Experiência e Testemunho nas Cercanias do Fim em Jorge de Sena e Edgar Allan Poe

Neste artigo, Lígia Bernardino propõe um diálogo entre as obras de Jorge de Sena e Edgar Allan Poe, tomando como ponto de partida a relação dos poetas com a morte. Analisando o poema seniano “A morte, o espaço, a eternidade” e o conto poeano “A descent into the maelström”, a autora mostra as diferentes abordagens literárias em torno desse momento extremo, seja pela negação da morte natural, em Sena, seja pela percepção de que encarar a morte e sobreviver é um ato heroico, em Poe. Em ambos os casos, ressalta-se a reflexão sobre a especificidade humana em meio à natureza.

Lígia Bernardino
Universidade do Porto

Precária a vida e consentida a morte.
Quanto eu julguei saber como assim eram!
Mas não sabia.

Jorge de Sena

There is no passion in nature so demoniacally impatient,
as that of him who, shuddering upon the edge of a precipice,
thus meditates a plunge.

Edgar Allan Poe

1 – Da morte emergir, à morte descer

O lançamento para a órbita terrestre do satélite Sputnik, em 1957, e a morte da mãe de José Blanc de Portugal levaram Jorge de Sena a escrever, em 1961, o poema “A morte, o espaço e a eternidade”, publicado no livro Metamorfoses, em 1963. No segundo verso, lê-se: “Não foi para morrer que nós nascemos” (1963: 355). A inventiva é de denegação: ao longo do poema, Sena afirma a vitalidade humana através da paradoxal e indignada certeza de que o fim é ainda inescapável, residindo o desafio precisamente na projeção de alternativas à natureza proporcionadas pelo espírito humano.

No conto “A descent into the maelström”, de Edgar Allan Poe, escrito em 1841, a fragilidade do homem opõe-se a forças extra-humanas, do que resulta, como último ato glorioso, esperar por uma morte de assombro e contemplação. São três os irmãos pescadores; só o do meio sobrevive, após duro confronto com a morte. Apesar disso, exclama o sobrevivente: “how magnificent a thing it was to die in such a manner” (1841a: 113).

As obras destes dois escritores pautam-se por um questionamento do desconhecido a conquistar pelo homem. Os dois textos aqui abordados situam-se entre a profecia seniana e a rememoração de Poe, desenvolvendo um discurso escatológico que incita a uma reflexão acerca do fim do homem, numa tensão irreprimível entre a morte e a superação de limites. Sena visa o infinito e a eternidade; Poe almeja a sensação absoluta, que só o momento da morte proporcionará. Os dois antecipam um futuro inescapável mas indeterminado, fazendo-o através de discursos fervorosos, condizentes com o apelo do desconhecido, e disponibilizando-se a uma nietzschiana inversão de todos os valores.

Segundo Frank Kermode, “projectamo-nos – uns poucos e humildes eleitos, talvez – além do Fim, no intuito de ver toda a estrutura, coisa que não podemos fazer do nosso ponto médio do tempo” (1967: 25). Por outro lado, “quando sobrevivemos, conjuramos pequenas imagens de momentos que pareceram fins” (ibidem). Os posicionamentos de Sena, no poema “A morte, o espaço e a eternidade”, e de Poe, no conto “A descent into the maelström”, ilustram vivências circunstanciais intensas, mas que, atidas a um tempo, têm consequências nos posicionamentos futuros: a análise do ocorrido permite reflexões acerca da estrutura que determina a existência do homem.

Percebem-se, nestas obras, dois movimentos opostos. Sena proclama que “para emergir nascemos” (1963: 357), numa rejeição da morte que o leva a um desejo de ascensão; Poe destaca a descida no maelström como percurso para uma morte quase certa. Nos dois, porém, a mesma sensação de que existe um momento climático da existência, tornado foco obsessivo das suas obras. Assim, juntar dois autores tão diversos resulta de uma constatação: a morte constitui-se num topos estruturante, seja porque é inevitável, seja pela curiosidade que desperta. Nos dois autores, a experiência humana articula-se com uma vontade de prestar testemunho, coletivizando o vivido.

Segundo Luís Adriano Carlos, destaca-se em Sena uma “vivência intelectual”, convertida em “fluxo vivido na consciência poética” (1999: 75). Fenomenologicamente, o poeta experiencia uma circunstância concreta e, ao convertê-la num poema, a perceção individual transmuta-se num testemunho que remete para a universalidade da experiência humana. Decorrente desta perspetiva, Sena rejeita a teoria do fingimento pessoana, por parecer-lhe artificial “assumir extrinsecamente, exteriormente, a multiplicidade vária que, dentro de nós, é uma família incómoda, uma sociedade inquieta, um mundo angustiado” (1960: 725). No mesmo texto, o “Prefácio da primeira edição de Poesia I”, Jorge de Sena esclarece:

como um processo testemunhal sempre entendi a poesia, cuja melhor arte consistirá em dar expressão ao que o mundo (o dentro e o fora) nos vai revelando, não apenas de outros mundos simultânea e idealmente possíveis, mas, principalmente, de outros que a nossa vontade de dignidade humana deseja convocar a que o seja de facto. (idem: 726)

Nesta perspetiva, Sena afirma a poesia como advinda de uma experiência humana –individual ou coletiva – que a poesia converte em testemunho. O “drama em gente” (Pessoa 1928: 250) é assim superado pela perceção de que as vivências pessoais se podem transfigurar numa poesia reveladora do mundo que o homem vai construindo. Por isso Sena distingue entre confessionalismo e testemunho, na medida em que entende o processo poético não como expressão de sentimentos de um sujeito de enunciação, que serão sempre “intransmissíveis” (725), mas como “actividade revolucionária” (726) para mudar o mundo. Em palavras de Jorge Fazenda Lourenço, para Sena, “a poesia surge como a demanda de uma subjectividade transindividual, na medida em que ela se institui como uma acção transfiguradora de um sujeito de mundo na sua criação de linguagem” (1998: 120).

Assim, a escrita de “A morte, o espaço, a eternidade”, sendo suscitada pela circunstância de uma morte concreta, referenciável, liberta-se desse acontecimento para assumir-se como ode às capacidades humanas na luta contra a própria morte: o processo é testemunhal, não confessional. Desde logo, o primeiro verso, “De morte natural nunca ninguém morreu” (Sena 1963: 426), amplifica a circunstancialidade que origina o poema, explícita na dedicatória a José Blanc de Portugal. Segundo Luís Adriano Carlos, “o incipit traduz uma visão da morte como fenómeno acidental e não providencial” (2002: 426), numa evidência da “atmosfera meditativa e [da] visão espacial do poeta, homem de formação científica e tecnológica” (ibidem). Porém, a invetiva para a recusa de uma morte natural e a consideração de que a desistência da vida é uma traição revelam também a preponderância que a consciência do fim assume na obra seniana, designadamente em Metamorfoses. Tal como o pescador de Poe retorna ao local onde quase morreu – e através dele à memória desse momento preciso – também Sena convoca a morte como momento culminante para a superação humana.

2 – A pulsão da morte

Se o poema de Sena denega a morte do homem, o conto de Poe encara-a enquanto desafio a perder ou a vencer, consoante o maior ou menor domínio de um pensamento lógico-dedutivo. A experiência humana – vista como uma totalidade desde os confins do tempo, em Sena, e como registo individual de sobrevivência, em Poe – atesta a singularidade da morte humana. Escreve o poeta português em “A morte, o espaço e a eternidade”:

Não foi para morrermos que falámos,
que descobrimos a ternura e o fogo,
e a pintura, a escrita, a doce música.
Não foi para morrer que nós sonhámos
ser imortais, ter alma, reviver,
ou que sonhámos deuses que por nós
fossem mais imortais que sonharíamos.
Não foi. (Sena 1963: 355)

Ao ser um criador de mundos, ao criar Deus, o homem não pode aceitar pacificamente a ideia da morte, donde a revolta pela sua ocorrência, donde a sucessão de negações, reveladoras porém da angústia do fim. A referência nestes versos a diversas expressões artísticas coaduna-se com a ideia de excecionalidade que Sena atribui aos homens, prova evidente de um potencial criativo capaz de gerar deuses. O plural patente em “nós” ilustra a amplificação de sentido deste poema: trata-se aqui de um destino coletivo da humanidade, ambicioso ao ponto de, como defende Francisco Sousa, almejar a uma cosmologia em que “o próprio homem […] toma o lugar de Deus” (1992: 140).

O pescador do conto de Poe não apresenta tal revolta contra a morte ou contra os deuses. Essa atitude está ausente nas diversas experiências de morte descritas na obra deste escritor. Segundo David Leverenz, “what lingers in the reader’s mind are the sensations erupting at moments of intensely embodied helplessness” (2001: 111), num exercício de reter e usufruir de cada detalhe que precede a morte:

I had instinctively tightened my hold upon the barrel and closed my eyes. For some seconds I dared not open them – while I expected instant destruction, and wondered that I was not already in my death-struggles with the water. But moment after moment elapsed. I still lived. […]
Never shall I forget the sensations of awe, horror, and admiration with which I gazed upon me. (Poe 1841a: 114)

Inconformismo inabalável e submissão expectante são assim duas perspetivas que respetivamente Sena e Poe adotam ao prefigurarem a morte. Sena repete, em “A morte, o espaço, a eternidade”, que “para emergir nascemos” (1963: 357); Poe vangloria a capacidade de sobrevivência do pescador no seu confronto com o maelström, experiência única, “such as never happened before to a mortal man” (Poe 1841a: 106). Também esta é uma forma de emergir.

O tom profético de Sena e o apologético de Poe revelam duas maneiras distintas de tributo às capacidades humanas, porque, levadas ao extremo, tentam a sobrevivência impossível. No primeiro, a rejeição da morte resulta de um sentimento de injustiça. Por isso, clama: “É cobardia / que alguém a aceite resignadamente” (Sena 1963: 359). Não se trata apenas de um ajuizamento, mas de um desejo: o da ilimitação da vida humana.

Enunciam-se, pois, duas pulsões divergentes de morte. Segundo Freud, os instintos de autoconservação incitam à sustentação do princípio da realidade, que impede o prazer. Contudo, a mesma força instintiva quer retomar a inércia da matéria orgânica, ou seja, “o organismo quer morrer, mas à sua própria maneira” (Freud 1920: 37). Deste modo, numa perspetiva freudiana, a sobrevivência do pescador de Poe revela os seus instintos de autoconservação, que levam esta personagem a manter a lucidez, apesar da situação desesperada. A recorrência desses momentos através da função de guia adotada após a salvação manifesta o regresso do recalcado. A experiência converte-se em síndrome traumático, sendo os seus cabelos brancos (assim ficam após seis horas de luta no maelström) a prova física desse trauma.

A pulsão da morte presente em “A morte, o espaço, a eternidade” é tão clara quanto negada. Clara para a natureza, prova viva da reconversão da matéria, dado “esse morrer constante / de vidas que outras vidas alimentam / para que novas vidas surjam que / como primárias células se absorvam” (Sena 1963: 358). A vida orgânica das células indistingue formas, manifestação de pulsares instintivos, que, como defende Freud, correspondem à “expressão da inércia na vida orgânica” (1920: 35). Mas Sena considera que o homem excede a matéria, pois ele deve assumir-se como “o espírito / sempre mais vasto do Universo infindo” (Sena 1963: 359). Por isso nega a morte, assumindo o princípio do prazer. Afinal, a vida humana é também “gozo e é dor e pele que palpita / ligeiramente fria sob ardentes dedos” (idem: 358). Assim se manifesta a fruição e a consciência dessa fruição, motivos pelos quais se intensifica a revolta perante a evidência da morte.

Luís Adriano Carlos afirma que “Sena vive intensamente a pulsão da morte implicada no fluxo temático da dualidade logos-eros. É seu propósito obsessivo contemplar as revelações da morte” (1999: 172). Estas frases adequar-se-iam a Poe. A proximidade do fim fascina, arrepia a pele, incita a uma clarividência que tanto aceita a sobrevivência quanto a derrota. Em “A descent into the maelström”, o pescador-guia salva-se. Em “The conversation of Eiros and Charmion”, escrito em 1839, um cometa colide com a terra, destruindo-a. Neste conto, após a morte, no Paraíso, Eiros relata a Charmion rigorosa e detalhadamente a hecatombe. Esta última personagem comenta: “I rejoice to see you looking life-like and rational” (1839: 236). Para Poe, sede de conhecimento e exercício da racionalidade abalam o conceito de morte enquanto fim indesejável.

3 – Raciocinar o fim

Nas duas obras abordadas, Jorge de Sena e Edgar Allan Poe propõem-se a uma análise lúcida e veemente do fim. O discurso inflamado de Sena e o hiperbólico de Poe são apenas formas diversas de perspetivar o mundo. As invetivas senianas tendem a uma reflexão filosófica da condição humana, buscando um sentido maior da existência. Revela-o ao afirmar que “não foi só para a morte” (1963: 355) que o homem nasceu: o advérbio “só” expõe o desejo de mais que assola o homem por si idealizado. Poe, por seu turno, opta pela tentativa de explicar o incognoscível através da ciência. Por isso o ensaísta Paul Elmer More destaca no escritor americano “his reasoning powers and his delight in the exercise of logical argument” (1991: 51).

Dos três irmãos pescadores apanhados pelo maelström, o mais novo – deduz-se que mais inexperiente – é o primeiro a morrer, agarrado ao mastro. O mais velho luta pela vida aplicando toda a técnica que a experiência de pescador lhe ensinou, mas nem isso o salva. O irmão do meio sobrevive não por mera sorte, nem por cálculo técnico, nem mesmo pela experiência, mas pelo acerto das cogitações científicas.

Se, como defende Bernard Stiegler, o homem é um ser técnico, se todos os atos humanos têm a ver com a técnica, os três pescadores são seres técnicos, protoengenheiros capazes de ir mais longe do que todos os outros pescadores. Por isso, cada expedição de pesca no cenário terrível do mar nórdico é meticulosamente programada: “we never set out upon this expedition without a steady side wind for going and coming – one that we felt sure would not fail us before our return – and we seldom made a miscalculation upon this point” (Poe 1841a: 110). No entanto, o calculismo não é o fator determinante para escapar à morte, e prova disso é a morte dos dois irmãos.

Ainda segundo Stiegler, “l’homme […] réalise ce qu’il imagine parce qu’il est doué de raison” (1994: 201). Ora, foi essa faculdade que tornou o pescador num sobrevivente ao desastre. O irmão mais velho soçobra, talvez pela “agony of his terror” (Poe 1841a: 114). Neste, o desespero não se traduz em lucidez, mas em loucura, ao ponto de disputar ao irmão a argola a que este se segura enquanto o barco roda velozmente no maelström: “I knew he was a madman when he did it – a raving maniac through sheer fright” (ibidem). Mesmo colocado em risco de vida pelo irmão, o pescador-guia indica-lhe o modo certo de salvar-se. Ao abdicar da ajuda, o pescador mais velho desiste, corporizando “o homem natural que aceita a morte” (Sena 1963: 360).

Talvez este conto de Poe seja uma “alegoria da contemporaneidade” (2006: 20), como defende José A. Bragança de Miranda. Afinal, a escuna afunda-se rotativamente no vórtice como se sugada por um motor, imagem profética da imersão do homem nos domínios da técnica. Poe estava bem ciente dos perigos de uma sociedade industrializada. No mesmo ano em que edita este conto, escreve também “The colloquy of Monos and Una”, que celebra o reencontro de um casal após a morte. Monos, o marido, responsabiliza a poluição pela sua doença e morte: “huge smoking cities arose, innumerable. Green leaves shrank before the hot breath of furnaces. The fair face of Nature was deformed as with the ravages of some loathsome disease” (Poe 1841b: 574). Não se passa o mesmo em “A descent into the maelström”, conto que reflete um poder da natureza próximo do sublime, mas também perverso ao ponto da destruição, simbolicamente anunciado pelo tenebroso grito do irmão mais velho face à visível aproximação do maelström.

Na parte V do poema “For whom the bell tolls, com incidências do ‘cogito’ cartesiano”, de 1965, e publicado em Peregrinatio ad Loca Infecta, em 1969, glosando Descartes, Sena escreve “eu penso: logo sou. Mas sou quem pensa” (513). O pensamento, o raciocínio, surgem convertidos em fundamento que extrai o homem das leis naturais, e isso determinará um posicionamento de revolta quando estas o desafiam. Na parte I do mesmo poema, lê-se:

Nós que não somos naturais, porque
somos quem nega a natureza, não
morremos nunca de animais a morte.
Essa morte primeva, com que acabam
os que jamais souberam que viviam. (1969: 510)

Por isso, a aceitação pacífica da morte é para este poeta motivo de indignação, o que o leva a uma radicalização do discurso ao ponto de afirmar a humanidade como “esse negar do que / nos liga ainda ao Sol, à terra às águas” (1963: 357). E isso é possível dado o progresso científico, como enuncia o poeta ao comentar que “agora / de tanto que matava se não morre” (358), numa sugestão de que a ciência dá ao homem a possibilidade de extrair-se da natureza. Assim se compreende que, em “A morte, o espaço, a eternidade”, o poeta afirme sermos “esse negar da espécie” (357): seria incongruente considerar os seres humanos enquanto espécie, pois isso implicaria ainda a sua pertença à natureza. A luta pela vida – e essa é, para Sena, uma conquista humana – passa determinantemente pela renúncia ao não-humano.

Nestes autores, cabe sobretudo à ciência comprovar a excecionalidade dos seres humanos. No conto “A descent into the maelström”, os três irmãos conhecem os perigos da faina piscatória a que se dedicam, confiam na técnica, mas esta atraiçoa-os: ao parar, o relógio do pescador-guia induz os pescadores a permaneceram na zona proibida mais tempo do que deviam. Ora, a suspensão de tempo significa a possibilidade do fim, e um detalhe técnico leva ao desastre. Isso desperta no irmão mais velho o instinto de morte. Já o relato diferido do narrador-pescador converte o desastre em momento supremo, experiência única que ele se apresta a testemunhar através da função de guia após o desastre. Deste modo, a sua experiência expande-se para exemplo da experiência humana. O narrador homodiegético, incumbido de relatar a aventura do pescador, atesta essa expansão do individual para uma vivência coletiva, num processo próximo da poética de testemunho advogada por Sena.

O relato vivencial de Poe difere da indigência da experiência descrita por Walter Benjamin. Este filósofo refere-se a um drama coletivo, resultante da devastação vivida na primeira guerra mundial. Então, os militares voltavam mudos, “mais pobres de experiências partilháveis” (1933: 73), dado não serem detentores do conhecimento suficiente para perceberem os acontecimentos. São ultrapassados por tempos e técnicas complexos. Ao experienciar e testemunhar uma catástrofe que resulta de um atrevimento consciente, o pescador de Poe avisa os potenciais seguidores dos perigos, mas também lhes dá um ensinamento empírico-científico. A vontade é de partilhar o vivido.

Em “A morte, o espaço, a eternidade”, Jorge de Sena defende que a aceitação do “inominável fim da nossa carne” (1963: 357) representa uma traição a “esta ascensão, esta vitória, isto / que é ser-se humano, passo a passo, mais” (ibidem). Este “mais” sugere as incessantes descobertas efetuadas pelo homem, que tornam o universo menos mortífero, porque mais dominado pela inteligência, numa sugestão do controlo humano dos próprios elementos. Num artigo publicado em 1946, Sena destaca que “o espírito humano nunca recuou cobardemente perante as certezas negativas” (1946: 158). Portanto, a traição em “The descent into the maelström” está no irmão mais velho por ceder ao instinto de morte. O irmão do meio, assumindo lucidamente a luta pela vida, representa a vitória do raciocínio lógico-dedutivo, aliado a uma imaginação criativa. Assim concretiza o desígnio de Sena, quando este afirma que “nós somos o que nega a natureza” (1963: 357), ideia tão persistente quanto retomada no poema supra mencionado de Peregrinatio ad Loca Infecta. A interpelação é a de que o homem assuma o seu destino, para além da natureza e de Deus.

4 – Deus, natureza, homem

Mas a morte é iniludível, e Deus e natureza persistem como pedras angulares do mapeamento humano, tanto no poema de Sena, como no conto de Poe. Se o segundo adota uma atitude de cumplicidade e autopreservação, já no primeiro se nota um incitamento à luta contra a indignidade que a morte representa. Em “A morte, o espaço, a eternidade”, longe de ser um momento glorioso, a morte converte-se em forma de humilhação do homem. Por outro lado, Deus surge apenas enquanto criador distanciado, dependente dos feitos humanos para se engrandecer. Por isso, “de nós se acresce ele mesmo que será / o espírito que formos, o saber e a força” (359). A data do poema é elucidativa: o primeiro de abril de um sábado de aleluia, como o autor faz questão de enunciar, levando Luís Adriano Carlos a assinalar a “ironia sub-reptícia do dia de enganos […], duplicidade que de certa forma estabelece nexos de coerência com o desenvolvimento imanentista da reflexão moral e escatológica” (2002: 424). E esse tipo de reflexões pode derivar num certo tom acusatório, como o do poema em análise: a omnipotência de Deus converte-se em impotência e obriga os seres humanos a lutarem pela conquista do universo.

Em “A morte, o espaço, a eternidade”, como em “A descent into the maelström”, não se verifica uma negação do divino, prevalecendo a sensação de que algo extraterreno observa as ações humanas. Perante o vórtice, o pescador de Poe sente-se fascinado “in view of so wonderful a manifestation of God’s power” (Poe 1841a: 113). E ainda que core de vergonha perante esta ideia, deixa tentar-se pelo enigma do maelström: “I positively felt a wish to explore its depths, even at the sacrifice I was going to make” (ibidem). Essa visão pessoal admite o divino, ou a imanência da natureza, parecendo contradizer Gerald J. Kennedy, ao afirmar que, na obra de Poe, se percebe “a naturalistic world stripped of belief in a spiritual afterlife” (2001: 11).

Deus e natureza parecem um único na perspetiva do pescador, como se a magnificência da segunda fosse o reflexo do primeiro. Talvez por isso o céu se abra e resplandeça a lua. De resto, este astro acompanha a luta dos irmãos contra o maelström, numa sugestão de vigilância divina. No meio da escuridão, um jato repentino de luz irrompe entre as nuvens: “the full moon with a lustre that I never before knew her to wear” (Poe 1841a: 112); mais tarde, em plena luta, “the rays of the moon seemed to search the very bottom of the profound gulf” (115); no final, quando a velocidade do turbilhão diminui, “the sky was clear, the winds had gone down, and the full moon was setting radiantly in the west” (117), como que atestando a vitória do pescador.

Este relato triunfal demonstra as aptidões que permitem ao homem emergir face às mais nefastas adversidades. Sena aponta a mesma capacidade, recorrendo à própria história da evolução. Em “A morte, o espaço, a eternidade”, lembra que “anfíbios viemos a uma praia / e quadrumanos nos erguemos” (1963: 355). Ora, o posicionamento vertical implica a adoção de uma nova perspetiva, diferente das restantes espécies, inconformada perante a morte. A verticalidade, para Sena, extrai o homem da condição natural, longe da “pel’ do onagro, que se encolhe, / retráctil e submissa, conformada” (359). Deste modo, emergir imputa ao ser humano a responsabilidade de superar o instinto de morte natural.

Desprezando a luta solitária do homem, este poema remete para um universalismo humano. No prefácio à primeira edição de Poesia I, Sena considera que a poética do testemunho corresponde a um “itinerário espiritual alegórico” (1960: 727), numa observação “de mim mesmo e do mundo” (ibidem). Ao afirmar que “O Sol, a Via Láctea, as Nebulosas, / teremos e veremos” (1963: 137), em causa está o percurso da humanidade, portanto, o homem tomado coletivamente, para além da natureza terrena e da vontade divina. Este poeta disconcordaria de Giorgio Agamben, quando este afirma que “what is most intimate and nourishing does not take the form of science and dogma but of grace and testimony. The art of living is, in this sense, the capacity to keep ourselves in harmonious relationship with that which escape us” (2011: 114). Sena não se compatibiliza com qualquer tipo de cedência ao desconhecido: o “destino claramente visto” (1963: 360) impelirá sempre o homem para “outros mundos [onde] / há-de encontrar em que se continue” (ibidem). Defrontando-se com o incomensurável, o homem está ainda nos primórdios:

E desde sempre se morreu. Que prova?
Morrem os astros porque acabam. Morre
tudo o que acaba, diz-se. Mas que prova?
Só prova que se morre de universo pouco,
do pouco de universo conquistado. (Sena 1963: 358)

A conquista apontada é necessariamente humana; as interrogações desafiadoras servem como ponto de partida para a superação da morte, ao alcance caso o homem prossiga o seu percurso de descoberta. Por mais que os astros morram, o universo é ainda demasiado vasto para que o fim seja a única alternativa. Por isso a voz poética exclama: “Não há limites para a Vida” (ibidem), sugerindo a letra maiúscula uma universalidade superadora da vida formada “lá onde um dia alguns cristais comeram” (ibidem).

O percurso do pescador de Poe no confronto com o maelström começa pela aceitação consciente do sacrifício. Ele sente-se – física e psicologicamente – perante o incognoscível. Não manifestando idêntico regozijo por uma façanha humana, Sena censura a impotência de Deus, que torce “as mãos de desespero e angústia, / porque não pode fazer nada” (Sena 1963: 359). Só o homem pode mandar no destino que é seu, incluindo travar o fim do mundo. Segundo Frank Kermode, “a grande maioria das interpretações do Apocalipse presume que o fim está bastante perto. Consequentemente, a alegoria histórica tem de ser constantemente revista; o tempo desacredita-a. […] O Apocalipse pode ser desconfirmado sem ser desacreditado” (1967: 26). Neste poema, Sena radicaliza tal desconfirmação, ao afirmar que, no dia do Juízo, “não haverá quem sopre as trombetas” (360), convertendo a ressurreição na “morte desse Deus que nos espera / para espírito seu e carne do Universo”. Os anjos do Apocalipse bíblico são assim superados pelo homem.

5 – O fascínio e o terror

Em “A morte, o espaço, a eternidade” a morte é tanto o inimigo a vencer, quanto o vencedor denegado que domina ainda o homem. O mesmo acontece com o pescador sobrevivente de “A descent into the maelström”: desafia a morte por se atrever a pescar num local perigosíssimo; sobrevive à morte num combate épico de onde sai vitorioso devido ao seu espírito científico; sucumbe à vida pela imersão repetida no passado traumático de um momento que só não foi supremo por ter sobrevivido. No poema de Sena, como no conto de Poe, a morte assume-se como protagonista, ainda que negada pela evidência testemunhal de discursos intensos.

A dificuldade de apresentar as experiências vividas ou sentidas impele estes autores para uma estética do sublime que, segundo Jean-François Lyotard, se manifesta como “a aposta das artes durante os séculos XIX e XX [de modo a] testemunhar do indeterminado existente” (1988: 106). Nesta perspetiva, o discurso tende para o futuro, para a interrogação do que ocorrerá, não para o ocorrido, conforme enunciado por Lyotard. E, na desmesura da expectativa, advêm tanto o terror quanto o prazer. O pescador de Poe, ao perder a esperança, goza a iminência do fim. Tal acontece, por exemplo, enquanto observa os objetos a afundarem-se no turbilhão: “I must have been delirious – for I even sought amusement in speculating upon the relative velocities of their several descents towards the foam below” (Poe 1841a: 115). A espuma que se percebe no fundo do turbilhão será o impensado que o pescador, porque sobrevive, não poderá testemunhar.

Na presença do narrador homodiegético, afirma o pescador, numa atitude de autocertificação, “as you see, I did escape” (Poe 1841a: 117). Já a voz poética de Sena exclama:

Para emergir nascemos. O pavor nos traça,
este destino claramente visto:
podem os mundos acabar, que a Vida,
voando nos espaços, outros mundos,
há-de encontrar em que se continue. (1963: 360)

O tom profético anuncia um triunfo humano, mas também revela um presente disfórico, porque ainda dominado pela morte, porque ainda revelador de uma espécie no meio das outras, sujeita às forças e leis da natureza. Este posicionamento in media res, conforme teorizado por Kermode, ao explicar como os textos escatológicos provêm sempre de um passado antes de se projetarem no futuro (1967: 25), confirma também a opinião de Georges Minois, segundo a qual “a predição nunca se revela neutra ou passiva [pois] corresponde sempre a uma intenção, a um desejo ou a uma crença” (2000: 12).

Em “A morte, o espaço, a eternidade”, e perante o terror, ou o “pavor que nos traça”, o ser humano idealizado profetiza a superação de condicionalismos presentes. Segundo Nietzsche, o homem vulgar vive sem finalidade, num sentir individual distante da consciência coletiva. Como afirma em Humano, Demasiado Humano, e por oposição, o poeta disponibiliza-se a outra abrangência: “sentir-se enquanto humanidade (e não só enquanto indivíduo), tão desperdiçado como nós vemos desperdiçada pela Natureza a flor isolada, isso é um sentimento acima de todos os sentimentos” (Nietzsche 1878: 55). É neste sentido que Sena interpreta as suas próprias reflexões: enquanto possibilidade de ampliação a toda a humanidade, reivindicando a assunção de um (re)nascer contínuo, numa atitude próxima do processo de desconfirmação do fim do mundo a que alude Kermode.

Este poema parte de uma fotografia do Sputnik I para reflexões metafísicas. Contudo, não há uma única referência a este artefato humano. Por isso Jorge Fazenda Lourenço considera que a imagem serve apenas de referente iconográfico para indiciar a “possibilidade da ultrapassagem dos limites que confinam a humanidade, e desse supremo limite que é a morte” (1998: 283). A bola metálica simboliza a cápsula de salvação capaz de superar o fim do mundo, lançando o homem na eternidade que põe fim à morte natural. Um pouco como “O Colosso”, de Goya (1808-1812), que se ergue da terra, mas não chega ao céu, perpetuamente voltado de costas, de punhos cerrados, o homem que Sena retrata neste poema vive numa tensão que tanto o impele à inércia da matéria (a pulsão da morte) quanto o instiga a projetar-se para além do tempo e do espaço. A cedência que culmina na morte será a derrota da humanidade desejada. Sena revolta-se contra a morte, mas invoca-a sucessivamente; Poe descreve a sobrevivência retido num momento eterno de quase-morte. Num e noutro autores, não há renúncia possível ao fim do mundo, apesar de discursos e atos o quererem desmentir. Perante o colossal, resta projetar o futuro para além do fascínio e do terror.

Bibliografia

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FONTE: BERNARDINO, Lígia. “Experiência e Testemunho nas Cercanias do Fim em Jorge de Sena e Edgar Allan Poe”. In Elyra, 5, 03/2015, p. 45-62.