Diálogos epistolares de Jorge de Sena e João Gaspar Simões

Neste artigo, José Cândido de Oliveira Martins analisa a correspondência trocada entre Jorge de Sena e João Gaspar Simões, destacando a importância desses documentos para melhor conhecer o contexto crítico-literário português do século XX.

José Cândido de Oliveira Martins*

1 – Epistolografia literária – natureza e interesse

“Não sei se guardas as cartas. Da nossa correspondência de cerca de 40 anos fazia-se um bom documentário das preocupações da nossa geração” – escreve Óscar Lopes a António José Saraiva, em 1987 (Neves, 2004, p. 461). Esta confissão epistolográfica de dois críticos e historiadores maiores da literatura e cultura portuguesas expressa bem o amplo valor documental das cartas trocadas entre escritores e intelectuais, hoje e no passado mais ou menos recuado. Jorge de Sena e os seus interlocutores epistolográficos – em número significativo – têm afirmações de teor semelhante.

E o que se afirma sobre as cartas também é extensível a outros tipos de documentos, umas vezes recolhidos em arquivos pessoais e/ou públicos, outras vezes infelizmente dispersos e perdidos. Todavia, parafraseando Jacques Derrida (1995), estamos culturalmente condicionados pela diversa construção de arquivos, formais ou informais. Isso não impede que os acervos com documentação arquivística, como a correspondência epistolar, possam constituir um espaço de contagiante investigação de estudiosos, enquanto forma de fixação de um tempo, enquanto vestígios do passado.

Dentro da considerável diversidade de géneros da escrita autobiográfica, destaca-se a singularidade da epistolografia de escritores, estabelecendo pontes entre as dimensões do privado e do público, enquanto género versátil dotado de uma história multissecular onde se foram operando consideráveis metamorfoses até aos nossos dias (cf. Seara, 2006, p. 82 ss.). Independentemente de sabermos, com mais ou menos evidência, se os interlocutores de um diálogo epistolográfico se corresponderam a pensar na posteridade da sua correspondência, o certo é que esta singular modalidade de escrita sempre atraiu o interesse geral dos leitores.

De facto, a correspondência entre actores maiores da cultura e da literatura desencadeia desde logo uma natural curiosidade, quer no que respeita ao plano biográfico das suas existências e relações, enquanto vidas (d)escritas; quer no domínio lato da acção cívica e cultural, quer ainda no capítulo específico da criação literária e das circunstâncias que a esta presidiram. O leitor deste tipo de correspondência espera novidades e revelações, aspirando mergulhar em vidas desconhecidas em muitos aspetos.

Deste modo, desde o leitor comum não especializado em estudos literários, até ao crítico literário e ao historiador da literatura, a correspondência entre escritores sempre se revelou uma fonte de informação a vários níveis e cumprindo diversas funções. Para os leitores mais especializados, como os referidos, as cartas trocadas podem revelar informação menos conhecida, lançando luz sobre o contexto e o processo de criação, sobre certa atmosfera cultural, bem como acerca da esfera relacional de cada um dos autores – e tudo isso pode e deve ser sempre ponderado criticamente, longe de uma ultrapassada falácia biografista. Isto aplica-se cabalmente à breve correspondência de Jorge de Sena e J. Gaspar Simões, como a tantos outros conjuntos epistolares.

“De tudo foi um pouco, nas letras, Jorge de Sena. E depois de ter sido poeta, crítico, historiador da literatura, ensaísta, novelista, dramaturgo, morre deixando-nos uma peça-mestra da arte do romance” (Sena & Simões, 2013, p. 170), escreveu Gaspar Simões. Numa vida intensamente preenchida de trabalho, o incansável Jorge de Sena sempre se mostrou convencido do valor literário e cultural da sua obra, pelo que religiosamente tinha o hábito de guardar cópias das cartas enviadas aos seus interlocutores. Por isso, escrevendo a Gaspar Simões, em maio de 1977, explica que não o ter encontrado em casa quando telefonou foi um pouco de sorte, pois isso permitiu-lhe agora escrever esta carta: “E foi melhor assim: porque, em lugar de, grata e comovidamente, lhe agradecer o seu artigo de viva voz, tenho oportunidade de o fazer nos escritos que ficam (quando não vão parar ao lixo por mão dos nossos herdeiros)” (Sena & Simões, 2013, p. 139).[1]

Verva volant, scritpa manent (Palavras faladas voam, as escritas permanecem), como dizia o provérbio latino. Em todo o caso, na diversidade dos tipos de escrita, podendo comportar uma dimensão literária, na aproximação possível com os grandes géneros literários hegemónicos, a escrita epistolográfica continua a ser um género menor na cena literária – essa é justamente a expressão usada por J. Gaspar Simões (1982) para titular um dos seus textos de crítica na conhecida coluna do Diário de Notícias, que assinou regulamente durante décadas.

No entanto, consabidamente, articulando o domínio do privado com o público, a correspondência trocada entre escritores conhece uma riquíssima tradição histórica ao longo dos séculos, constituindo um repositório de capital importância cultural para a construção da própria história da literatura, bem como para o conhecimento de determinado meio e atmosfera cultural. Com uma tipologia variada e uma retórica própria – a que não falta a ilusão de proximidade nesse pacto dialógico, de natureza conversacional[2] –, o interesse das cartas de escritores é em grande medida proporcional à relevância cultural dos seus interlocutores. Casos há, bem conhecidos, em que essa correspondência, sem deixar de ser uma escrita marcada pela familiaridade e intimidade, se ergue do registo quotidiano da anotação diária para considerações da maior importância, de natureza político-social, mas também estética e literária, quer sobre a própria obra dos próprios interlocutores, sobre o processo de escrita, mas também sobre a criação de outros autores e mesmo sobre o meio literário.

Os sucessivos estudos teórico-críticos sobre a correspondência de escritores – sejam eles autores contemporâneos ou clássicos de outras eras – reforça a sua relevância, a vários níveis, quer para o conhecimento do próprio autor desses textos epistolares, quer dos seus interlocutores, quer ainda do meio cultural e literário em que esses diálogos epistolares se inserem (cf. Adam, 1998; Chartier, 1991; Haroche, 1995). No caso português, a epistolografia tem conhecido visões de síntese, como a clássica obra de André Crabée Rocha (1985); e, igualmente, estudos direcionados para autores particulares – a correspondência de Jorge de Sena, v.g. –, como é o caso das investigações de Maria Otília Pereira Lage (2017, 2020), de José Francisco Costa (2003) e de Maria Graciete Besse (2012), entre outros exemplos.

2 – Letras privadas e interesse público

A comprovar o anteriormente afirmado sobre o interesse plural da epistolografia está a edição frequente das cartas de vários escritores. O caso do polígrafo Jorge de Sena mostra-se bem eloquente, já que nos últimos anos sucedem-se os volumes contendo as cartas trocadas por Sena com vários interlocutores, numa edição sistemática, com destaque para: Guilherme de Castilho, José Régio, Vergílio Ferreira, Eduardo Lourenço, Sophia de Mello Breyner, José-Augusto França, Delfim Santos, António Ramos Rosa, João Gaspar Simões, entre outros. Diferentemente do estado de conhecimento da correspondência de Jorge de Sena, a de João Gaspar Simões encontra-se muito escassamente editada e ainda menos estudada.

Neste caso particular da correspondência entre Jorge de Sena (1919–1978) e João Gaspar Simões (1903–1987), dezasseis anos mais velho, estamos perante um número bem modesto de cartas, trocadas no arco temporal de 1943 e 1977, embora com circunstâncias bem peculiares, correspondentes interrupções e extravio de algumas cartas senianas. Efetivamente, neste convívio epistolar esparso, o volume em questão recolhe sete cartas de Jorge de Sena (datadas de Lisboa e de Santa Bárbara, sobretudo); e treze cartas de Gaspar Simões (datadas de Lisboa e de Cascais). A que se juntam oito missivas de Mécia de Sena, quase todas após a morte de Jorge de Sena, em 1978.

Numa edição organizada por Filipe Delfim Santos, este volume é ainda enriquecido pela reprodução de alguns textos críticos de Gaspar Simões, nem sempre de fácil acesso, porque nem todos foram devidamente recolhidos em volumes temáticos deste autor. O critério metodológico adotado de alternar as cartas com outras tipologias de textos pode ser discutível. Embora se perceba a intenção de permitir uma leitura em sequência cronológica dos textos diversos, além de publicar tudo o que tem interesse para esta relação epistolar dos dois autores.[3] Sem a pretensão de explorar a diversidade de aspetos contidos nestas cartas, cremos ser oportuno determo-nos em alguns apenas, com a brevidade possível de um artigo.

Desde logo, nesta correspondência sobressai a personalidade dos dois interlocutores, contendo alguns pontos em comum, sendo esse perfil sobremaneira condicionador dos conteúdos e da tonalidade destas cartas. Por outras palavras, vão-se construindo assim, epistolograficamente, as autorrepresentações dos seus autores ou, de forma mais específica, as imagens de si plasmadas nesta escrita, através de construção ou projeção de determinado ethos, com estratégias discursivas e uma cenografia muito próprias, tal como entendido na perspetiva da análise do discurso (cf. Amossy, 1999). Assim, genericamente, sobressai o perfil mais assertivo e acutilante, amiúde queixoso e polémico, de Jorge de Sena, numa postura de autoexilado e de homem amargurado face ao mundo académico português e à sua pátria[4]; face a um perfil mais compreensivo, colaborante e crítico de João Gaspar Simões.

Não por acaso, há investigadores que designam alguns modos de escrita autobiográfica justamente como “géneros da personalidade” (Baptista, 2003, p. 16). Aliás, o espírito de dissidência e a correspondente retórica do dissenso, aliando racionabilidade (logos) ao sentimento e à paixão (pathos) – procedimentos tão congeniais à escrita polémica (cf. Amossy, 2021, p. 23 e ss.) –, está bem no cerne da escrita de Jorge de Sena e também nestas cartas. Não é por acaso que certa crítica declarou Sena discípulo do polemista Pe. José Agostinho de Macedo; ou que Gaspar Simões o considera congenial do perfil de Gomes Leal, solicitando-lhe um breve ensaio sobre poeta de Mefistófeles em Lisboa para o volume Perspectiva da Literatura Portuguesa.

Esses perfis também decorrem de opções de vida. Salvaguardando diferenças óbvias (por exemplo, a diferença de personalidades, a pertença ou não ao mundo académico, bem como à diferença geracional), Sena e Simões aproximam-se desde logo através da intensa atividade de crítica literária, por um lado; e, por outro, de participação na dinâmica da literatura portuguesa contemporânea. Gaspar Simões Surge ligado ao movimento e revista da Presença (1927-40), com papel absolutamente crucial na promoção da obra de Fernando Pessoa e na compreensão do Modernismo de Orpheu, o que nunca é demais reconhecer.

Por sua vez, Jorge de Sena está associado sobretudo à revista literária Cadernos de Poesia (1940-42), entre outros acontecimentos literários contemporâneos. Testemunhas diretas de importantes momentos da vida literária portuguesa. Neste âmbito, os dois interlocutores entendiam o seu trabalho editorial como uma missão cívica e cultural. Não por caso, envolvidos em trabalhos bem diversos — colaboração em suplementos de jornais, revistas, coleções literárias, antologias, obras temáticas,[5] etc., sem esquecer o trabalho com editoras (Simões na Portugália e Sena na Livros do Brasil) –, as suas cartas falam-nos reiteradamente do problema cultural de Portugal e da sua assertiva vontade de contribuir para a sua modernização.

Ao mesmo tempo, ambos sofreram na pele as consequências da incompreensão do seu trabalho incansável, bem visíveis quer no prolongado e amargurado exílio geográfico de Sena – estrangeirado dentro e fora da sua pátria –, mas também numa certa marginalidade e hostilidade de que Simões foi alvo, sobretudo após anos de prolongado magistério crítico, em que se tornou paulatinamente, para alguns, uma espécie de bête noire da crítica literária nacional, podendo falar-se em “exílio interno”.[6] Aliás, algum paralelismo de percurso e de afinidade cultural, para além da amizade que os aproxima (manifesta nas sequências fáticas de abertura e de fecho das cartas), leva Simões a convidar Sena para algumas colaborações remuneradas – textos para jornais ou revistas, traduções (de Edgar Alan Poe ou Percy Shelley, v.g.), ensaios para volumes coletivos, organização de antologias, etc. –, ajudando assim o amigo nos conhecidos “problemas monetários” (Sena & Simões, 2013, p. 50).

Neste contexto, convém salientar que, mantendo a sua liberdade como crítico literário, Gaspar Simões tornou-se um dos críticos que mais cedo escreveu e mais acentuou a grandeza e a diversidade da obra seniana, como tem sido realçado por alguns estudiosos. Mesmo quando as relações pessoais entre os dois conheceram um acentuado eclipse, Gaspar Simões não deixou de recensear criticamente várias obras de Sena, dando assim uma lição sobre a independência do exercício do ato crítico. Aliás, o simples elenco cronológico dos textos críticos de Gaspar Simões (desde 1942 até 1986) e o respetivo corpus mostram-se deveras elucidativos a este respeito, estando este crítico presente desde a estreia literária dos 20 anos do jovem Jorge de Sena. Reconhecer um talento tão precocemente revela imenso das capacidades judicativas do crítico em questão.

3 – Contendas públicas e reencontros mediados

Esta escassa epistolografia ressente-se naturalmente do afastamento entre os dois interlocutores por alguns anos (entre os finais dos anos 40 e 1976-77), contacto reatado já no fim da vida de Jorge de Sena. Uma das explicações para o desentendimento entre Gaspar Simões e Jorge de Sena, além do difícil temperamento seniano, pode residir nas decisivas diferenças ao nível da conceção de literatura, ou mais concretamente em torno da chamada literatura do eu, valorizadora dos meandros da introspeção – o primeiro apresenta-se como um dos oficiais do presencismo; e o segundo, pelo menos em certa fase, insiste no seu antipresencismo (cf. Sena & Simões, 2013, p. 30).

Ora, este dissídio estético-literário ou ponto de partida crítico pode estar na base de ideias distintas acerca de vários tópicos interligados: a) desde logo, a controversa relação da presença com o movimento de Orpheu; b) ao mesmo temo, e consequentemente, a temática axial da liberdade do poeta ou escritor face a agendas ideológicas do momento; c) a velha questão da função ou empenhamento da palavra literária (“poesia social” ou “literatura social”), tal como entendido sobretudo pela “malta neo-realista” do ideário seareiro (expressão depreciativa de Jorge de Sena); d) neste clima de tensão, Gaspar Simões, o antigo diretor da presença e influente crítico, personificava certo establishment literário, ideia que suscitava a conhecida aversão seniana; e) por fim, o juízo crítico de Gaspar Simões sobre a ”hermética ininteligibilidade” de muitas das composições poéticas de Sena (cf. Sena & Simões 2013, p. 63), entre outros tópicos ou apreciações judicativas, também não contribuíram, decididamente, para a serenidade das relações entre ambos.

Como sugerido, a agudizar este afastamento entre os dois autores está, naturalmente, o temperamento assertivo de ambos, com destaque para a personalidade enfática e torrencial de Jorge Sena. Curiosamente, Jorge de Sena mostrar-se-á bem mais próximo de Adolfo Casais Monteiro, também ele protagonista do movimento presencista. Mas no pós-Guerra, após a crítica de Gaspar Simões a Coroa da Terra [de 1946], Jorge de Sena reconhece que a relação de amizade (ainda) se mantém, mau grado os feitios e suscetibilidades em confronto:

Não fosse a muita amizade e sincera admiração que, na sua crítica, encontro acompanhadas de uma extrema delicadeza em me não ferir, e não lhe escreveria longamente (…). Além disso, ambos somos um tanto afirmativos (…) e, de resto, suficientemente delicados para não deixar resvalar no antagonismo o que nem chega a ser pendência literária. (Sena & Simões, 2013, p. 70)

Em todo o caso, o teor da alongada contra-argumentação seniana ao texto de Gaspar Simões sobre as “Duas famílias de poetas” é suficientemente elucidativo das diferenças de conceção sobre a natureza e o papel da poesia na época, fazendo antever o afastamento entre os dois. Aliás, em carta de Fevereiro de 1952, com observações críticas, Sena agradece um tanto secamente, a apreciação crítica de Simões à sua tragédia O Indesejado (cf. Sena & Simões, 2013, p. 100), interrompendo-se a sua correspondência por alguns anos. Porém, a correspondência é retomada em 1977, após uma crítica elogiosa de Gaspar Simões ao livro seniano de contos Os Grão-Capitães, lendo-os como “autobiografia estruturada como ficção”, aliás, na sequência da própria reflexão prefacial do autor (Sena & Simões 2013, p. 109).

A somar a tudo isto, dever referir-se o acentuado perfil da independência seniana, muito pouco dado a filiações e a grupos, reagindo com proverbial violência a estas questões (cf. Sena & Simões, 2013, p. 32). É sobretudo nesse contexto de afastamento de cerca de 25 anos entre os dois que se devem ler algumas invetivas contra Gaspar Simões, a sua metodologia crítica, inscritas em outros textos e outras correspondências; bem como a acidez de algumas das proverbiais dedicácias senianas.

Apesar da admiração por Gaspar Simões, um dos críticos mais assíduos e respeitáveis do meio literário português, Jorge Sena não deixa de ser contundente na distância que mantém em relação ao seu método crítico, acusando-o de fazer uma crítica psicológica e de “se apoiar demasiado no «palito freudiano» (expressão que ele não me terá perdoado).” (Sena, 2013, p. 30). Gaspar Simões é o influente crítico do Diário de Notícias, que Sena designa, depreciativamente, como “vil criatura” ou pelo nome pluralizado e jocoso de “Gaspões” (Sena & Breyner, 2010, p. 45). Essa linguagem agreste de Sena não invalida a geral admiração pelo trabalho de J. Gaspar Simões, visível sobretudo nesta correspondência trocada entre ambos.

Em carta à esposa, aliás, como em tantas outras ocasiões, Sena mostra a sua visão contundente do panorama da crítica nacional, sendo Gaspar Simões um dos mestres do ofício direta ou indiretamente visado (cf. Sena & Simões, 2013, p. 58). Em outras correspondências, quando o sarcástico Sena (e não só ele) pretende referir-se aos críticos literários portugueses, simplesmente pluraliza o nome do influentíssimo crítico do Diário de Notícias, falando nos “Gaspares Simões” da cena portuguesa. Um facto deve ser realçado, abonando muito em favor da postura do interlocutor seniano, no seu continuado exercício da crítica na imprensa portuguesa: mesmo durante o afastamento entre ambos, Gaspar Simões faz questão de manter-se atento à obra de Sena, apreciando criticamente as novidades editoriais de que vai tomando conhecimento (cf. Sena & Simões, 2013, p. 35). E em cartas posteriores à aproximação entre ambos, depois de “anos de afastamento”, Gaspar Simões reitera, em 1977, a sua continuada postura de independência:

Sempre que me vêm à mão livros seus, lhes dedico, na quase secular rubrica do Diário de Notícias, algumas palavras apreciativas, independentemente dos desentendimentos que outrora houve entre nós. E até, durante o curto período que estive a dirigir O Século – tarefa que aceitei pelos cabelos – me atrevi a endereçar-lhe um convite para colaborar no mesmo jornal. (Sena & Simões, 2013, p. 119)

Tendo-se conhecido pessoalmente em 1939, no âmbito de actividades culturais e literárias que a ambos interessavam, a relação de amizade entre Sena e Simões transformou-se em diálogo epistolar a partir de 1943. Porém, devido a circunstâncias como as que deixámos sumariadas, essa amizade conheceu momentos prolongados de dissidência, só ultrapassados em meados da década de 1970, mais concretamente em duas ocasiões – primeiro, num evento em Coimbra, na celebração do cinquentenário da revista Presença, a 7 de Junho de 1977, em que Sena esteve a convite do próprio Gaspar Simões, devendo recordar-se, aliás, que Sena teve esporádica colaboração num derradeiro número da Presença (cf. Sena & Simões, 2013, p. 132).

Em segundo lugar, poucos meses depois, num Colóquio sobre Fernando Pessoa, na Universidade de Brown (Providence), no mesmo ano de 1977, Gaspar Simões – editor e biógrafo de Pessoa – fora convidado por indicação de Jorge de Sena (cf. Sena & Simões, 2013, pp. 114, 119) –, também para fazer palestras em outras universidades. Esta foi mesmo uma das últimas aparições públicas de Jorge de Sena, que vem a falecer em 4 de junho de 1978. Não por acaso, ao longo desta epistolografia fala-se reiteradamente nos “anos de afastamento” (Sena & Simões, 2013, pp. 128, 132, 153) entre os dois. Insista-se ainda no facto de o encontro entre Gaspar Simões – que visitava os EUA pela primeira vez – e Jorge de Sena, na sequência do encontro de Coimbra, se revelar um momento de aguardada reconciliação, desejado por ambos e mediado oportunamente por um poeta amigo de Sena (Rui Knopfli).

Sublinhe-se ainda que a referida persistência do exercício da Crítica literária sobre a obra seniana por parte de Gaspar Simões, nas páginas do Diário de Notícias, é um ato de reconhecimento da escrita do autor de Peregrinatio ad Loca Infecta, mas também um gesto de coragem. Consabidamente, ao contrário de muitos autores objeto de crítica literária – não dialogando com o crítico e mantendo uma certa reserva –, o temperamento de Jorge de Sena levava-o a contactar o crítico mesmo quando tinha sido alvo de crítica elogiosa; e de, muitas vezes, não hesitar em fazer a crítica da crítica, chamando a atenção para aspetos pretensamente ignorados ou não bem compreendidos pelo crítico, numa palavra, corrigindo o crítico.[7] Em todo o caso, a reação de Sena perante aqueles que o ignoravam ou os que ele considerava inimigos poderia ser muito mais amarga, violenta e demolidora.

4 – Das cartas ao establishment cultural e literário

Concluindo rapidamente, cremos ser legítimo enfatizar algumas ideias: desde logo, o interesse desta correspondência excede o número exíguo de cartas trocadas. Este epistolário escasso não deixa de patentear interesse variado, desde logo porque ancoradas numa determinada circunstância cultural e literária. A par de outras modalidades de escrita mais ou menos autobiográfica (do diário à crónica), também a carta merece a designação de “género da data” (Baptista, 2003, p. 21), quase sempre vinculada a factos histórico-referenciais, tal a sua relação com determinado calendário pessoal e epocal.

De facto, quando lidas e devidamente contextualizadas no seu contexto, bem como articuladas com os textos ou obras a que se referem, estas cartas permitem-nos uma mais cabal compreensão da dinâmica da História e da Crítica literárias contemporâneas. Nesse sentido, mostram-se úteis para a reconstituição da cultura literária atual, na medida em que preenchem uma informação mais ou menos relevante sobre determinada etapa da sua evolução, desde logo ao nível da fortuna crítica da obra de Jorge de Sena, mas igualmente da obra de J. Gaspar Simões, tal como sobre outros autores referenciados.

Ao mesmo tempo, correlacionadamente, com inerente subjetividade, mas também lucidez introspetiva, estas cartas entre Sena e Simões demonstram a frontalidade com que dois nomes maiores da cena literária se corresponderam, assumindo divergências de vária ordem e conseguindo-as superar numa etapa avançada das suas vidas. Estavam em causa diferentes conceções de Literatura e de Crítica literária, entre outros pontos de desacordo. Mas tudo isso demonstra também o modo de funcionamento do campo literário nacional da época, na sua pequenez e num espaço público amarfanhado pelo regime do Estado Novo.

Mais do que Simões, é sobretudo na escrita de Sena que encontramos maior projeção da sua biografia. É justamente por isso que Eduardo Lourenço (2021, p. 140) não hesitou em afirmar que Jorge de Sena “nunca escreveu nada em que não se escrevesse”. Ao mesmo tempo, também sobressai nesta escrita, nomeadamente ao nível a imagem de si (ethos), uma atitude muito mais vincada de superioridade e de imodéstia de Jorge de Sena face ao mundo académico e à Cultura portuguesa – com Sena a mostrar-se frequentemente perseguido e incompreendido no seu país natal, tal como também expresso em outros diálogos epistolares: “Eu sei, Sophia, aí [Portugal], quase tudo me não merece”.8

Enfim, esta correspondência entre Sena e Simões mostra ainda o tipo de convivialidade que caracteriza o meio literário português da segunda metade do séc. XX. Enquanto repositório documental vivo, esta correspondência vai cartografando as ‘redes sociais’ dos dois escritores e do seu entorno, compondo um quadro relacional variado de interações com diversas figuras e actores sociais, constituindo assim uma determinada ambiência sociológica, cultural e literária de uma época determinada, com os seus momentos de grandeza ímpar, mas também de mesquinhez cultural, antropológica e cívica. Uma coisa é certa: cada um à sua maneira, ambos se mostram como autores assumidamente implicados, de várias formas, no rumo das ideias do seu tempo, dentro e fora do meio literário.

Na brevidade do exposto, cremos ter assinalado algumas das mais relevantes facetas assumidas pelo amplo valor testemunhal e documental desta correspondência entre Jorge de Sena e J. Gaspar Simões, incluindo o significativo dissídio entre ambos, aspetos que agora podemos sistematizar:

i) Os diferenciados registos de escrita de ambos constroem um ethos específico decorrente de cada uma das personalidades, mostrando-se bem distinto o ethos mais auto-convencido, polémico e corrosivo de J. Sena, se comparado com o ethos atento, independente e crítico de J. Gaspar Simões; enfim, ambos buscaram o reconhecimento público, mau grado os desentendimentos e o afastamento durante anos, no final prevaleceu a aproximação e a “amizade firme” (Sena & Simões, 2013, p. 193), curiosamente à sombra tutelar de Fernando Pessoa.

ii) Ao mesmo tempo, mau grado o seu número reduzido, estas cartas aportam algumas informações e reflexões esparsas sobre o trabalho de criação literária (processo de génese), sobretudo própria, pois ambos os interlocutores tinham em comum a criação literária, com aproximações a grupos literários, embora com diferenças compreensíveis e bastante assinaláveis.

iii) Estas cartas também se mostram ricas ao nível dos juízos sobre a criação própria e sobretudo alheia (receção crítica), pois os dois interlocutores exerceram o seu continuado múnus de críticos literários, em géneros e suportes diversos (da crítica ‘jornalística’ até ao ensaio de fôlego), com alguns paralelismos curiosos, embora com diferenças teórico-metodológicas assinaláveis.

iv) Como expectável, esta escrita epistolográfica também revela informação relevante ao nível das relações interpessoais, quer entre os dois, quer sobretudo entre eles e outras figuras (redes de sociabilidade), com destaque para as dinâmicas entre os autores e grupos ou tendências literárias (adesões, dissensões, hostilidades, melindres, invejas, etc.); e, não menos importante, para as interações do meio literário, através dos seus actores e demais organizações envolventes – escritores, críticos, editoras, universitários, cátedras, tradutores, imprensa (jornais, suplementos, revistas), prémios, academia, etc.

v) Por fim, ao nível do contexto geral, estas cartas contêm ainda considerações gerais sobre a vida ou ‘carnaval’ político-social e cultural, na sua relação natural com o referido meio literário, sobressaindo manifestamente a visão crítica sobre a inteligência portuguesa, vista sob o signo de Reino da Estupidez, principalmente norteada pelo governo do Estado Novo, e logo depois já nos primeiros anos após a Revolução de Abril de 1974. Afinal, o diálogo epistolar revela-se muitas vezes uma “impressiva crónica da cultura e sociedade” (Lage, 2020, p. 456).

Quando a ‘prosa epistolar’ é da autoria de dois nomes maiores da cultura literária portuguesa contemporânea, como é o caso da obra objeto de reflexão, o interesse mostra-se inquestionável. Definitivamente, J. Gaspar Simões confirma-se como inequívoca figura maior de crítico literário; enquanto Jorge de Sena se distingue como operoso escritor multifacetado e “contemporâneo capital” (Lourenço, 2021).

Financiamento: Estudo desenvolvido no âmbito do Projeto Estratégico do Centro de Estudos Filosóficos e Humanísticos (CEFH) UIDB/00683/2020, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT).

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Simões, J. G. (1982, 22 abril). A epistolografia portuguesa: um género menor. Diário de Notícias, 15–16.

NOTAS

* Centro de Estudos Filosófico-Humanísticos (CEFH) da Universidade Católica Portuguesa, Braga, Portugal. ORCID: 0000-0002-7970-8794

1 Também Mécia de Sena, ciosa divulgadora da obra do marido, mostra-se incansável na recolha de informação preparatória de volumes com correspondência, como a que João Gaspar Simões manteve com Jorge de Sena: “Tenho andado a recolher a correspondência do Jorge em vista a uma publicação futura não sei quando, mas pelo menos no intuito de a preservar e preparar em diálogo, como entendo que deve ser. Não me lembro bem e não tenho comigo os arquivos, qual a extensão desta correspondência consigo, por isso lhe pergunto: tem cartas do Jorge? Quantas? Importa-se de me dar cópias xerox delas?” (Sena & Simões 2013, pp. 179–180).

2 Essa ilusão de proximidade do intercâmbio epistolar é justamente aquilo a que Vincent Kaufman (1990, p. 8) chama da de “equívoco epistolar”, assente no pacto implicitamente estabelecido entre os dois interlocutores e na sua retórica comunicativa. Investigadores contemporâneos da análise do discurso também se interrogam sobre a natureza do modo conversacional presente na comunicação epistolar, nos planos enunciativo e argumentativo (cf. Kerbrat-Orecchioni, 1998; Adam, 1998).

3 A lembrar a famosa afirmação queirosiana: “Ora quantos mais documentos se reúnem sobre um homem de génio como Hugo, mais completo se torna o trabalho crítico sobre a sua individualidade e sobre a sua obra. Para alargar e completar o conhecimento dos grandes homens, publicam-se-lhe as cartas, todos os papéis íntimos – até as contas do alfaiate.” (Queirós, 2002, p. 345).

4 No discurso epistolográfico de Jorge de Sena sobressai uma postura de empenhamento cívico, quer no que respeita ao meio literário e cultural, quer igualmente em relação à sociedade e à política portuguesas – o discurso seniano não consegue ficar indiferente aos rumos da vida portuguesa, de que se julga frequentemente vítima. Nesta atitude, para o autor de Rever Portugal, destaca-se especialmente a figura do intelectual profundamente empenhado, enquanto voz ativa de uma consciência coletiva – cf. o breve texto “O silêncio dos melhores” (Sena, 2011, pp. 234–237), bem exemplar a este respeito.

5 Sirva de exemplo o volume organizado por J. Gaspar Simões, intitulado Perspectiva da Literatura Portuguesa, em 2 vols., para o qual solicitou a colaboração de Jorge de Sena, autor de um breve ensaio sobre Gomes Leal, poète maudit que Simões achava próximo da personalidade ou dos interesses senianos (cf. Sena & Simões, 2013, pp. 26, 57).

6 Cf. Sena e Simões (2013, pp. 18, 168). Aliás, sabemos bem como a questão da Crítica literária sempre constituiu um assunto crucial para o pensamento de Jorge de Sena, desde os textos teóricos à prática da crítica, se esquecer as entrevistas onde abordou tal assunto (cf. Martins, 2020a).

7 Amigo de Jorge de Sena, até o experimentado Adolfo Casais Monteiro expressou o seu desabafo, datado de 1946, perante esta peculiar situação: “é muito difícil fazer crítica a um livro do Sena” (Sena, 2004, p. 45) – lamento escolhido por Filipe Delfim Santos para epígrafe do seu estudo (cf. Sena & Simões, 2013, p. 13).

FONTE: MARTINS, José Cândido de Oliveira. “Diálogos epistolares de Jorge de Sena e João Gaspar Simões”. In: Diacrítica: revista do centro de estudos humanísticos. Vol. 36, nº 3, 2022. p.41-52. DOI: doi.org/10.21814/diacritica.5084