antes num procedimento ancorado no barroco [40] – de que Ana Hatherly é grande especialista –, onde o artifício é exposto enquanto tal. O criador do futuro rompe as fronteiras entre artes, entre técnicas, sendo ele próprio o performer das suas obras, rasgando fronteiras espaciotemporais concebendo a rutura como principal mote e método criativo.

5 – Ressonâncias

Em Arte de Música, a poiética seniana define a criação literária como a ressonância de uma escuta musical, em vibrações acústicas e ontológicas irrepetíveis das quais emerge o poema. Maria Gabriela Llansol apresenta em LisboaLeipzig 2 a possibilidade de uma obra intersemiótica onde literatura e música se fundam e ressoem numa cantata que transformará a humanidade. Para Ana Hatherly a obra do futuro deverá ter ressonâncias da literatura, da música e das artes visuais numa «exploração verbo-voco-visual» (CI, p. 10), que simultaneamente rompe fronteiras interartísticas e espaciotemporais.

Nas obras dos três autores a música ressoa incessantemente tecendo caminhos temáticos e teorizadores: em Arte de Música ou em LisboaLeipzig surge enquanto método de construção textual; em O Calculador de Improbabilidades aparece como modelo performativo ou pela transformação do som linguístico em matéria não significante. Nestas escritas literárias que buscam incessantemente a música tecem-se tempos, sobretudo instantes, fulgurâncias, irrepetibilidades, fusões ou ruturas. Os tempos dos textos de Jorge de Sena, de Maria Gabriela Llansol e de Ana Hatherly são fragmentários como os próprios segmentos verbais sonoros, correspondendo às montagens autorais, interartísticas e intertemporais. Vinte e cinco compositores e vários intérpretes são mencionados em Arte de Música [41], LisboaLeipzig inclui Bach, Pessoa, Espinosa, Llansol, em O Calculador de improbabilidades coexistem Camões, Joyce e Hatherly. Os cruzamentos artísticos compreendem a literatura, a música, as artes visuais, performativas e o cinema. Quanto às temporalidades, juntam-se as dos autores referidos, assim como, em Llansol, medievais, terrenas ou divinas, ou barrocas, em Hatherly.

Nas criações de Sena, de Llansol e de Hatherly reúnem-se intertextos em palimpsesto, que mais não são do que intertempos, sublinhando sempre o transitório, o efémero, o exaiphnés, que surge metonimicamente nos tempos da performance e da vida:

«Podendo morrer a cada instante ____________ é com verdadeira propriedade musical que Johann pôde dizer que o seu corpo é o único que habita conscientemente a casa de talvez» (LL, p. 164)

As temporalidades fugazes, descontínuas e fragmentárias, aproximam-se da estrutura granular einsteiniana [42]. A relatividade espaciotemporal é assim variável em função da velocidade e da gravidade [43], tal como Einstein demonstrou através do efeito de Doppler [44].

Como exemplo máximo de brevidade, Jorge de Sena insiste no instante irrepetível, Llansol na concentração apoteótica de uma «cena fulgor», e Ana Hatherly na ressonância doppleriana, entendida como metáfora do ténue vestígio que resta após o instante da vida humana: « A nossa existência é uma rápida passagem pelo mundo em efeito Doppler [45

O som que permanece desta passagem prolonga-se para Sena, Llansol e Hatherly no legado dos seus textos, feitos de instantes, de fusões espaciotemporais, é certo, mas que entendemos sup specie aeternitatis. Como salienta Espinosa, personagem central em LisboaLeipzig, «é da natureza da razão perceber as coisas sob uma espécie de eternidade» [46]. Jorge de Sena, Maria Gabriela Llansol e Ana Hatherly tecem e alcançam essa condição de perpetuidade pela fusão interartística:

Não foi para morrermos que falámos, / que descobrimos […] a pintura, a escrita, a doce música. («A morte, o espaço, a eternidade», Metamorfoses [47], p. 133).

Unir o pensamento à música e ao poema, no meio comum dos homens, deve bastar. (LL2, p. 171).

Penso que […] nas [atividades] artísticas irá acentuar-se a interdisciplinaridade, com recurso a todos os meios disponíveis, abolindo de facto as fronteiras entre as artes (CI, p. 388).

NOTAS

1 Jorge de Sena, Arte de música [1968] in Poesia II, Lisboa, edições 70, 1988, p. 170. Nas referências seguintes designaremos esta obra pelas iniciais «AM».

2 Numa perspetiva diacrónica, a literatura portuguesa funde-se com a música desde a Idade Média. Nas cantigas galego-portuguesas, a conceção da mancha gráfica do poema, a presença de refrão, a paralelística, ou a rima comprovam que a tipologia de construção do texto literário permite uma articulação entre palavra e música. Mais do que escutar o texto musical, as cantigas medievais moldam-se e adaptam-se, numa correlação intersemiótica plena entre as duas artes. Esta interligação não é exclusiva da poesia medieval e encontrá-la-emos noutros exemplos como, por exemplo, na gramática renascentista. João de Barros salientará a que ponto a sonoridade e as características fonéticas do português são de natureza musical e lhe conferem uma identidade única (Diálogo em Louvor da Nossa Linguagem, introdução de Luciano Pereira da Silva, Coimbra, Imprensa da Universidade, [1540], 1917, pp. 54v, 55). André de Christo salientará as propriedades da língua a partir de exemplos de Os Lusíadas que voltam a questionar a linha divisória entre as duas artes (Juizo Poetico, Lisboa, Na Off. de Diogo Soares de Bulhoens, 1667, pp. 3-5). João Baptista de Castro, em Espelho da Eloquencia Portugueza, obra que marca o início do período barroco na teoria retórica portuguesa, analisa o texto do Padre Antonio Vieira a partir de terminologia analítica musical (Lisboa Occidental, Na Officina de Antonio Pedrozo Galrão, 1734, pp. 27-30). Essa mesma via será seguida por Cândido Lusitano que se debruçará sobre a interseção entre poesia e música, sendo já percursor da sensibilidade do Simbolismo (Diccionario Poetico, Lisboa, Na Officina de Simão Thaddeo Ferreira, 1794). Estes exemplos mostram de forma sintética que, tanto do ponto de vista criativo como analítico, a música esteve presente de forma continuada no percurso diacrónico da literatura e da teoria literária portuguesas.

3 Questão aprofundada em Ana Paixão, Rhétorique et techniques d’écriture littéraires et musicales au Portugal. XVIIe-XIXe siècles, Paris, Harmattan, 2021.

4 Fernando Gil, Tratado da Evidência, tradução de Maria Bragança, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1996, p. 235.

5 Talia Pecker-Berio, « Retour et mémoire chez Malher et Debussy » in Danelle Cohen-Levinas, Récit et représentation musicale, Paris, L’Harmattan, 2002, pp. 211-226, p. 211, minha tradução.

6 Jean Libis, «Inspiration musicale et composition littéraire» in Jean-Louis Cupers & Ulrich Weistein (orgs.), Word and Music Studies : Musico-Poetics in Perspective. Calvin S. Brown in Memoriam, Atlanta, Rodopi, 2000, p. 9, minha tradução.

7 Maria Gabriela Llansol, LisboaLeipzig 2. O ensaio de música, Lisboa, Rolim, 1994. Esta obra será referida em seguida com «LL2».

8 Na esteira de Martin Heidegger, Être et Temps, trad. de l’allemand par François Vezin, Paris, Gallimard, 1986.

9 Seguimos aqui a perspetiva deleuziana: «Cada arte tem as suas técnicas de repetições imbricadas, cujo poder crítico e revolucionário pode atingir o mais elevado ponto para nos conduzir das mornas repetições do hábito às profundas repetições da memória e, depois, às repetições últimas da morte, onde se joga a nossa liberdade», in Gilles Deleuze, Diferença e repetição, tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado, prefácio de José Gil, Lisboa, Relógio d’Água Editores, 2000, p. 463.

10 Vejam-se a este propósito o tempo como ordem de sucessividade de acordo com a Théorie du Mouvement concret et celle du Mouvement abstrait (1670), de Leibniz; o tempo unidimensional e sucessivo de Kant na 1ª parte da Crítica da Razão Pura, a partir do tempo absoluto da física de Newton; ou Henri Bergson, epígono desta conceção temporal, que desenvolve as noções de «durée» ou de «durée créatrice». Tal como afirma o autor em Matière et mémoire: «A divisão é obra da imaginação, que tem justamente por função fixar as imagens em movimento da nossa experiência ordinária, como o clarão instantâneo que ilumina durante a noite uma cena de tempestade» in Henri Bergson, Matière et mémoire, Paris, Quadrige, 1999, p. 211, minha tradução. O conceito de tempo para Bergson resulta assim de uma elaboração mental numa dupla vertente externa e interna, perceção de movimento e sensação de permanência, de continuidade.

11 Gaston Bachelard, contra Bergson, salientou precisamente a descontinuidade temporal, sublinhando o que tem vindo a ser a abordagem contemporânea do tempo. O instante não surge como uma abstração, como um corte artificial imaginado ou um ponto idealizado de divisão, mas antes enquanto essência da temporalidade (cf. L’Intuition de l’instant, préface de Jean Lescure, Paris, Denöel, 1985). Platão já havia considerado o exaiphnés (instante-instantâneo) em obras como Parménides.

12 A velocidade da luz é, de acordo com a teoria da relatividade, a única constante absoluta. Desta forma, e de acordo com Einstein e Infeld: «O nosso espaço físico, tal como se encontra concebido por meio de objetos e dos seus movimentos, tem três dimensões, e as posições são caraterizadas por três números. O instante de um evento é caracterizado pelo quarto número. […] Então: o mundo dos eventos forma um continuum quadrimensional» in Albert Einstein e Leopold Infeld, L’évolution des idées en physique, Paris, Champs Sciences, 2011, p. 34, minha tradução.

13 «A ressonância designa uma relação entre dois (ou mais) corpos […] que descreve desde logo um modo de ser-estar no mundo» in Hartmurt Rosa, Résonance. Une sociologie de la relation au monde, traduit de l’allemand par Sacha Zilberfarb, Paris, Editions de la découverte, 2018, p. 191, minha tradução.

14 Cita-se a título de exemplo, a primeira nota da obra: «La Cathédrale engloutie. A minha 1ª audição do nº 10 do vol. I dos Préludes, de Debussy, nos termos do poema, ocorreu em 1936, e foi sob a impressão dela que primeiro escrevi versos. A interpretação gravada que então ouvi foi, suponho, a de Walter Gieseking, que aliás veio a gravar a série mais do que uma vez» (AM, p. 223).

15 «Talvez que haja especialistas interessados em descobrir em que medida um determinado concertista ou certo maestro, nesse momento, influiu na minha visão com a execução que da peça deu» (AM, p. 207).

16 Utilizo o termo que Lubomir Dolezel formulou em A Poética Ocidental, prefácio de Carlos Reis, tradução de Vivina de Campos Figueiredo, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1990, p. 270. O exemplo utilizado pelo autor para definir este conceito é um exemplo sonoro radiofónico de Roman Jackobson, na esteira da primeira escuta transfiguradora de Jorge de Sena no rádio Pilot da avó.

17 Salientamos apenas uma das obras emblemáticas sobre esta questão: Vladmir Jankélévitch, La Musique et l’Ineffable, Paris, Seuil, 1983.

18 Fazemos aqui a distinção entre «dizer» e «mostrar», seguindo as duas conceções tal como formuladas por Wittgenstein: «Fundamental é a teoria do que pode ser expresso (gesagt) pelas prop[osições], i. e., pela linguagem, (e, o que no fundo é o mesmo, do que pode ser pensado) e daquilo que não pode ser expresso pelas prop[posições], mas somente mostrado (gezeigt); o que, creio, é o problema principal da filosofia» in L. Wittgenstein, Notebooks 1914-16, G. E. Anscombe & George Wright (org.), Chicago, University of Chicago Press, 1983, p. 71, minha tradução.

19 Do acervo de Jorge de Sena fazem parte várias obras de teoria musical, partituras, e algumas composições. Como referem Jorge Fazenda Lourenço e Mécia de Sena: «Entre os projectos de juventude de Jorge de Sena, o de vir a ser compositor foi um dos de maior vulto […]. E a tal ponto se sentia dotado para essa carreira, que, mesmo depois de a ter posto de lado como irrisório sonho, uma das suas delícias de toda a vida era sentar-se ao piano e “improvisar” com largos arpejos e estrondosos acordes, tal como descreve no conto “O papagaio verde”. Como resultado desse devaneio juvenil sobraram algumas “composições” das quais “Pobre velha música”» […] (Set. 1938-39), Lied de Jorge de Sena sobre poema de Fernando Pessoa» in Jorge Fazenda Lourenço e Mécia de Sena (orgs.), Jorge de Sena : a voz e as imagens, textos e comentários de Eugénia Vasques e Jorge Fazenda Lourenço, Lisboa, Instituto das Estradas de Portugal, 2000, p. 96.

20 «[…] no abstracto busca / ad infinitum combinações possíveis bem que ilimitadas; / […] tudo soa como a própria liberdade dos acasos lógicos / que os grupos, e os grandes números, e as proporções / conhecem necessários» (AM, p. 170).

21 Variadas são as referências a formas musicais como o tema e variações ou à noção de reexposição do tema, como nos textos dedicados a Dowland (AM, pp. 166, 167), a Bach (AM, p. 167) ou a Mozart (AM, p. 177). Neste último texto, Jorge de Sena manterá a noção de «forma» aplicada também à literatura, já que se trata do único poema de Arte de Música que recorre a uma forma fixa de criação – um soneto.

22 Como se refere no poema dedicado a Schoenberg: «[…] não há sentido em dar sentido / a uma estrutura musical, já que o sentido / é ele mesmo a sequência falsa que não significa» (AM, p. 201).

23 «A arte não imita, mas isso acontece, primeiramente, porque ela repete, e repete todas as repetições, conforme uma potência interior (a imitação é uma cópia, mas a arte é simulacro, ela inverte as cópias em simulacros)» in Deleuze, op. cit., p. 462.

24 Cf. Peter Szendy, «Être à l’écoute» in L’écoute, Les cahiers de l’IRCAM, Paris, l’Harmattan, pp. 275-315, p. 287.

25 A união espaciotemporal como estratégia de construção da pós-modernidade está bem patente nas obras de Brian Mc Hale, Post-modernist Fiction, Methuen, Nova Iorque, 1987, e de Linda Hutcheon, Poetics of Postmodernism, Routledge, Nova Iorque, 1988.

26 A casa dos Bach – «Da Baixa à casa dos Bach era um pulo» (LL2, p. 93) –, a Rua Domingos Sequeira (LL2, p. 26), o jardim da casa dos Bach, a falésia, o cemitério dos Prazeres (LL2, p. 98), o rio Elster (LL2, p. 93), o jardim da Estrela (LL2, p. 104), a Europa (LL2, p. 113), o Universo (LL2, p. 61), o texto, já que é também um lugar: «Chove torrencialmente no texto» (LL2, p. 42).

27 As referências textuais são respetivamente a Carl Philipp e Johann Christian Bach («os rapazes»), Anna Magdalena e Elisabeth Julian («As mulheres»), a Lenda do Graal («texto do século XII»), Fernando Pessoa (1888-1935), o homem que «fala de um poema que escreveu no princípio do século XX», e Johann Sebastian Bach (1685-1750), o homem «que vive no século XVIII».

28 Alusão à galáxia literária de Pessoa.

29 As referências deste texto são respetivamente a um cenário de fundo da cena de piquenique familiar junto ao Elster «que decorre ao mesmo tempo que a cena divina», correspondente à levitação dos corpos no xaile voador de Visnu e Brama. Pedro Eiras analisa esta dimensão metafísica de LisboaLeipzig 2 em «La Diction d’Eros à propos de l’érotisme dans les contes de Maria Gabriela Llansol, in Femme et écriture dans la Péninsule Ibérique, Maria Graciete Besse e Nadia Mékouar-Hertzberg (orgs.), volume 1, Paris, L’Harmattan, p. 276.

30 Platão, Parménides, introdução de José Trindade Santos, tradução e notas de Maria José Figueiredo, Lisboa, Instituto Piaget, 2001, 156d. O exaiphnés é definido como instante-instantâneo, ponto indivisível e inextenso, situado entre a imobilidade e o movimento, entre a eternidade e o tempo, gerador do novo através desta dialética.

31 Le concept de l’angoisse, Paris, Gallimard, Folio Essais, 1977.

32 «O paradoxo do Instante é o de nunca ter principiado e não poder ter fim. Ninguém verá a cabeça nem a cauda de tal monstro. Nascemos a bordo e a caminho, como Pascal, seu primeiro grande viajante sem bagagem, claramente o soube. A forma do barco onde vamos sem a ver é o mesmo Instante. Nele deslizamos, estranhamente parados, não para a Eternidade, mas na Eternidade. Atrás deixamos a espuma do Tempo» in Eduardo Lourenço, Tempo e Poesia, Coleção Civilização Portuguesa, Porto, Inova, 1974, pp. 39, 40.

33 «Quando ouvimos uma melodia, temos a mais pura impressão de duração que poderíamos ter – uma impressão tão afastada quanto possível da de simultaneidade – e, no entanto, é a própria continuidade da melodia e a impossibilidade de a decompor que nos dão essa impressão» in Henri Bergson, La Pensée et le mouvant, Genève, Skira,1946, p.160, minha tradução.

34 Op. cit., p. 235.

35 Referência ao filme que Ana Hatherly realizou em 1977, aquando de uma performance na Galeria Quadrum numa referência muito direta à revolução de abril de 74.

36 Ana Hatherly, Um Calculador de Improbabilidades, Lisboa, Quimera, 2001. As referências a esta obra surgirão com as iniciais «CI».

37 Daniel Charles, La fiction de la postmodernité selon l’esprit de la musique, Paris, PUF, 2001, p. 73.

38 Note-se que Ana Hatherly realizou estudos de composição em Viena e de canto em Paris.

39 A variação (variatio) é um dos processos de escrita mais fecundos em literatura e em música. Este termo abrange simultaneamente um princípio de produção textual, baseado na transformação de um material sonoro literário ou musical, e um certo número de formas de expressão elaboradas com base neste princípio e constituídas, em geral, de um tema e de uma série de transformações deste tema. Enquanto procedimento de escrita, a variação encontra-se já presente nos tratados clássicos de retórica. A Rhetorica ad Herennium precisa que as figuras retóricas permitem introduzir a variatio no discurso, e acrescenta que «graças à variedade evitar-se-á facilmente o cansaço» in Rhétorique à Herennius, texte établi et traduit par Guy Achard, Paris, Les Belles Lettres, 2003, p. 146, minha tradução. Em Institutio Oratoria, Quintiliano atribui o poder de agradar à «variação semântica de uma palavra repetida» (in La Formazione dell’Oratore, traduzione e note di Stefano Corsi. Milano, BUR, 2001, p. 1433, minha tradução), e este torna-se no objetivo que a variatio retórica deve atingir.

Apesar da existência efetiva de formas de construção literárias que apresentam um tema como ponto de partida e variações desse tema no corpo do texto, a designação tema e variações tornou-se, como sublinha Charles Brown, numa «forma standard» unicamente para a música in Word and Music Studies: Musico-Poetics in Perspective, Atlanta, Rodopi, 2000, p. 235. O mesmo autor afirma ainda que o desenvolvimento desta forma de expressão musical se fez «mais ou menos ao longo do mesmo período em Espanha, em Itália e na Inglaterra, mas o nosso conhecimento actual indica que a Espanha foi a pioneira» (loc. cit.). A investigação de Macário Santiago Kastner mostra igualmente o carácter inovador dos organistas, não apenas espanhóis, mas ibéricos, na criação e desenvolvimento das variações como um modo de expressão mais ou menos organizado. De acordo com Santiago Kastner: «A arte da variação, que em Espanha e Portugal cedo floresceu e atingiu um elevado nível, foi levada pelos organistas espanhóis para Inglaterra e os Países Baixos e desenvolvida pelos organistas e virginalistas da época Tudor, mas propagou-se, a partir de Espanha pelo sul de Itália (Nápoles, Sicília). Esta tendência para a variação que absorvia muito o espírito de organistas, clavicordistas, harpistas e vihuelistas ibéricos, manifestou-se no tento, tanto sob a forma de ricercar imitativo, como no compasso e figuras teclísticas» in Três Compositores Lusitanos para Tecla, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1979, p. 73. Entre os séculos XVI e XVIII, a variação aparecerá sobretudo na música instrumental e com outras designações: o «double» em França, a «differencia» em Espanha, ou a «glosa» na Península Ibérica», cf. Ivanka Stoïanova, Manuel d’Analyse musicale. Variations, sonate et formes cycliques, Paris, Minerve, 2000, p. 26; Kastner, op. cit., pp. 23 e 74.

40 Como salienta Hatherly: «Quanto à estética barroca, ela está presente sobretudo na sua faceta de um assumido jogo, de um pacto lúdico que implica necessariamente a consciência da íntima ligação entre escrita e leitura, que subjaz a todo o texto, poético ou não, e que é sempre exploratória. Desde a explosão inventiva do vocabulário até à concisão epigramática mais severa, o espírito exploratório da estética barroca, cheio de enigmáticas obscuridades e brilhos cintilantes, cheio de movimento e audaciosa reflexão, impera em muitos dos meus textos mais radicalmente experimentais» (CI, p. 11).

41 Jorge de Sena convoca obras e intérpretes como: Debussy, Dowland, Bach, Händel, Scarlatti, Haydn, Mozart, Beethoven, Schubert, Berlioz, Chopin, Schumann, Liszt, Wagner, Brückner, Brahms, Smetana, Tchaikovsky, Puccini, Mahler, Strauss, Sibelius, Satie, Bartok, Schoenberg, além de Edith Piaf ou Wanda Landowska.

42 Cf. Einstein, loc. cit., p. 277.

43 As descobertas que permitiram comprovar que o tempo se altera com a gravidade só se realizaram após Einstein. Veja-se por exemplo: Kip Thorne, Trous noirs et distorsions du temps. Traduit de l’anglais par Alain Bouquet et Jean Kaplan, Paris, Flammarion, 1997, pp. 102-103.

44 Cf. Kip Thorne, op. cit., p.103. Um dos exemplos mais comuns da interligação espaciotemporal é o efeito de Doppler que, utilizando o exemplo das ondas sonoras, permitiu a Einstein formular a dilatação gravitacional do tempo.

45 Ana Hatherly, 463 Tisanas, Lisboa, Quimera, 2006, p. 156.

46 Espinosa, Ethique, II, prop. 44, colorário 2, Paris, Gallimard, coll. «Bibliothèque de la Pléiade», p. 638, minha tradução.

47 Metamorfoses in Poesia II, op. cit., pp. 56-149.

FONTE: Ana Paixao.“”A música é só música, eu sei”: tecituras da música e do tempo em Jorge de Sena,
Maria Gabriela Llansol e Ana Hatherly”, in “A Música das Artes”, Lisboa, Sistema Solar, 2024..2023.