Neste artigo, Mario Rodríguez recupera uma carta de Jorge de Sena enviada ao Coronel Francisco Caetano Dias, cunhado de Fernando Pessoa. Na carta, como comenta o autor, encontramos mais detalhes acerca do projeto seniano de editar os Poemas Ingleses de Pessoa, assim como seu desejo de fazer uma edição do Livro do Desassossego.
Mario Rodríguez*
Num artigo sobre Jorge de Sena e Fernando Pessoa, publicado nesta mesma revista, Jorge Fazenda Lourenço lembra as seguintes palavras de Mécia de Sena sobre o seu marido: “Poucas pessoas terão como Jorge de Sena contribuído tanto, por tão largo tempo e desde tão cedo, para o entendimento e divulgação de Fernando Pessoa – os escritos estão aí e as datas deles para o provarem” (2012: 90). Entre os testemunhos que provam a dimensão dessa contribuição, pode incluir‑se a carta que hoje é apresentada.
A carta, de 27 de Dezembro de 1959, foi escrita por Jorge de Sena, no Brasil, e tem como destinatário o Coronel Francisco Caetano Dias, cunhado de Pessoa (marido da sua meia‑irmã, D. Henriqueta Madalena Nogueira Rosa Dias), que custodiava, nessa altura, o espólio do criador dos heterónimos. O propósito principal da carta é solicitar o envio da cópia dos originais dos poemas escritos em inglês por Pessoa para, assim, poder avançar com a edição bilíngue dos mesmos, tal como tinha sido combinado com os responsáveis da editora Ática. Jorge de Sena, junto com Adolfo Casais Monteiro, tinha encetado a tradução desse conjunto de poemas e esperava concluí‑la no início da década de 1960, aproveitando as condições favoráveis que lhe oferecia o seu novo trabalho: professor universitário em São Paulo. Hoje sabemos que a tradução chegou a ser concluída, mas muito depois do que fora projectado. A edição dos Poemas ingleses, que tem como prefácio o longo ensaio de Sena “O heterónimo Fernando Pessoa e os poemas ingleses que publicou”, só veio à luz em 1974, vários anos depois de o poeta e crítico português ter deixado o Brasil e se estabelecer na Califórnia.
Na carta, além de se referir ao projecto dos “Poemas ingleses”, Sena refere estar interessado em começar a preparar a edição da prosa publicada em vida por Fernando Pessoa, atendendo às exigências da opinião e da crítica “em Portugal e no Brasil”. O interesse pela prosa pessoana – lê‑se na carta – tinha crescido a par da divulgação dos textos do autor, nomeadamente depois do aparecimento de Páginas de Doutrina Estética (1946). Este volume, organizado por Sena, foi “a primeira reunião de textos críticos e ensaísticos de Pessoa” (Lourenço, 2012: 92). Na sua carta ao Coronel Caetano Dias, Sena exprime o seu desejo de que a Ática, como editora oficial da obra de Pessoa, não só reedite o volume Páginas de Doutrina Estética e divulgue alguns textos em prosa inéditos do poeta, mas determine, ainda, a organização de volumes em que se possam incluir aqueles textos que na década de 1950 circulam em edições não oficiais e menos rigorosas, tais como as de Petrus, pseudónimo por que era conhecido Pedro Veiga, o apaixonado editor e crítico pessoano do Porto.
Como projecto independente do anterior, Sena menciona também o interesse que teria em organizar a primeira edição do Livro do Desassossego. Como hoje se sabe, Sena chegou, de facto, a formalizar um acordo inicial com a Ática para a realização deste projecto. Contudo, o tamanho da empresa era muito grande; maior do que Sena imaginara por volta de 1960, como é possível perceber por uma observação da carta: “só escassos fragmentos [do livro] não são inéditos”. Sena não estava em Lisboa – nem podia estar em tempos de Salazar – e era difícil editar mais de quatrocentos ou quinhentos fragmentos à distância e sem um acesso directo ao material autógrafo. De facto, Pessoa tinha dado a conhecer menos de dez trechos em vida… Infelizmente, os inúmeros desafios que a edição do Livro colocava, levaram Sena a abandonar definitivamente o empreendimento em 1969 (sobre a história da publicação do livro, ver: «Para a história do estudo de Jorge de Sena sobre o Livro do Desassossego e para a história da publicação do Livro do Desassossego», de Arnaldo Saraiva, 1979).
Como se indicou acima, Sena escreve a carta de 27.12.1959 no Brasil, país a que tinha chegado poucos meses antes, depois de aceitar o convite para assumir uma cátedra de Teoria da Literatura, em Assis. No Brasil começou o seu errar “de terra em terra”, à espera de que em Portugal soprassem “melhores ares”, para retomar as palavras com que na carta alude ao ansiado fim do regime de António de Oliveira Salazar. Mal podia Sena prever, em 1959, que o fim da ditadura só chegaria muitos anos depois, em 1974, e que mesmo após esse desfeito, ele, Sena, não voltaria a residir em Portugal. A morte veio encontrá‑lo em Santa Bárbara, em 1978.
Parte do valor da carta ora apresentada encontra‑se no facto de ser uma espécie de instantânea de um momento importante na vida seniana e na história das publicações da obra pessoana. Instantânea cujo contexto podemos reconstruir imaginariamente, com o auxílio dos dados e dos estudos que temos sobre estes dois grandes e multifacetados escritores portugueses.
Meu muito prezado Amigo[1]
A minha partida para o Brasil, em princípios de Agosto, quando o meu querido amigo não se encontrava já em Lisboa, não me permitiu despedir‑me como devia. De resto, ao vir participar, a convite do Governo Brasileiro, no Colóquio Internacional da Bahia, eu mal podia prever que iria de terra em terra, depois, fazendo conferências (fiz uma lição sobre Fernando Pessoa na Faculdade Nacional de Filosofia, no Rio de Janeiro, como sobre ele era a tese que ao Colóquio apresentei[2]), e que, hesitando entre vários convites, aceitaria uma cátedra confortável de “Teoria da Literatura” aqui, em S. Paulo. Minha família – com os meninos todos – veio ter comigo em meados de Outubro, e aqui estamos para uns anos, a menos que em Portugal me queiram para Presidente da República…
Tenho aqui excepcionais condições de trabalho que em Lisboa eram impossíveis, e pude enfim saltar para o exercício integral das letras e para uma cátedra universitária, que eram em verdade os meus sonhos.
Estou activamente preparando, conforme a combinação com a Ática, a edição bilingue dos “Poemas Ingleses” de Fernando Pessoa, que ficará uma edição monumental, com magno prefácio, notas, variantes, etc. O nosso amigo Dr. Casais Monteiro está traduzindo uma parte dos poemas. Como poderia eu, esmagado de trabalhos em Portugal, preparar tais monumentos?
E, a este propósito, eu precisava da colaboração urgente do meu Ex.mo Amigo. Eu tenho comigo – e devo‑os em parte à sua gentileza, quando me ofereceu os folhetos que eu não possuía – todos os poemas ingleses que Fernando Pessoa imprimiu. A edição a esses que ele publicou apenas se refere. Mas eu precisava que V. Ex.ia me mandasse microfilmar e me remetesse os originais dactilografados ou manuscritos (se é que existem, que eu nunca os vi) desses poemas, constantes do espólio: 35 Sonnets, Antinous, English Poems I – II – III. Pelo correio, com a indicação do que se trata e de que vêm para uma Universidade, não há complicações alfandegárias com a remessa. Seria um grande favor, que contribuiria para eu mais melhorar a edição[3].
Conforme conversamos já, é a altura de começarmos a preparar a publicação das prosas, o que a opinião pública e a crítica, em Portugal e no Brasil, já insistentemente reclamam. Como à Ática tive ocasião de expor, quando sobre o assunto fui consultado, eu creio que, agora que tanta mais prosa impressa pelo Pessoa (e que desconhecida era) foi sendo revelada pelos curiosos, não podemos, sem nos sujeitarmos a severas críticas e mesmo a um revés editorial, pura e simplesmente reeditar as Páginas de Doutrina Estética quais eu as organizei com o que há 12 anos descobrira[4]. Estas “Páginas” que tão úteis e meritórias foram (independentemente de mim), para o renome do Poeta, têm de ser transformadas na compilação de todos os artigos que Pessoa em vida publicou e agora se conhecem, e andam dispersos por folhetos ocasionais ou por aquelas maroteiras editoriais do Petrus tripeiro[5]. Isto, dentro das dimensões normais dos volumes das “Obras Completas”, dará uns 3 ou 4 volumes, nos quais os artigos e escritos vários iriam sendo arrumados por ordem cronológica, que é a única que podemos usar sem perigo com um homem que tudo o que escrevia de política, de contabilidade, etc, etc, era “doutrina estética”. Amplamente anotados, os artigos constituiriam assim o “corpus” da prosa publicada. Os perigos inerentes ao artigo da Maçonaria, que é do fim da vida, ficariam assim arredados para um último volume, cuja publicação poderíamos protelar… até melhores ares[6]. E, entretanto, poderíamos começar a organizar a publicação da prosa inédita, que tanta há nas “arcas”, e mesmo publicá-la, pouco a pouco, quando um ou dois volumes da já conhecida estivessem publicados. Deste modo, parece‑me, satisfaríamos gregos e troianos, sem quaisquer riscos.
Todavia, à parte dos Poemas Ingleses desta organização das prosas, há uma prosa que toda a gente reclama e que temos de publicar. É o celebrado Livro do Desassossego, do heterónimo Bernardo Soares, de que só escassos fragmentos não são inéditos.
Para a organização das “prosas publicadas” tenho comigo aqui todo o material necessário e, oportunamente, solicitaria alguma pequena coisa necessária mais. Para o Livro do Desassossego, do qual eu poderia encarregar‑me (bastaria que os fragmentos fossem microfilmados ou fotocopiados (técnica preferível à cópia dactilográfica em matéria de tamanha responsabilidade, pois que até evita o manuseio, por parte de estranhos, de papéis preciosíssimos), seria útil para os cotejos e revisões a colaboração da Dr.a Helena Cidade Moura, filha do Prof. Hernani Cidade, minha Amiga e assistente literária da Ática. Suponho que ela estaria disposta a colaborar connosco[7].
Fico aguardando ansiosamente as suas notícias. As nossas melhores lembranças e votos de Feliz Ano Novo para V. Ex.ia e Todos os Seus, e creia que muito amigo o abraço, sempre a seu dispor.
P.S. – Nunca recebi, e precisava de um volume com a máxima urgência, para falar dele no “Estado de S. Paulo” (o mais categórico jornal do Brasil), a reedição do ORPHEU.
Fig. 1. Carta de Jorge de Sena, página 1.
Fig. 2. Carta de Jorge de Sena, página 2.
Fig. 3. Carta de Jorge de Sena, página 3.
Fig. 4. Carta de Jorge de Sena, página 4.
Fig. 5. Carta de Jorge de Sena, página 5.
Bibliografia
LOURENÇO, Jorge Fazenda (2012). “Lendo Jorge de Sena leitor de Fernando Pessoa”, in Pessoa Plural – A Journal of Fernando Pessoa Studies, n.º 2, pp. 88‑114. https://www.brown.edu/Departments/Portuguese_Brazilian_Studies/ejph/pessoaplural/Issue2/PDF/I2A03.pdf
MORAIS, Ricardo Belo de (2014). “Petrus, o mais excêntrico dos pessoanos”, in Pessoa Plural – A Journal of Fernando Pessoa Studies, n.º 5, pp. 88‑102. https://www.brown.edu/Departments/Portuguese_Brazilian_Studies/ejph/pessoaplural/Issue5/PDF/I5A05.pdf
PESSOA, Fernando. Associações Secretas e Outros Escritos. Edição de José Barreto. Lisboa: Ática. Nova Série das Obras de Fernando Pessoa; coordenação de Jerónimo Pizarro.
SARAIVA, Arnaldo (1979). “Para a história do estudo de Jorge de Sena sobre o Livro do Desassossego e para a história da publicação do Livro do Desassossego”, in Persona, n.º 3, Porto, Centro de Estudos Pessoanos, Julho, pp.41‑45.
SENA, Jorge de (1966). “21 dos 35 Sonnets de Fernando Pessoa”, in Alfa, n.º 10, Marília, Setembro, pp. 7‑24.
NOTAS:
* Universidade Federal de Integração Latino‑Americana.
1 Como se indicou na nota de apresentação, o destinatário da carta é o Coronel Francisco Caetano Dias.
2 O texto apresentado por Jorge de Sena no Colóquio da Bahia, em 1959, foi “O poeta é um fingidor’ (Nietzsche, Pessoa e outras coisas mais)”.
3 A edição foi publicada em 1974. Anteriormente, em 1966, numa revista publicada no Estado de São Paulo, pelo Departamento de Letras da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Marília, Sena tinha publicado um esboço deste trabalho, com o título “21 dos 35 Sonnets de Fernando Pessoa”. Na nota de apresentação desse escrito, o autor explica: “Em 1958, traduzi e publiquei, na página literária de O Comércio do Porto, de 9 de Setembro, ‘Inscriptions, catorze pequenos poemas’. E, quando me fixei no Brasil, em 1959, trazia comigo a obrigação contratual de fazer a edição bilingue, para as Obras Completas da Ática editora (o editor oficial de Pessoa), dos poemas ingleses não inéditos. Traduzi e entreguei à editora Antinous, e alguns poemas dispersos em revistas ou estudos sobre Pessoa. E convoquei Casais Monteiro a retomarmos a tarefa de traduzir os sonetos. Faltava traduzir vinte, porque eu trazia a tradução do I, que José Blanc de Portugal fizera. Dos catorze publicados com tradução, esta havia sido feita, para 8 (II, III, V, XI, XIII, XVII, XXVIII, XXIX) por Casais Monteiro, para 4 (X, XIV, XV, XXVII) por mim, e de 2 (XXI e XXV) a tradução era de ambos. Dos restantes vinte, traduzimos conjuntamente 4 (XVI, XXIV, XXVI, XXX), tendo eu traduzido os outros 16” (Sena, 1966: 8).
4 Segundo Jorge Fazenda Lourenço, Sena trabalhou na organização de Páginas de Doutrina Estética entre 1944 a 1946. O volume foi impresso a 27 de Dezembro de 1946, mas só apareceu em livrarias no início de 1947 (ver Lourenço, 2012: 93).
5 Em relação a Pedro Veiga (Petrus) e ao seu amplo e polémico trabalho de divulgação das obras de Pessoa durante a década de 1950 e 1960 no Porto, ver Morais (2014).
6 Sena alude ao momento em que chegasse ao fim o regime ditatorial de Antonio de Oliveira Salazar, regime que o levou a deixar Portugal. O artigo de Pessoa sobre a Maçonaria, a que se refere pouco antes, é “Associações Secretas”, aparecido no Diário de Lisboa de 4 de Fevereiro de 1935. Nele Pessoa faz uma defesa pública da Maçonaria, que passaria a ser banida por um projecto de lei que estava em discussão. Esse artigo, que marca a ruptura definitiva de Pessoa com o regime de Salazar, será proibido de ser republicado pela censura, o que impediu qualquer tipo de réplica de Pessoa aos ataques que lhe foram dirigidos. Para mais informação sobre o assunto, ver o posfácio de José Barreto ao volume Associações Secretas e Outros Escritos (2011).
7 Helena Cidade Moura (1924‑2012), hoje lembrada principalmente por seu trabalho de alfabetização em Portugal após 1974, desenvolveu um importante trabalho de edição e crítica de literatura portuguesa, nomeadamente de Eça de Queiroz. Seu pai, Hernani Cidade, foi um renomado filólogo. Maria Aliete Galhoz foi quem finalmente ficou encarregada de transcrever os manuscritos do espólio pessoano com que Sena trabalhou na sua projectada e não concluída edição do Livro do Desassossego.
FONTE: RODRÍGUEZ, Mario. “Jorge de Sena, editor dos Poemas Ingleses: Uma carta desconhecida”. In Pessoa Plural – A Journal of Fernando Pessoa Studies. n.6. out. 2014. p.216-227.