Um jogo demoníaco

Escrito em 2019, durante as comemorações do centenário de Jorge de Sena, neste artigo, Lucas Laurentino se debruça sobre um curioso poema seniano “Homenagem a Sinistrari (1622-1701), autor de ‘De Daemonialitate'”, publicado em Exorcismos (1972) e que integra o rol de poemas “incompreensíveis”, como os sonetos a Afrodite. Para discutir alguns aspectos do poema, o autor comenta sobre as noções de experimentalismo nas artes e sobre uma concepção de jogo baseada na obra Homo ludens, de Johan Huizinga.

Lucas Laurentino de Oliveira (UFRJ/CNPq)

A noção de experimento e seus termos correlatos (experimentação, experimental, experimentalismo), tem como principal campo de atuação o das ciências, mais especificamente as ciências naturais. De fato, o empirismo, conceito relacionado ao de experimento, representou uma grande transformação na maneira como estruturamos o conhecimento. Uma vez que a intuição, o senso comum, ou a autoridade catedrática já não se mostravam suficientes para embasar uma teoria, tornou-se necessário prová-la por meio de testes, de experimentos. A invenção do telescópio, considerado o primeiro objeto criado para fins puramente científicos, costuma ser considerada o ponto de partida para uma ciência cada vez mais empírica. Os sentidos humanos não são seguros na aferição dos fenômenos, é indispensável que se construam instrumentos capazes de suprir as deficiências do olho, do ouvido, do tato a fim de se chegar a uma realidade mais precisa, mais controlável. Dessa forma, o experimento passou a ser o principal método para confirmar ou refutar teorias e hipóteses. Daí a sua associação com o significado mais comum da palavra, que a torna sinônima de “ensaio”, “teste”, “tentativa”. Já que não se pode ter certeza dos resultados de um experimento até que ele se realize, ele adquire o caráter de algo não finalizado, não absoluto. Está próximo, dessa maneira, da prova: primeiro provar se algo é bom e só então comprar o produto.

Na poesia (e nas artes como um todo) é essa última acepção que costuma prevalecer. Quando nos referimos a um poema ou a um livro como experimental, geralmente é porque não o encaramos como integrante da obra mais “séria” do autor, ou porque queremos relativizar as possíveis falhas encontradas no texto em questão, suavizando, dessa forma, a crítica negativa. Os textos experimentais comumente são associados às vanguardas, aos movimentos que buscam novas formas de expressão e, por isso, lançam mão de diversos experimentos, sejam plásticos, sejam sonoros ou linguísticos. No entanto, não raro esses textos vanguardistas aparecem como os que abriram caminho para as obras “maduras”, as que de fato conferem uma elaboração definitiva ao que fora tentado anteriormente. Deste modo, podemos dizer que uma vertente da crítica de arte estabelece uma divisão básica entre obras experimentais e obras maduras, seja para esclarecer o desenvolvimento técnico e criativo dos artistas num sentido positivo/progressivo, seja para situar movimentos e períodos numa escala cronológica e/ou numa rede de influências.

Se está fora dos limites deste artigo fazer um levantamento exaustivo de exemplos que provem o nosso ponto, um outro método pode ser útil para indicar que, se essa divisão não é corrente, ela ao menos existe ou existiu em algum grau de importância. Quando lemos alguns dos vários paratextos que Jorge de Sena escreveu para os seus livros, um tópico volta e meia é mencionado, em tom de justificação. É precisamente a noção de experimentalismo da sua obra. No prefácio ao volume Poesia II, diz-nos o autor:

Sem querer entrar na questão ou alongar este prefácio, limitar-me-ei a dizer que, sem dúvida, estes três livros encerram alguns dos mais densos e fundos poemas, se não mais belos, que escrevi; mas que isso igualmente se sucede em livros ulteriores (e Peregrinatio é contemporâneo destes, por exemplo), que não são menos densos, por vezes, nem menos experimentais (como tenho sido em trinta e cinco anos de publicar poemas em livro) do que estes ou do que os anteriores.”[1] (SENA, 1988b, p.14) (grifo nosso)

Ao comentar o conjunto de três livros que se reeditam em Poesia II (a saber, Fidelidade, Metamorfoses e Arte de Música) Sena faz questão de pontuar que, apesar de considerar alguns dos poemas ali contidos como os melhores que já escrevera na vida, isso não é uma exclusividade deste livro, tanto que se encontram iguais densidade e beleza em livros anteriores e posteriores, assim como não são exclusivos os experimentalismos nele contidos (que podemos exemplificar pelos sonetos a Afrodite ao final de Metamorfoses). Ainda mais, Sena marca que o caráter experimental é frequente em toda a sua obra, tal como expressa nos parênteses do trecho, e, com isso, indica que há uma paridade entre o experimentalismo e a qualidade dos textos, uma vez que alguns dos seus “mais densos e fundos poemas” são também experimentais. Em outra passagem deste mesmo prefácio, logo depois da que citamos, Sena diz: “E os ulteriores, publicados depois que passei a voltar regularmente a Portugal (…), continuavam a ser tão experimentais como os anteriores” (SENA, 1988b, p.14). Novamente temos a referência ao experimentalismo como elemento fundamental do fazer poético seniano. Os comentários sobre sua própria poesia não se limitam a este prefácio e, em Poesia III, encontramos outra passagem, referente ao livro Peregrinatio ad loca infecta (1969): “É um livro cheio de continuidades e cheio de experiências e de experimentalismos (como os anteriores o foram sempre)”[2] (SENA, 1989a, p.13). Mais uma vez a palavra experimentalismo consta como índice que marca a sua poesia.

Não bastassem essas três referências em prefácios, nos quais Sena comenta sua obra, encontramos um volume póstumo que é composto por poemas experimentais. Trata-se de Sequências, publicado em 1980, tendo sido organizado e editado por Mécia de Sena. Foi iniciativa dela organizar as várias sequências de poemas num único volume sob o critério de serem experimentalismo, como ela comenta na “Nota prévia”:

Optámos pela publicação separada, não só porque cada uma das séries de poemas representa um experimentalismo formal ou estético diferente que só lucra em ser visto paralelamente, como porque esse experimentalismo se perderia como tal se publicado na enorme massa de poemas que constituirão Visão Perpétua que deixará de fora apenas parte da vastíssima obra de juventude.[3](SENA, 1980, p.7)

E é neste outro volume póstumo a que a viúva se refere que encontramos uma segunda menção a Sequências. Na “Nota introdutória”, Mécia de Sena, ao explicar a organização das publicações inéditas do poeta, comenta o seguinte: “e, um terceiro livro, que se nos impunha como lógico: os poemas-em-série de carácter experimentalista a que, reunidos, chamámos o que são – Sequências e está também já publicado.”[4] (SENA, 1989b, p.11).

Através das passagens citadas, podemos perceber a preocupação do poeta (e de sua viúva) em deixar claros alguns dos princípios que norteiam a sua escrita, seja poética, ficcional, ensaística ou teatral. Esta preocupação quase obsessiva se reflete na profusão de paratextos que acompanham os seus livros, nos quais ele discute o processo de desenvolvimento dos textos, circunstâncias biográficas que influíram, além de se voltar contra leituras pobres (ou que ele assim o julga) e despretensiosas dos poemas, contos e ensaios que foi publicando. Se de fato houve (e há) uma visão da obra experimental que a associe ao não-sério, ao “imaturo”, Jorge de Sena aparece como um autor que complica as divisões básicas, as categorizações fáceis, uma vez que mesmo os textos mais densos, profundos e complexos são marcados pela experimentação.

Estando constantemente em contato com as demais ciências e por vezes integrando-as à sua escrita, Jorge de Sena afirma, por exemplo, que as Metamorfoses são “meditações aplicadas – e aplicado deve entender-se aqui no mesmo sentido em que se diz ‘ciência aplicada’ em contraste com ‘ciência pura’” (SENA, 1988b, p.158). Se a ciência pura é eminentemente teórica, do cálculo denso, especulativa, a ciência aplicada, por sua vez, é prática, ligada aos problemas humanos, respondendo a estes com novas invenções, novas descobertas, oriundas de diversos experimentos. Neste caso, parece lícito pensar a constante experimentação como um princípio de composição da poética seniana, desde que se tenha em mente uma concepção de experimentalismo que não o associe à frivolidade, à mera tentativa.

Quando levamos adiante a reflexão acerca do experimentalismo tendo em vista principalmente o espaço poético e nos deparamos com alguns dos poemas menos imediatos da obra seniana, tais como “Outra estrofe de Camões”, “Colóquio sentimental em duas partes” e o grande exemplo que são os sonetos a Afrodite, uma interrogação surge: como abordar esses textos? Ou melhor, como abordar esses textos de maneira que se leve em conta o aspecto inventivo e inusitado que eles exploram sem os categorizar simplesmente como experimentais? Que tipo de método pode nos ajudar a desdobrar algumas das potencialidades que tais textos carregam mas que não se oferecem de pronto? Ou então, como ir além do adjetivo “experimental”?  

O que sugerimos aqui é uma abordagem da poesia seniana, mais especificamente desses “poemas incompreensíveis”, através da concepção de jogo, desenvolvida por Johan Huizinga em seu livro Homo ludens – o jogo como elemento da cultura, publicado originalmente em 1938. Nele, o autor parte do pressuposto de que o jogo é anterior à cultura e um dos seus elementos formadores. Ele destaca ainda que pouca atenção havia sido dada ao jogo e as explicações antropológicas que procuravam ver nele uma utilidade biológica não se mostravam suficientes. “Há um elemento comum a todas estas hipóteses: todas elas partem do pressuposto de que o jogo se acha ligado a alguma coisa que não seja o próprio jogo, que nele deve haver alguma espécie de finalidade biológica”. (HUIZINGA, 1980, p.4)[5]. É justamente na ideia de que o jogo possui uma finalidade em si mesmo que Huizinga desenvolve seus estudos, descartando, desta maneira, uma explicação utilitária. Ele mostra que o jogo, apesar de frequentemente se opor à seriedade, não se resume a uma “atividade não-séria”, uma vez que se pode levá-lo profundamente a sério sem que por isso se perca o aspecto lúdico. Em uma passagem, logo no primeiro capítulo, o autor diz

Na criação da fala e da linguagem, brincando com essa maravilhosa faculdade de designar, é como se o espírito estivesse constantemente saltando entre a matéria e as coisas pensadas. Por detrás de toda expressão abstrata se oculta uma metáfora, e toda metáfora é jogo de palavras. Assim, ao dar expressão à vida, o homem cria um outro mundo, um mundo poético, ao lado do da natureza. (HUIZINGA, 1980, p.7)

Para uma primeira associação, bastaria adicionarmos a esse trecho os versos finais do poema “Felicidade”, presente em Perseguição: “E, como menino que era,/ achava um grande mistério no seu próprio nome.”[6] (SENA, 1988a, p.64). Se no poema, a felicidade enquanto ideia vai ganhando características humanas de “menino impúbere” até espantar-se com o mistério do próprio nome, no trecho de Huizinga a criação da fala tem como raiz a brincadeira com as palavras, o jogo de nomear, que é capaz de criar um mundo único, poético, à parte do mundo natural. A “felicidade” seniana encantada com o próprio nome está, de certa forma, descobrindo o jogo das metáforas, das designações.

Não à toa, o autor dedica dois capítulos para a relação entre jogo e poesia. Num deles, temos a seguinte passagem:

Enumeremos uma vez mais as características que consideramos próprias do jogo. É uma atividade que se processa dentro de certos limites temporais e espaciais, segundo uma determinada ordem e um dado número de regras livremente aceitas, e fora da esfera da necessidade ou da utilidade material. O ambiente em que ele se desenrola é de arrebatamento e entusiasmo, e torna-se sagrado ou festivo de acordo com a circunstância. A ação é acompanhada por um sentimento de exaltação e tensão, e seguida por um estado de alegria e de distensão.

Ora, dificilmente se poderia negar que estas qualidades também são próprias da criação poética. A verdade é que a definição de jogo que agora demos também pode servir como definição da poesia. A ordenação rítmica ou simétrica da linguagem, a acentuação eficaz pela rima ou pela assonância, o disfarce deliberado do sentido, a construção sutil e artificial das frases, tudo isto poderia consistir-se em outras tantas manifestações do espírito lúdico. Não é de modo algum uma metáfora chamar à poesia, como fez Paul Valéry, um jogo com as palavras e a linguagem: é a pura e mais exata verdade. (HUIZINGA, 1980, p.147)

Se a definição de poesia é algo que suscita muito debate e discussão, é difícil discordar que, dentro de uma concepção de poesia que se queira abrangente, não haja nenhum dos elementos destacados por Huizinga. De fato, a própria relação do leitor com o poema é marcada pelo caráter lúdico, um jogo no qual se entra por livre e espontânea vontade, aceitando as regras que organizam o texto e sempre podendo “jogar uma nova partida”, cada uma com um resultado diferente. Se encaramos um texto poético como jogo, a relação que estabelecemos com ele muda, ainda que não radicalmente. Os métodos de interpretação, de leitura, serão menos a busca por um sentido último que revele todo o significado do poema (resumido em frases como “este poema é sobre isso”), ou um trabalho de decodificação das palavras, atendo-se somente ao que elas significam e a temática desenvolvida ao longo dos versos e estrofes (resumido em frases como “este poema fala disso”), e mais uma confrontação, um desafio de decifração de enigma, uma incursão que leve em conta as próprias regras que regem o jogo. Esta abordagem ganha força quando nos deparamos com poemas que oferecem resistência à interpretação mais direta, que, a princípio, se configuram como incompreensíveis. Tal é o caso de um poema seniano presente em Exorcismos (1972), intitulado “Homenagem a Sinistrari (1622-1701), autor de ‘De Daemonialitate’”:

Os homini sublime dedit, coelumque tueri
Iussit et erectos ad sidera tollere vultus
 (Ovídio, Met., I, 85-6)

Ó Belfagor Rutrem e Bafomet
Baclum-Chaam Sabazius Basiliscus
Mutinus Hautrus Chin Liber Strenia
Tchu-vang Tulpas Egrigors Churels
Lâmias Larvas Telazolteotl
Caballi Caballi Caballi Ca-
balli Caballi Caballi Caballi.
Melav oan em sonamuh euq 
mim a edniv! Ó Laquiderme efiast!
Caste castina castinata cast!

Only he was heavie lyk a malt-sek
a hudge nature verie cold as yce.
 (Boguet, An Examen of Witches) (SENA, 1989a, p.148)

É útil também citar o comentário feito pelo poeta e posto ao final do livro:

É de notar que o original de Boguet, citado, era em francês. Mas a antiga tradução inglesa, com a sua ortografia, possui um sabor que se pretendeu usar. Um crítico, que era sobretudo um admirável poeta e um grande amigo meu, convidado a escrever sobre este livro, quando já estava bem doente do tremendo sofrimento que acabou por matá-lo poucos anos depois, para minha grande perda entre tantas outras semelhantes, não se apercebeu de que este poema não era, senão na aparência, análogo aos “Sonetos a Afrodite Anadiómena”, porque não é feito de uma única palavra inventada: todos são nomes do demónio ou de entes equivalentes em diversas religiões antigas e ainda modernas de vários continentes, ou fórmulas de invocação. E o estranho verso e meio que ainda parece ser menos palavra existente do que as outras não é senão, como fórmula invocatória, uma desesperada exclamação, escrita às avessas, como cumpre: “Vinde a mim, que humanos me não valem!” (SENA, 1989, p.253)

A partir daí, temos uma série de considerações a fazer. A primeira e mais imediata é o estranhamento visual que esse poema provoca. Para falantes de língua portuguesa, a mera vista de olhos sobre este texto já causa uma certa surpresa, algo que inclusive pode levar um leitor despreocupado a se deter sobre este poema, parar para lê-lo atentamente. Em seguida, podemos notar que o comentário explicativo na prática esclarece muito pouco do que é dito e inclusive não economiza palavras para falar do “crítico, que era sobretudo admirável poeta…” sendo que o ponto principal é o equívoco desse crítico ao associar “Homenagem a Sinistrari” com os sonetos a Afrodite. Mais importante para lermos o poema certamente são as poucas linhas finais que falam sobre os nomes se referirem a demônios e outras entidades demoníacas além do verso e meio que está em português ao contrário. Munidos dessas informações, retornamos ao texto na tentativa de descobrir, então, quais demônios são mencionados. Para nossa surpresa, não apenas demônios relativamente conhecidos como “Belfagor” e “Bafomet”, mas entidades de mitologias diversas são mencionadas, de difícil localização, seja pela ortografia utilizada por Sena não estar de acordo com outras transliterações entre alfabetos (caso de Tchu-vang, que também é encontrado como Zhou Wang e Chou Wang), seja pela distância cultural (como o caso de Telazolteotl, ou Tlazolteotl, deusa asteca).

Duas importantes análises sobre este poema foram feitas, explorando o jogo enigmático posto por Sena. A primeira, de Jorge Fazenda Lourenço, comenta o seguinte:

A epígrafe está assimilada no poema, de tal modo que não há diferença entre paratexto e texto. É o que acontece em “Homenagem a Sinistrari (1622-1701) Autor de De Daemonialitate”, caso único de poema entre duas epígrafes, e cujo título contém já uma citação explícita. Com efeito, neste poema, as duas epígrafes, destacadas em itálico, têm a disposição tipográfica de estrofes (de dois versos cada), sendo a primeira epígrafe-estrofe de Ovídio (Metamorphoseon I, 85-86), no latim original, e a outra (a terceira do poema) de Henri Boguet, em tradução inglesa (a escolha da tradução em detrimento do original francês é intencional, conforme a nota ao poema). Entre estas duas epígrafes-estrofes situa-se a estrofe de autoria seniana, constituída por uma série de invocações satânicas, em diversas línguas, incluindo um verso e meio em português escrito “às avessas, como cumpre” (Poesia – III, 253). De acordo com a disposição gráfica, o primeiro verso do poema é de Ovídio (o que pode ser confirmado consultando o índice de primeiros versos do livro), e o último de Boguet. Trata-se, pois, de um poema a três vozes (e será que a segunda voz é mesmo a do poeta?), ou poema de vozes entre vozes. (LOURENÇO, 2002, pp.80-81)[7]

Ressaltando a disposição tipográfica do poema, além da polifonia proporcionada pelas citações diretas, Fazenda Lourenço indica dois elementos bastante interessantes: o “caso único” de poema entre epígrafes e o fato de que elas estão incorporadas ao texto como pertencentes a ele, daí derivando o caráter polifônico. De fato, podemos entender os versos de Ovídio como a primeira estrofe, seguida pelas invocações demoníacas e, por fim, o trecho de Boguet como encerramento do poema. É significativo que, em sua nota explicativa, Sena não tenha comentado o conteúdo das citações, nem o fato de elas constituírem um texto multilíngue, uma espécie de micro-Babel que entrelaça as diversas vozes, inclusive com a presença de um “eu” que se torna explícito quando lemos o verso e meio ao contrário: “Vinde a mim que humanos me não valem”. Cuidadosamente inseridos nesta expressão (separando o período em três segmentos, “vinde a”, “que humanos” e “não valem”) os pronomes oblíquos são os únicos índices que revelam um sujeito poético por trás das invocações. Interessante notar que “mim” é palíndromo, servindo como espécie de espelho, chave para decifrar a invocação. Mas quem é esse eu? O outro estudo que mencionamos procura responder a essa pergunta. Trata-se da análise feita por Luciana Salles:

Não servindo Deus à poética seniana, o diabo é convocado – e particularmente neste poema, convocado em várias culturas, sob diversos nomes que lhe foram atribuídos por diversos povos em diversas épocas. (…)

A menos que o “vinde a mim que humanos me não valem”, de Jorge de Sena, não seja uma declaração do poeta que, ecoando as imprecações de “Camões dirige-se aos seus contemporâneos” (“Podereis roubar-me tudo/ (…)/ não importa nada/ que o castigo será terrível”) num momento de desgosto com a humanidade, estivesse buscando outra companhia mais compreensiva. Talvez, mascarado pela escrita em espelho, estivesse ali no poema um apelo do próprio Deus, exaurido pela decepção com o homem, assim como se o próprio Camões ameaçasse seus ladrões no poema das Metamorfoses. (SALLES, 2009, pp.80-81)[8]

Seria então o próprio poeta se inserindo sorrateiramente no texto? Ou, mais radical ainda, Deus quem clamasse a companhia de outras divindades, uma vez que o homem o decepcionara e, para não ficar sozinho na imensidão do universo, precisou chamar quem havia rejeitado há muito tempo? Nesta leitura, a invocação é o apelo ao diálogo, à convivência com o outro, o diferente, e o sujeito que invoca é, talvez, um Deus-poeta, falando aos humanos (e não só) por meio de suas palavras enigmáticas e misteriosas, sempre envoltas em uma atmosfera sagrada.

Por sinal, ao retomarmos o livro de Huizinga, encontramos no referido capítulo sobre o jogo e a poesia o seguinte: “Toda poesia tem origem no jogo: o jogo sagrado do culto, o jogo festivo da corte amorosa, o jogo marcial da competição, o jogo combativo da emulação da troca e da invenctiva, o jogo ligeiro do humor e da prontidão.” (HUIZINGA, 1980, p.143). Ou então “para a expressão de coisas solenes ou sagradas, a poesia é o único veículo adequado.” (idem, p.142). Se de fato esse eu é de um Deus-poeta, também podemos pensar que é um Deus-jogador. Aquele que fala através de enigmas, cujo nome é sua própria condição divina (não sendo um deus, mas o Deus), e que por isso mesmo proporciona as vias de comunicação com o sagrado, ou seja, estabelece o diálogo por meio de um jogo de decifrações.

Pensando nesta forma poética como um enigma, outra passagem de Homo ludens se mostra interessante:

O enigma é uma coisa sagrada cheia de um poder secreto e, portanto, é uma coisa perigosa. (…) A vida do jogador está em jogo. Um corolário disto constitui a formação de um enigma que ninguém consiga resolver como sendo considerada a mais alta manifestação de sabedoria. (HUIZINGA, 1980, p.123)

E, mais adiante,

As regras são de ordem gramatical, poética ou ritualística, conforme o caso. É preciso conhecer a linguagem secreta dos iniciados e saber o significado de todos os símbolos – roda, pássaro, vaca, etc. – das diversas categorias de fenômenos. (HUIZINGA, 1980, p.124)

O enigma é sagrado. As regras de decifração podem variar, sendo inclusive de ordem poética. É necessário conhecer uma linguagem secreta, de iniciados. “A vida do jogador está em jogo”. O limite disso, em termos de interpretação de poesia, é correr o risco da ininteligibilidade. Se o jogador não tomar cuidado, acabará por ser consumido pelo poema, perdido entre a multiplicidade de leituras possíveis. O enigma diante de nós, o de “Homenagem a Sinistrari”, é algo perigoso. E, justamente por isso, não pretendemos uma interpretação absoluta. No entanto, algumas pistas deixadas pelo próprio Sena nos permitem traçar um caminho que desemboca em “achados” e “perdidos”. Os achados são peças que conseguimos decifrar com alguma segurança e os perdidos são as questões que ainda levantamos sem ter uma explicação razoável para elas.

Por exemplo, o verso em meio ao contrário não é uma exclusividade deste poema. Parece que Jorge de Sena tinha um gosto particular pelos reflexos e inversões. Podemos citar, a título de ilustração, o trecho do conto “A razão de o Pai Natal ter barbas brancas”: “Ora, o diabo percebe tudo ao contrário, e ficara portanto a saber a verdade.” (SENA, 1984, p.20)[9]; ou então a invocação satânica em O físico prodigioso: “Sanctus e sutcnas, sanctus e sutcnas” (SENA, 2009, p.110)[10]; ou ainda uma visão sociopolítica, expressa em carta a Sophia de Mello Breyner Andresen a respeito da guerra colonial que estourava em África: “Pensar o contrário em tudo é sempre o mais seguro.” (SENA e SOPHIA, 2010, p.48)[11]. Além disso, o próprio poema de epígrafe à seção II de Exorcismos, na qual encontramos “Homenagem a Sinistrari”, de Morgenstern, intitulado “Canção noturna dos peixes”, de aspecto inventivo, experimental, por ser composto apenas de símbolos indicativos de sílabas breves e longas, está invertido. Desse modo, a noção de avesso parece atravessar a obra seniana tanto poética quanto ficcional e refletir uma concepção de mundo dupla, que não se contenta em pensar apenas de um jeito, mas a partir dos contrários.

Não só isso, como um dos grandes achados deste poema é o critério segundo o qual os demônios foram escolhidos. De fato, todos os nomes invocados possuem alguma relação com o erotismo, sendo ou divindades eróticas, fálicas, ou representantes da fertilidade, e, derivado disso, do começo. É digno de nota perceber que não só há entidades que representam a heterossexualidade, como também há as que representam a homossexualidade e a transexualidade. O próprio livro citado no título do poema, “De daemonialitate”, é uma obra que tem como principal assunto o estudo de um tipo de heresia diferente da bestialidade (relações entre humanos e animais) e da sodomia (relações entre humanos do mesmo sexo). A “demonialidade” se daria quando uma pessoa tivesse relações sexuais com um cadáver animado por um íncubo ou súcubo, demônios sexuais tentadores. Assim, é como se todas as entidades invocadas o fossem com o objetivo de ir contra essa normativa clerical, de afrontar essa concepção cristã de prazer sexual como sinônimo de pecado. Daí que surge a interrogação seguinte: quem foi Sinistrari? Não há qualquer menção a ele na nota explicativa e tampouco a respeito desse livro. De fato, este é o nome de Ludovico Maria Sinistrari, padre de Ameno e estudioso da Igreja Católica. No entanto, suas obras são pouco conhecidas, principalmente quando comparadas a livros da Inquisição bem mais populares, como o Martelo das Feiticeiras e, particularmente, “De Demonialitate” permaneceu desconhecido até o século XIX, quando um editor de nome Isidore Liseux comprou um exemplar numa velha livraria de Londres em 1872, sendo publicado apenas em 1875, conforme ele narra num prólogo ao livro (cf. SINISTRARI, 1879, p.V)[12].

É aí que algumas relações numéricas começam a se desenhar. Primeiramente, o livro de Jorge de Sena é de 1972, exatos cem anos após a descoberta de Liseux. No entanto, o poema é datado de 1970, sem indicação nem de dia nem de mês, semelhante a vários poemas de Sequências, o que nos sugere que “Homenagem a Sinistrari” possa ter sido composto no mesmo período. Ainda assim, o fato de o poema ser publicado em um livro de 1972 é significativo. Indo mais adiante, percebemos um destaque esquisito às datas de nascimento e morte de Sinistrari, no título do poema, algo incomum e, até onde sabemos, único na poética de Jorge de Sena.

Para entendermos que tipo de relações podemos estabelecer com essa data, cabe agora investigar a citação final do poema, supostamente retirada do livro de Boguet, An Examen of Witches, publicado em 1602. No entanto, o que talvez seja mais interessante é o fato de o trecho citado não pertencer a Boguet, mas ser parte do depoimento de uma bruxa escocesa, Isobel Gowdie, tomado em 1662, portanto sessenta anos após o livro de Boguet e quarenta e três anos após a sua morte. Como explicar, então, essa discrepância? Teria Jorge de Sena cometido um equívoco? Não nos parece plausível, uma vez que seu caráter criterioso e rigoroso é bem conhecido. Isso nos reconduz à nota explicativa, quando ele diz que utilizou intencionalmente a tradução inglesa. Pois é numa edição inglesa, editada e introduzida por Montague Summers, que encontramos uma nota (cf. BOGUET, 2009, p.262)[13] em que é citado o depoimento de Isobel, com as exatas palavras e uma ortografia ligeiramente modificada da que aparece no poema seniano. O mais provável, dessa forma, é que Sena tenha se valido desta edição para construir o seu jogo testemunhal: fazer com que uma silenciada da História possa falar através do silenciador, subvertendo, assim, o próprio texto de Boguet, ele próprio conhecido como um impiedoso perseguidor de bruxas, não poupando nem crianças da fogueira. Nesse caso, a polifonia atinge níveis ainda mais inesperados. O texto traduzido (portanto a duas vozes) se multiplica quando uma voz fala através de outra, confluindo, desse modo, inquisidor, bruxa, escritor, tradutor e poeta, já que o trecho está num poema, que por sua vez congrega a voz clássica de Ovídio e todo um panteão erótico pagão representando diversas culturas.

Uma outra coisa interessante, justamente em relação à disposição gráfica do poema, é que ele se divide em três estrofes, totalizando catorze versos, se contarmos as citações. Sabemos que Sena era um habilidoso sonetista, sendo prova disso o livro As Evidências (1955), no qual há vinte e uma variações da forma soneto, incluindo algumas pouco conhecidas. Além disso, tanto os poemas a Afrodite quanto poemas assêmicos presentes em Peregrinatio ad loca infecta, intitulados “Na transtornância” e “Anflata cuanimene” são sonetos, indicando uma certa predisposição de Sena em trabalhar a inventividade linguística por meio de sonetos. Portanto, a ideia de que esse poema se estrutura em três estrofes com catorze versos, numa organização semelhante à de um soneto, ainda que com diferenças visíveis, não nos parece absurda, e inclusive proporciona reflexões importantes a respeito das relações internas que se trançam ao longo dos versos.

Agora, começamos a adentrar o terreno dos “perdidos”. Não passará despercebido a um leitor atento que as datas que mencionamos possuem uma estranha familiaridade. Justapondo-as, temos o livro de Boguet em 1602, o nascimento de Sinistrari em 1622, o depoimento de Isobel em 1662.  Jogando com os números, vemos que Sinistrari viveu 79 anos (1701-1622=79); sabemos que 7+9=16 e que 9-7=2, ou 02; juntando os dois resultados temos 16 e 02, ou 1602, precisamente a data do livro de Boguet. Se multiplicamos 7 por 9, temos 63, número interessante, uma vez que 6+3=9, assim como 1+8, de 18, número que é produto da multiplicação de 6 por 3, ou 6+6+6, no qual vemos mais claramente o famigerado “número da Besta”. Por sinal, é o próprio Sena quem comenta que 18 costumava ser usado para se referir ao 666 sem a carga negativa advinda desse número. 18 também é a soma dos algarismos de 1872, data em que Isidore Liseux alega ter encontrado o exemplar de “De Daemonialitate”. Uma constante inquietante nessas relações numéricas é a presença do 6 e do 2, não só nas datas que elencamos, mas nas operações que fazemos com elas. Por exemplo, em 1622, nascimento de Sinistrari, quando isolamos os números das laterais, 1 e 2, temos 12, que é precisamente o produto dos números do meio, 6 e 2. Quando olhamos a posição que o poema ocupa no livro como um todo, vemos que ele é o 32º, sendo 3×2=6; e é o 13º poema da 2ª parte, sendo 13×2=26, que é 62 invertido. É digno de nota, ainda, que Isidore Liseux alega ter comprado o livro de Sinistrari pelo valor de 6 pence (SINISTRARI, 1879, p.VIII). Todo esse jogo numérico parece nos colocar num labirinto em que cada nova combinação fornece um resultado ao mesmo tempo aleatório e coincidente. Qual a razão para a recorrência do 6 e do 2, ou do 9 e do 18? Há uma razão? Ou ela é parte do enigma, do jogo que tem um fim em si próprio, não precisando, para isso, de uma utilidade? Parece-nos que este tipo de informação nos revela um entendimento da poesia seniana como uma estrutura bem organizada e construída de modo que não se chega facilmente a uma resposta ou respostas possíveis. O desafio ao leitor é constante, sempre convidando-o a revisitar os mesmos versos em busca de novas relações, novas coincidências, intuições que nos fazem ir além do significado imediato das palavras. De certa forma, interpretar um poema repleto de termos desconhecidos coloca a questão de interpretar os poemas em que entendemos perfeitamente as palavras, ou seja, decodificamos mais facilmente o que está registrado. Mas, e se for de outra forma? E se essas palavras que julgamos conhecer bem contiverem novos sentidos em potencial, seja pela associação com outras fonicamente semelhantes, ou mesmo com as suas raízes etimológicas que acorrem para desenvolver a leitura em novos níveis?

O poema “Homenagem a Sinistrari” se apresenta como um enigma ao leitor, desafiando os seus métodos de interpretação e seduzindo-o para leituras desviantes. É preciso “entrar no jogo” das referências para, aos poucos, deslindar alguns dos seus aspectos mais complexos. No entanto, em se tratando de um jogo demoníaco, nenhuma solução será definitiva e o texto sempre apontará para outro lado, assumindo um novo disfarce e nos convidando a pensar o contrário do que havíamos pensado antes, já que o “contrário é sempre mais seguro”.

NOTAS

1 SENA, Jorge de. Poesia II. 2ª ed. Lisboa: Edições 70, 1988.

2 SENA, Jorge de. Poesia III. 2ª ed. Lisboa: Edições 70, 1989.

3 SENA, Jorge de. Sequências. Lisboa: Moraes Editores, 1980.

4 SENA, Jorge de. Visão Perpétua. Lisboa: Edições 70, 1989b.

5 HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. Trad. João Paulo Monteiro. São Paulo: Perspectiva, 1980.

6 SENA, Jorge de. Poesia I. 3ª ed. Lisboa: Edições 70, 1988.

7 FAZENDA LOURENÇO, Jorge. “Notas sobre a Citação na Poesia de Jorge de Sena com Algumas Observações Afins”. In: _______. O Brilho dos Sinais: Estudos sobre Jorge de Sena. Porto: Edições Caixotim, 2002. pp. 73-107.

8 SALLES, Luciana. “O Minotauro e a Hidra: Poesia e Mitologia ”. In:_______. Poesia e o diabo a quatro: Jorge de Sena e a escrita do diálogo. São Paulo: Livronovo, 2009. pp. 47-82.

9 SENA, Jorge de. “A Razão de o Pai Natal ter barbas brancas”. In: Antigas e Novas Andanças do Demónio. Lisboa: Edições 70, 1984.

10 SENA, Jorge de. O físico prodigioso. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009.

11 ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner; SENA, Jorge de. Correspondência 1959-1978. Lisboa: Guerra & Paz, 2010.

12 SINISTRARI, Ludovico Maria. Demoniality or Incubi and Succubi. Now first translated into English With the Latin Text. Paris: Isidore Liseux, 2. Rue Bonaparte, 1879.

13 BOGUET, Henry. An Examen of Witches; edited and with an introduction by Montague Summers. New York: Dover Publications, 2009.