Ensaios de Sena, de Jorge Vaz de Carvalho

Lucas Laurentino
(UFRJ/CNPq)

Fonte: https://www.livrariasnob.pt/product/ensaios-de-sena

Quando nos debruçamos sobre a fortuna crítica de Jorge de Sena, duas constatações emergem: ela vem se avolumando consideravelmente nos últimos anos, com a publicação contínua de artigos, dissertações e teses sobre o autor ou pondo-o em diálogo com outras figuras literárias e artísticas; e, mesmo assim, ela ainda se mostra insuficiente para dar conta da sua vasta produção escrita, com uma significativa quantidade de textos à espera de análises mais aprofundadas.

Os estudos senianos foram bastante impulsionados recentemente, com o centenário de nascimento do autor, que proporcionou números especiais de revistas, colóquios e seminários dedicados à sua obra. Destacamos aqui dois importantes frutos desse período de comemorações, os livros Sena & Sophia: centenários (2020), organizado por Gilda Santos, Luci Ruas e Teresa Cristina Cerdeira, e A crítica de Jorge de Sena (2022), organizado por Joana Matos Frias e Joana Meirim. Ambos reuniram as versões escritas de palestras e comunicações proferidas nos eventos em homenagem ao escritor. No primeiro caso, um colóquio no Rio de Janeiro que envolveu o Real Gabinete de Leitura e a Cátedra Jorge de Sena, da UFRJ. Como se vê pelo título, o evento comemorou conjuntamente os centenários de Jorge de Sena e de Sophia de Melo Breyner Andresen. Dessa forma, os ensaios do livro versam sobre os poetas ou propõem diálogos entre eles. Já no segundo caso, um colóquio ocorrido também em 2019, dessa vez no auditório da Biblioteca Nacional de Portugal, com o intuito de fomentar estudos sobre o ensaísmo seniano, vertente menos estudada da sua produção. Assim, os ensaios resultantes se debruçam sobre os estudos de Sena a respeito de Pessoa, Camões, Shakespeare e outros autores, além de questões de teoria literária e as relações entre as literaturas brasileira e portuguesa.

Do centenário para cá, também não podemos nos esquecer dos livros Jorge de Sena, 939 Randolph Road: exílio, erotismo, escatologia (2021), de Jorge Fazenda Lourenço, lançado pela editora Documenta, que reúne ensaios de um dos mais proeminentes estudiosos da obra seniana, partindo, como o título indica, do último endereço do poeta, em Santa Bárbara, na Califórnia; e Minotaur, Parrot, and the SS Man: essays on Jorge de Sena (2021), que reúne alguns ensaios do estudioso e amigo de Sena George Monteiro, contando com introdução de outro eminente seniano, Francisco Cota Fagundes.

Ensaios de Sena (Documenta, 2023), de Jorge Vaz de Carvalho, é a obra mais recente a integrar a biblioteca de estudos senianos. O autor, por sinal, ganhara os prêmios Jorge de Sena (2010) e Pen Clube Português (2011) com outro livro dedicado ao poeta das Metamorfoses, intitulado Jorge de Sena – Sinais de fogo como romance de formação, decorrente da sua tese de doutorado defendida em 2010. O presente volume, por sua vez, reúne textos sobre o poeta escritos segundo diferentes motivações ao longo dos últimos quinze anos, aproximadamente. Conforme consta na introdução do livro, cada ensaio é fruto de uma ocasião em que o pesquisador teve a oportunidade de analisar aspectos da poesia, da ficção e da obra crítica de Jorge de Sena. Aliás, dois dos textos também constam nas coletâneas comemorativas supracitadas (respectivamente, “Jorge de Sena e as cores da liberdade” e “Jorge de Sena e os realismos”).

Assim, o volume reúne dez ensaios, além da introdução: cinco dedicados à poesia, cinco dedicados à prosa e um dedicado à atuação político-jornalística de Sena no Portugal Democrático. Os temas perpassam um poema dedicado a Mozart, a sempre tensa relação com a morte e a passagem do tempo, o conto “História do Peixe-Pato” e o romance Sinais de fogo. No entanto, o mais importante é perceber como os assuntos se comunicam através dos textos, como há recorrências significativas, a exemplo do poema “A morte, o espaço, a eternidade” que costuram os ensaios de modo a oferecer uma visão panorâmica, mas longe de ser superficial, da obra seniana.

“Jorge de Sena: il miglior fabbro” é uma verdadeira ode ao poeta. Sem descuidar do rigor crítico, Jorge Vaz de Carvalho defende que Sena é uma das personalidades literárias mais importantes do século XX, não só em língua portuguesa. Daí a reivindicação do ensaísta para fazermos, hoje, jus à grandeza do poeta, não só escrevendo sobre ele, mas principalmente lendo-o.

“As cores da liberdade”, por sua vez, argumenta como Sena, avesso à prática mais simplista de poesia engajada, propugnada por certas vertentes do neorrealismo, acaba por fazer, a seu modo, uma poesia altamente politizada após o 25 de Abril, desde a euforia do dia após até a melancolia dos descaminhos da revolução. No ano em que se comemora o cinquentenário da Revolução dos Cravos, trata-se de leitura obrigatória.

“Fantasias de Mozart, para tecla”, texto consideravelmente menor, mas não menos denso, elabora a respeito do respectivo poema seniano, que consta em Arte de Música, com o emblemático verso “Como/ foi possível que este homem alguma vez morresse?”. A resposta de Vaz de Carvalho sem dúvidas se mostra à altura do questionamento.

“A poesia, a arte, a imortalidade” aborda o complexo tema da morte e, em particular, o tratamento seniano da questão. O eixo do ensaio, como não poderia deixar de ser, é o poema “A morte, o espaço, a eternidade”, mas outros textos de diferentes autores e épocas são convocados a participar da discussão, oferecendo ainda uma perspectiva sobre o legado que o poeta deixa ao mundo para sobreviver à sua partida.

A seção “Poesia” se encerra com “Poéticas do envelhecer”, ensaio que, de certa forma, continua o anterior em outros termos. Nele, não é o evento da morte, mas o longo e muitas vezes doloroso processo de envelhecimento que é tratado. Tema trabalhado por filósofos e poetas desde a Antiguidade, o envelhecer é visto sob duas perspectivas opostas: a perda de potência do corpo e o ganho de experiências da vida.

Já a seção “Prosa” se abre com “Jorge de Sena e os realismos”, que tem por objetivo contrapor a visão seniana do conceito de realismo às noções mais tradicionalmente aceitas. Nesse movimento, destaca-se a relação íntima que o poeta estabelece entre a atitude teórico-crítica e a prática literária, uma vez que suas reflexões decorrem dos contos que escreveu, entendidos alguns como de um “realismo fantástico” e outros como de um “realismo absoluto”. Sinais de fogo, o romance inacabado, se enquadraria nesta segunda categoria, assim como os textos de Os grão-capitães, enquanto os contos de Andanças do demónio (as antigas e as novas) pertencem, em sua maioria, à primeira.

“Paisagem e humanismo” se detém no conto “Duas medalhas imperiais, com Atlântico”, de Andanças do demónio, explorando a dinâmica entre ficcional e biográfico, muito cara a Jorge de Sena. O ensaio percorre as três narrativas contidas no conto, destacando os procedimentos estéticos empregados pelo autor para construir seu relato e, a partir daí, demonstrando como Sena expressa sua visão política e ideológica sem cair na armadilha da denúncia social. Você pode conferir uma versão deste texto aqui.

O ensaio “A ‘História do peixe-pato’: um conto fabuloso” foca outro conto seniano, bem mais conhecido que o anterior. A proposta do texto é ler “A história do peixe-pato” “como uma transformação da realidade, contendo uma educativa ‘meditação moral’ acerca da bondade comunicativa dos afectos e os valores de respeito, simpatia e fraternidade que os seres são capazes de desenvolver entre si, face à ameaça que forças sinistras fazem pairar sobre as relações mais genuínas, sem que, todavia, elas fiquem impunes” (Carvalho, 2023, p. 99). Dessa forma, o ensaio trata o conto como uma narrativa exemplar, no melhor sentido do termo, uma meditação sobre as relações de afeto entre os seres e uma educação sobre a resistência às opressões.

Incipit vita nuova: romance de formação na Vita nuova de Dante Alighieri e em Sinais de fogo de Jorge de Sena” propõe, como indicado pelo título, uma comparação entre dois textos formativos, distantes entre si por alguns séculos, mas unidos através do conceito de Bildungsroman, segundo a tradição crítica iniciada por Karl Morgenstern a respeito do Wilhem Meister de Goethe. Este ensaio é um desdobramento da pesquisa de doutorado do autor, que teve por objeto precisamente o romance inacabado de Sena.

O último ensaio da seção “Prosa” de certo modo é uma continuação do anterior, pois também toma como objeto de análise Sinais de fogo, dessa vez articulando-o ao conceito de metamorfose, fundamental na obra seniana. Assim, o texto se propõe a observar “três tipos de metamorfose” no romance: “a da tradição literária, o Bildungsroman, em que o romance se insere; a ontológica do protagonista, ao desenvolver o processo de autoformação; e a da realidade inerente à prática da poesia, que Jorge descobrirá como o seu mais autêntico modo de ser” (Carvalho, 2023, p. 129).

Por fim, encerrando o livro, na seção “O intelectual”, o ensaio “O intelectual no exílio: Jorge de Sena no Portugal Democrático”. Nele, como a sublinhar a postura de Sena em todas as suas vertentes de atuação escrita, Jorge Vaz de Carvalho parte da concepção sartriana de intelectual para refletir sobre as participações mais diretas do poeta na vida política e social de seu país. Desde sempre um opositor ao salazarismo, Sena acaba por se ver obrigado ao exílio após a sua segurança em Portugal ficar altamente comprometida. Todavia, no período em que passou no Brasil, e mesmo depois, o autor nunca deixou de se preocupar com os rumos de sua terra natal e sempre que pôde achou maneiras de intervir no debate público. A principal delas foram os artigos no jornal Portugal Democrático, do qual participou entre 1959 e 1962. Você também pode conferir uma versão deste texto aqui.  

Em se tratando de um compilado de textos produzidos segundo diversas necessidades, o livro enfrenta o complexo desafio de estabelecer uma coesão entre os ensaios. Em obras deste tipo, corre-se o risco de cair em redundâncias ou de passar ao leitor a impressão de que os textos foram reunidos ao acaso. Felizmente, não é este o caso de Ensaios de Sena. Os textos, reunidos da maneira como estão, revelam a profundidade do diálogo estabelecido entre Jorge Vaz de Carvalho e Jorge de Sena, um movimento de pesquisa contínua, de constante revisitação e reflexão sobre os temas que interessam ao pesquisador. Tal como Sophia Andresen diz a Sena sobre Poesia I (“A sua poesia reunida vê-se melhor. O livro deu-me uma extraordinária impressão de grandeza”) podemos dizer o mesmo a respeito deste volume: os ensaios reunidos veem-se melhor. Multifacetados, como o autor que lhes serve de parceiro no diálogo, os ensaios compõem um prisma através do qual se pode adentrar a obra seniana a partir de diferentes perspectivas.

Por fim, destacamos que, além do indiscutível rigor crítico e analítico dos textos, reconhecemos uma escrita abertamente afetiva. Diz-nos o autor: “Este é um livro de profunda admiração”. Vemos claramente a paixão pela poesia, pela literatura e pela obra seniana, além da reivindicação, mais do que necessária, para que se reconheça o lugar de Jorge de Sena no cenário das literaturas de língua portuguesa e, mais ainda, da literatura ocidental. De fato, Jorge Vaz de Carvalho parece seguir a lição do próprio Sena e, movido por um genuíno amor à literatura, é capaz de produzir interpretações e reflexões a um só tempo carregadas de densidade e facilmente apreensíveis, fazendo com que o livro se torne leitura obrigatória a todos que se interessam pela obra do poeta e pela boa literatura.

Abaixo, reproduzimos um trecho da introdução, que consta na contracapa do livro:

“Este é um livro de profunda admiração.

Já disse e escrevi muitas vezes que considero Jorge de Sena, a par de Fernando Pessoa, o maior escritor e intelectual do século XX português. Escrevesse Sena em inglês (como Conrad ou Nabokov, poderia ter optado por um idioma falado por milhões, que lhe proporcionaria um número muito mais vasto de leitores, maior evidência nos meios literários internacionais e fácil abertura de portas a distinções), seria decerto reconhecido a par dos nomes admiráveis das letras mundiais, porque não lhes fica atrás. Em Portugal, e a despeito dos estudos que lhe vão sendo dedicados, tal grandeza continua a não ser suficientemente evidenciada, sobretudo no que mais importa a um escritor, a leitura frequente e o conhecimento amplo das obras.

Quantas literaturas se podem orgulhar de reunir na mesma década, a de 70 do século XX, poetas de diversas gerações e com o valor estético de Nemésio, Mourão-Ferreira, Sena, Sophia, Eugénio de Andrade, Carlos de Oliveira, Cesariny, Ramos Rosa, O’Neill, Herberto Helder, Ruy Belo, Neto Jorge, Fiama, Gastão, Júdice, Franco Alexandre, Fernandes Jorge, Magalhães? Gostaria de escrever sobre todos e outros mais. Fico-me por agora pelo melhor deles.”