Neste artigo, Francisco Saraiva explora as relações entre a poesia de Jorge de Sena e Ruy Belo a partir de seus aspectos metapoéticos. Isso envolve uma discussão sobre a poesia na modernidade, a construção do sujeito poético e a percepção da escrita enquanto epitáfio. Assim, o autor elabora uma interpretação que enfatiza a poesia enquanto sobre-vivência, tanto em sua dimensão histórica quanto em sua dimensão ontológica.
Francisco Saraiva Fino
CEL – Universidade de Évora, Portugal
1 – Introdução
Iniciamos este texto sobre o epitáfio e a inscrição do sujeito no poema com uma breve reflexão, a partir de ideias sugeridas pela leitura de quatro versos de “Little Gidding”, a conhecida sequência final de Four Quartets de T. S. Eliot:
Toda locução e frase é um fim e um começo,
Todo o poema um epitáfio. E qualquer acto
É um passo para o cepo, para o fogo, pela garganta do mar abaixo,
Ou para uma pedra ilegível: e é daí que partimos (ELIOT, 2004, p. 91).[1]
Os versos anteriores colocam-nos diante de uma perspectiva de comunicação poética em que o epitáfio recebe, por metonímia, a substância do poema no que este contém de condição resistente, iluminante e dinâmica. Do poema, todo epitáfio colhe um princípio de transcendência e de libertação em relação ao oblívio, à erosão, à imobilidade, vendo-se convertido à uma forma de resiliência que se torna o fim e o princípio de inscrição de uma memória individual no espaço e no tempo. Como acentuava Alastair Fowler (1982, p. 76), qualquer que seja o material em que se inscreve, o epitáfio, sinal da morte simultaneamente ativo e contemplativo, não é pedra ou lápide nua em absoluto, ao contar com o registro frequente de um nome próprio, embora, como o mesmo autor também elucidou, esse gesto não implique necessariamente a redutibilidade ao real através da ligação inequívoca a um sujeito empírico.
Ao adequar-se ainda à ideia de materialidade perene sugerida no provérbio latino verba volant, scripta manent, o epitáfio parece contar teleologicamente com a transcendência da memória no tempo através de um ato de desafio ou perturbação da ordem natural, se entendermos vislumbrar a inscrição na superfície pétrea como um gesto de violência contra a natureza: o lapicida cinzela a pedra nua preparada de antemão através do atrito e abandona-a ao tempo e aos elementos, até à redescoberta ocasional por um ou vários viandantes que a tomarão como objeto de meditação, conforme Gercino e Poussin sugeriram nas pinturas conhecidas sob o título Et in Arcadia ego. Esse gesto de violência, por sua vez, tende a enfatizar, numa perspectiva linguística, a diferença do homem face à afasia da natureza, processo que, no século XVIII, Condillac, Rousseau (e, poeticamente, Hölderlin) haviam assinalado nas observações em torno do grito e das condições iniciais da origem heroica das línguas (KRISTEVA, 1988, p. 206-255). Com a invenção da escrita, a inscrição na pedra prosseguirá o projeto de dar a ver a linguagem e perpetuá-la como característica intrínseca do humano; no caso da inscrição no epitáfio, ele concretiza-se numa superfície simbólica que, por si mesmo, presentifica, em permanência, a morte. De fato, o epitáfio coloca em evidência o paradoxo do desafio feito ao oblívio, mas na medida de uma superação sempre condicionada à contingência da existência humana e, concomitantemente, ao alcance imperfeito das vibrações do grito heroico que a natureza permite transcender no tempo e que o poeta, como veremos, busca na sua época reconstituir através da poesia.
Recordemos a esse propósito que Giambattista Vico (1725), em Scienza Nuova, encarava a formação da língua poética ou heroica num momento pós-articulatório, posterior à primeira língua divina (hieroglífica), esta em permanente desafio hermenêutico no seu mutismo cheio de possibilidades[2]. O mesmo autor estabelece a coincidência entre o nascimento da escrita e o surgimento da língua poética, a cargo dos poetas teólogos, na idade heroica, num contexto de expressão da natureza do humano enquanto criador da palavra poética. Esta conclusão segue-se às observações de Vico sobre o caráter essencialmente poético da natureza primitiva do homem (VICO, 2005, p. 916) numa idade em que a imaginação e o instinto não se encontrariam ainda submetidos aos imperativos da razão, tendo a criação poética decorrido no âmbito de uma falha ou insuficiência da compreensão racional dos fenômenos naturais que se mostravam à comunidade e que os poetas teólogos recriariam com a invenção dos tropos (com destaque para a metáfora). Desse modo, a linguagem colocava-se à disposição do grupo, como um bem cuja preservação na memória coletiva e na conservação da comunidade representava um forte motivo legitimador. Sendo nesta acepção uma “palavra mitográfica” (“qualquer metáfora pode ser tomada por uma curta fábula”, citado em KRISTEVA, 1988, p. 202), o seu valor civilizador inicial implicaria a legitimidade da sua resistência ao olvido e, do mesmo modo, a conservação das condições iniciais. No caso do epitáfio poético, a relação mitográfica entre a escrita, a força criadora da palavra poética e o intuito de conservação são destacadas por Samuel Johnson (1740), no estudo “An essay on epitaphs”, quando reconhece a grande probabilidade do seu nascimento em simultâneo com a arte da escrita e o seu importante valor testemunhal e exemplar quanto à preservação das boas ações humanas em proveito do seu progresso: “A natureza e a razão ditaram a todas as nações que preservar as boas ações do esquecimento é do interesse e é dever da humanidade” (JOHNSON, 1825, p. 237, tradução nossa)[3]. Neste e noutros passos, Samuel Johnson não exclui a existência de inscrições com outros propósitos (a sátira é o mais citado), embora estes sirvam para confirmar a importância da perpetuação da memória de todos os que constituem exemplos de virtude a imitar e cuja perfeição depende sobretudo do domínio de uma arte compositiva baseada em princípios racionais: “Examinar, por conseguinte, em que consiste a perfeição dos epitáfios e quais as regras que devem ser observadas ao compô-los será, pelo menos, tão útil quanto outras investigações críticas” (JOHNSON, 1825, p. 238, tradução nossa)[4].
2.
As condições referidas anteriormente não serão objeto de ruptura na modernidade, que irá antes redescrevê-las de acordo com as expectativas e angústias do novo homem perante uma ordem de transcendência livre do longínquo arbítrio demiúrgico ou das aporias do pensamento positivo quanto ao seu papel na sociedade. Num contexto como este, o epitáfio poético poderá acumular a sua tradicional função de preservação exemplar da memória do herói de uma comunidade com a apreciação de outras potencialidades, algumas decorrentes do aprofundamento da sua natureza contemplativa; afinal, o epitáfio circunda a morte, mas não a evita, faz dela mensagem e testemunho meditativo, abre-se ao passado que é memória da linguagem, e não apenas memória pessoal. A sua ação é a da permanência ou persistência da memória de uma época anterior ao grito que o indivíduo se esforça por recaptar e que lhe é anterior, altamente complexa e fluida, porém comunicável. O epitáfio não surge como suporte ou medium de um ato ilocutório diretivo (comunicação do que se pretende fazer no futuro, rezar pela alma ou agir exemplarmente), mas é essencialmente indireto, por implicar a capacidade de o alocutário nele reconhecer a redescrição de um sujeito individual através de mundividências assentes em diferentes experiências da linguagem. Nesse ponto, torna-se também um lugar transitivo, de acesso, entre outras circunstâncias, à permanência objetiva do mundo, tal como o poema constitui acesso e difusão de perspectivas acerca do mundo e da sua memória, sendo na transitividade destas variáveis com o leitor que o sujeito se reconstitui e livremente sobre-vive, tal como a chama breve e lassa das experiências meditativas da comunidade seiscentista de “Little Gidding”, que incluíam a observação do “espírito das rosas” libertado pelo fogo[5].
Aceder ao sujeito textual através do epitáfio, sob a perspetiva eliotiana de autossacrifício da personalidade, implicará a aceitação de um princípio de permanência transmutável da memória condicionado pelo esbatimento (mas não anulação) do sujeito empírico. Nesse sentido, tenderá à participação na inscrição do poema-epitáfio, formando com ele uma unidade circular de linguagem indistinta, quanto a princípio ou fim, por nela se privilegiar a constante plurissignificação e polivalência de sentidos, deflagrada pela instância do leitor. No epitáfio literário, a interpelação clássica ao leitor, pressuposta ou diretamente invocada, adquire especial importância, por se verificar que é pela sua interação com o texto que o autor finalmente surgirá na sua representação funcional e figural. Do aprofundamento comunicativo resultante, do qual o poema é já inscrição realizada de relações (comunicação, leitor, texto, autor, memória, tradição), as irradiações transcendem o fechamento arquitextual da forma-epitáfio e abrem-se em feixes de aproximações a outras formas potenciadoras de comunicação e de reflexão, como o retrato, a elegia, o apontamento metapoético, a paródia e a sátira.
3.
As experiências que consideraremos em seguida, a partir de poemas de Jorge de Sena e Ruy Belo, mostram-se, entre outros igualmente pertinentes, como exemplos da potenciação do autoepitáfio, termo que escolhemos para aproximar a projeção pelo texto da sobre-vivência da figura autoral, e o distinguir de outras formas mais concordantes com a tradição clássica das inscrições e homenagens, localizáveis como experiências na literatura portuguesa desde o século XVI e, posteriormente, acolhidas em poemas de Fernando Pessoa e de Eugénio de Andrade, entre outros autores.
O primeiro poema foi incluído por Jorge de Sena na obra Fidelidade (1958) e deverá ser lido na sua relação interna com as restantes composições da mesma, profundamente voltadas para a meditação sobre o tempo, a ausência e a morte:
EPITÁFIO
De mim não buscareis, que em vão vivi
de outro mais alto que em mim próprio havia.
Se em meus lugares, porém, me procurardes
o nada que encontrardes
eu sou e minha vida.
Essas palavras que em meu nome passam
nem minhas nem de altura são verdade.
Verdade foi que de alto as desejei
e que de mim só maldições cobriam.
Debaixo delas a traição se esconde,
porque demais me conheci distante
de alturas que de perto não existem.
Fui livre, como as águas, que não sobem.
Pensei ser livre, como as pedras caem.
O nada contemplei sem êxtase nem pasmo,
que o dia a dia
em que me via
ele mesmo apenas era e nada mais.
Por isso fui amado em lágrimas e prantos
do muito amor que ao nada se dedica.
Nada que fui, de mim não fica nada.
E quanto não mereço é o que me fica.
Se em meus lugares, portanto, me buscardes
o nada que encontrardes
eu sou e minha vida (SENA, 1988, p. 28).
Previamente à atitude de intervenção, a fidelidade a um destino, como refere no poema homônimo da série, implica um distanciamento por parte do sujeito quer através da solidão, quer de uma vida-outra (“E os destinos vivem-se / como outra vida. Ou como solidão.”, SENA, 1988, p. 18-19), a iniciar no momento da inscrição da palavra poética, que é o da suspensão do próprio tempo, como assinalara em poema anterior, “A Cidade Feliz”, em versos como “Falando todavia, tudo se suspende; / e que não existe para sempre mesmo depois das palavras?” (SENA, 1988, p. 17). Apesar desta referência, viver uma vida-outra não pressupõe necessariamente uma experiência de outramento como a que percorre, por exemplo, a obra pessoana, mas antes o regresso a um mundo interior que é um outro da dimensão empírica do sujeito e que lhe permite a conservação da unidade, aspecto de especial destaque na poética seniana[6]. Em simultâneo, este regresso põe-no ao alcance de experiências diferenciais que dão conta da fidelidade a uma atitude que parte de uma meditação testemunhal da linguagem poética em que esta se converte, à vez, testemunha, numa existência prévia e exterior ao sujeito (mas que lhe é apesar de tudo consubstancial), e testemunho, mercê da ação transmutadora do poeta. A linguagem diz, comunica e comunica-se, mesmo que a sua relação com o sujeito se esclareça no polo dialético negativo. Composições, como “O Poema” (SENA, 1988, p. 22) ou “De Poesia Falemos” (SENA, 1988, p. 23), aprofundam metapoeticamente esta relação dialética em versos, como “Contemplo inutilmente a voz que surge / e é tão inútil como contemplá-la. / Inútil escrevê-la, dar-lhe a fala / mansa e provável com que procurá-la / por entre ecos urgentes e confusos” (SENA, 1988, p. 23), os quais manifestam a alusão tematizada em outros momentos à linguagem considerada unidade tensa no seu grau zero, irregular, encerrando a potencialidade de dizer a verdade e a sua negação.
Fidelizar o sujeito, será também fidelizar a palavra poética ao seu pensamento, ou seja, tomar a “illegible stone” do poema de T. S. Eliot, citado no início deste estudo, como ponto de partida para a transmutação e depuração da linguagem ao serviço do desejo de inscrição do sujeito no mundo. A irredutibilidade da linguagem poética a todos os discursos, porém, impõe a convivência com essa tensão, aspecto que Luís Adriano Carlos coloca em destaque, ao constatar que “a fidelidade não significa obediência e que a autêntica fidelidade criadora, cuja natureza é testemunhal, transcende radicalmente o prescritível” (CARLOS, 1999, p. 181). Fidelizar a palavra poética a um pensamento, implica, desse modo, inscrevê-la com o sujeito na lápide nua onde a morte de ambos é encenada tensionalmente naquele que passa a constituir-se como espaço simultâneo de mediação e de meditação. Não deixa de ser sugestivo, como o mesmo investigador apontou, que um dos títulos provisórios desta obra, precisamente “Epitáfios e outros Poemas”, sirva para acentuar esta relação.
Em “Epitáfio”, que poderemos ler como conclusão da sequência “Tríptico do Nada” (SENA, 1988, p. 26-28), confirma-se a negatividade do mundo na ficcionalização da morte do sujeito, ensaiada já em poemas como “Sexta-feira” (SENA, 1988, p. 24-25) e na derradeira parte, o conjunto apontado: “Morri. Que nesta procissão tão natural de mortos / ida connosco e onde vamos” (SENA, 1988, p. 27); por sua vez, os primeiros versos de “Epitáfio” destacam o signo das alturas como espaço privilegiado de contemplação – “De mim não buscareis, que em vão vivi / de outro mais alto que em mim próprio havia” (SENA, 1988, p. 27) –, a par do assinalar de valores éticos, como a fidelidade à verdade ou a um mundo desejado de verdade em oposição à sua hostilidade permanente, cujo desafio havia já sido veementemente proposto em epitáfio anterior, escrito em 1938 e publicado em Post-Scriptum II (1º volume), em versos como “Eles bem sabem… / o que é, é que uma pessoa assim irrita!…” (SENA, 1985, p. 201).
Já no final de “Tríptico do Nada”, o sujeito esclarecia-se como “Substância do mundo, inerte e velocíssima: / como ela sou enfim, / morto que estou e com o amor em mim” (SENA, 1988, p. 28); aqui, a morte ficcional age classicamente como libertação ou metamorfose alquímica, no sentido de defender a fidelidade ao mundo a partir de um princípio de liberdade cuja encenação prossegue no poema e que poderá corresponder ao que tradicionalmente Samuel Johnson considerava o melhor assunto de um epitáfio, “a private virtue” (JOHNSON, 1825, p. 243). A transcendência situa-se num limbo sem referência mais concreta que a de uma sede da vontade, não se operando em retorno, porquanto o poema assume o devir na imagem aquática – “Fui livre, como as águas, que não sobem” (SENA, 1988, p. 28) –, fazendo antes supor a transcendência a apoiar-se no testemunho imanente do mundo do qual também as palavras advêm e fazem parte. A tensão manifesta-se na falta de confiança absoluta na sua fidelidade à expressão, uma vez que as suas limitações são tão paradoxais como o sujeito que se desejava, como no verso citado, substância “inerte e velocíssima”. Negando-lhes a distância própria de uma dimensão arquetípica, a linguagem poética compreende a condição humana do sujeito e, como tal, eticamente comprometida e subordinada à crítica, em versos como “Essas palavras que em meu nome passam / nem minhas nem de altura são verdade. / Verdade foi que de alto as desejei / E que de mim só maldições cobriam / Debaixo delas a traição se esconde, / porque demais me conheci distante / de alturas que de perto não existem” (SENA, 1988, p. 28).
Se, como concluía Luís Adriano Carlos, “não há maneira de dizer a fidelidade sem a fidelidade do dizer” (CARLOS, 1999, p. 180), este dilema ético não apresenta outra solução de continuidade que não remeta para o testemunho de uma peregrinação dependente da contingência do humano e da linguagem, em que a meditação contínua desempenhe a função depuradora das imperfeições de ambos. Como de resto referia, na segunda parte de “Mensagem de Finados” (primeiramente “Pentacórnio”), a verdade será “Apenas ser-se humano além de nós; / ouvir e ver, e não ouvir, não ver, / quanto de nós e de outros nos divida. / Porque divisos somos na unidade extrema: / muitos em nós como nos outros muitos. / Mas de verdade e de erro nos unimos” (SENA, 1988, p. 47).
4.
Quanto à segunda experiência de autoepitáfio, com a qual Ruy Belo rematava Homem de Palavra[s] em 1970, o privilégio concedido à sobre-vivência do sujeito, na sua inscrição no poema, deverá ser lido nesta poética como espaço de habitação, para o qual o epitáfio concorrerá enquanto espaço-forma-simulacro potenciador da relação entre aquele e a palavra poética:
Cólofon ou epitáfio
Trinta dias tem o mês
e muitas horas o dia
todo o tempo se lhe ia
em polir o seu poema
a melhor coisa que fez
ele próprio coisa feita
ruy belo portugalês
Não seria mau rapaz
quem tão ao comprido jaz
ruy belo, era uma vez (BELO, 2009, p. 364)
O sentido proposicional que Gastão Cruz observara em A Poesia Portuguesa Hoje (1973) em outros poemas desta obra (e que Ruy Belo confirmaria no prefácio da sua segunda edição), derivado do destaque concedido à proposição enquanto unidade estrutural, sujeita a saltos de sentido que por vezes se acolhem em zonas temáticas diversas (CRUZ, 2008, p. 209-210), surge também, neste poema, através da oscilação de sentidos, estabelecida entre o suporte formal, as alusões ao sujeito e à condição da memória cultural de que vários aspectos nesta composição vão dando conta. Nesse caso, verifica-se que a unidade se concentra na comunicação entre as proposições derivadas da redescrição literária de certas características formais do epitáfio lapidar – a brevidade do poema, a identificação biografemática com a repetição do nome próprio, a indicação da origo (“portugalês”) e a inclusão de fórmulas tipificadas (como é o exemplo de “jaz”)[7], estas últimas reveladoras de um modo particular do uso da ironia que, “minante da seriedade contemplativa e sentimental da voz que predominantemente usa”, Joaquim Manuel Magalhães relacionou com a modernidade eliotiana (MAGALHÃES, 1981, p. 153)[8] – e os contributos da tradição lírica dos cancioneiros quinhentistas, responsáveis pelo ressurgimento do epitáfio clássico na literatura portuguesa. A presença destes é testemunhada quer na seleção do título “Cólofon”, apontamento temporal transtextualmente assimilável à nota final de um incunabulum, quer nas particularidades formais, nomeadamente a presença de rima, a redondilha maior e a estrofe única de dez versos estruturalmente semelhante à esparsa.
Ao leitor (ao viandante) deste autoepitáfio reserva-se, por seu lado, a tarefa de reconhecimento destas e de outras experiências sobre-viventes que o poeta vai desvelando no poema, aspecto que Ruy Belo, na linha de T. S. Eliot, assumiu metapoeticamente na “explicação preliminar à segunda edição” de Homem de Palavra[s], ao declarar que “de olhos postos no futuro, o poeta moderno escreve com toda a poesia anterior, com toda a poesia e a arte anteriores e contemporâneas por trás” (BELO, 2009, p. 248). A intemporalidade inerente ao sentido desta tarefa de iluminação e cumplicidade significa explicar o epitáfio como desdobramento da condição sobre-vivente da palavra poética no âmbito de uma mundividência própria, na qual o sujeito também se inscreve como sobre-vivência de modo a formar uma unidade de sentidos em potência.
Metapoeticamente, o tempo do sujeito-poeta é “todo o tempo”, para “polir o seu poema / a melhor coisa que fez” (versos 3 e 4), labor contínuo que é também uma forma de aperfeiçoar a terra e, em simultâneo, de antecipar o epitáfio, ou seja, o regresso à terra ou ao tempo do silêncio e da imobilidade (representado em sentido temporalmente inverso na referência indireta ao incunabulum, do ponto de vista etimológico, o gesto de “colocar no berço”, mas também o nome da faixa que impede os movimentos do recém-nascido), que o mesmo tenderá a expressar como fazendo parte de uma memória narrativa (o “Era uma vez” destituído de empiricidade). Trata-se de uma forma de regresso que, contrariamente ao devir na fidelidade à imanência observada a propósito do autoepitáfio de Jorge de Sena, opera segundo a perspectiva do reconhecimento, nesta circunstância, entre o sentido antinatural do empreendimento poético, que retira a palavra do silêncio da terra para submetê-la ao ruído e à insubordinação no mundo, e o propósito de regresso a esse silêncio que o ato de escrita concede como possibilidade derivada da própria natureza anti-heroica do sujeito-poeta. No breve texto “Ao correr dos dias” de 1972, recolhido em Na Senda da Poesia (1969), Ruy Belo afirmava dar palavras como as árvores dão frutos, atividade antinatural, mas legitimada pela poesia e entendida como uma violência exercida sobre a natureza; acrescentava ainda:
Mas ao escrever, dou à terra, que para mim é tudo, um pouco do que é da terra. Neste sentido, escrever é para mim morrer um pouco, antecipar o regresso definitivo à terra. Escrevo como vivo, como amo, destruindo-me. Suicido-me nas palavras. Violento-me. Altero uma ordem, uma harmonia, uma paz que, mais que a paz dos cemitérios, é a paz, a harmonia das repartições públicas, dos desfiles militares, da concórdia doméstica, das instituições de benemerência. Ao escrever mato-me e mato (BELO, 2002, p. 325).
Sendo a desordem uma consequência do ato poético, os seus efeitos na sociedade, ainda de acordo com o mesmo texto, devem ser procurados na denúncia de si mesmo e de todos os que se institucionalizam, pois “a poesia é um acto de insubordinação a todos os níveis, desde o nível da linguagem como instrumento de comunicação, até ao nível do conformismo, da conivência com a ordem, com qualquer ordem estabelecida” (BELO, 2002, p. 325). A responsabilidade do poeta pouco concordará com o heroísmo que Giambattista Vico supunha nas circunstâncias que apontamos no início deste estudo, mantendo-se, não obstante a perspectiva que enunciou na Scienza Nuova, a admissão de uma realidade muda sobrevivente da origem sagrada do logos poético que o poeta, na perspectiva de Ruy Belo, procura recuperar sempre que nas palavras busca “um contorno para o silêncio” (BELO, 2002, p. 325) ou pretende “rodeá-las de silêncio” (BELO, 2002, p. 325), como também refere num outro trecho de “Poesia Nova”. Perante esta tarefa, assegurando, no mesmo texto, a materialidade da palavra como objeto do mundo exterior com existência própria, entende-se que “só o nome do autor lembra a quem o ler aquele que lhe deu as palavras para subsistir” (BELO, 2002, p. 88). Se por um lado, relendo Vico, na origem toda a palavra seria poética e o seu dinamismo fá-la-ia situar entre a natureza e o espírito num ímpeto que é o fundamento da possibilidade do seu constante devir (BELO, 2002, p. 72), já o poeta aspira à circularidade daquele que teve a tarefa de restituir à palavra a sua leveza incorruptível e de a reconduzir à sua origem primeva – “A palavra poética é, portanto, aquela em que não se perde a memória da primeira imagem e da metáfora que a gerou” (BELO, 2002, p. 70) –, para aguardar, por sua vez, o regresso à unidade com a terra “sob a qual jazerá, finalmente tranquilo, finalmente pacífico, finalmente adormecido, finalmente senhor do silêncio que em vão tentou apreender com as palavras (…)” (BELO, 2002, p. 326).
No poema como autoepitáfio, as condições reunidas reiteram figurativamente a circularidade comunicante desse fim e princípio que T. S. Eliot valorizou nos enunciados do excerto de “Little Gidding”[9], o berço e o túmulo onde o sujeito sobre-vivente habita e no qual é permitida a unidade instável que lhe é característica. O regresso à terra ou à “condição horizontal” donde lhe nasce o rosto, como enunciava em “Figura Jacente”, o último poema de O Problema da Habitação (1962) significará, por conseguinte, uma passagem pela habitação que cada poema, princípio e fim singulares, propõe como abrigo paradoxalmente desabrigado, exposto ao relento nos arredores de uma incerta transcendência:
Meu rosto nasce desta condição horizontal
de quem tem a cobri-lo todo o seu cansaço
Deus teve para mim morte mais rasa
do que a morte que o sol encontra entre as águas
Desfez-se a curva última da estrada
nada ficou após meus gastos passos
Ninguém morrera ainda tanto como eu
só tive de estender um pouco mais o corpo
Sobre o meu rosto passam uma a uma as gerações
e vem lavar-me a água os velhos pés
E diz-me Deus, tão acessível como o mar nas praias:
— Tu és cada vez mais aquilo que tu és
Há entre as oliveiras sítio para o sol
e a brisa da infância canta rindo nos ramos
entre o cheiro do giz e as canções da escola
Deus é perto de mim como uma árvore (BELO, 2009, p. 167)
Como observava Silvina Rodrigues Lopes a propósito de Ruy Belo,
Na sua casa imaterial, feita da matéria e do imaterial que são as palavras, o poeta confunde-se com a passagem e o desejo de passar. Passagem de palavra em palavra que gera a constelação de figuras (ideias, sensações), o vento do pensamento, imortal, secreto, sem rasto, fecundo” (LOPES, 2011, p. 14).
5. Conclusão
Entre o devir na fidelidade do sujeito à experiência tensa da palavra e o movimento cíclico de regresso do sujeito à condição iluminada e silenciosa de toda a origem poética após a devolução da palavra-habitação à liberdade em devir, as duas experiências de epitáfio de Jorge de Sena e Ruy Belo reclamam metapoeticamente para o poema a persistência paradoxal do que Otavio Paz definia como “quietud de movimiento” (PAZ, 1998, p. 25), a detenção autorreflexiva do tempo que não deixa de fluir nessa unidade ou lápide tensa que, sendo o poema, nos interpela sobre o nosso modo de, com ele, habitarmos o mundo.
REFERÊNCIAS
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LOPES, Silvina Rodrigues. Como quem num dia de Verão abre a porta de casa. In: Colóquio/ Letras, n. 178, set./dez. 2011, p. 9-21.
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SENA, Jorge de. Poesia II. 2. ed. Lisboa: edições 70, 1988.
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VICO, Giambattista. Ciência Nova. Tradução de Jorge Vaz de Carvalho. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005.
NOTA
1 No original: “Every phrase and every sentence is an end and a beginning, / Every poem an epitaph. And any action / Is a step to the block, to the fire, down the sea’s throat / Or to an illegible stone: and that is where we start” (ELIOT, 2004, p. 90).
2 Elio Franzini destaca a relação incorreta entre os termos mythos e mutus por parte de Vico, ambos centrais no estabelecimento de uma lógica poética; ao fazer de logos sinônimo de mythos, tal implicará que “ser mudo indica então todas aquelas possibilidades expressivas que, desde o gesto ao hieróglifo, comunicam sem utilizar a palavra. O logos é uma realidade muda, ou mítica, e é o sinal da criatividade original do homem” (FRANZINI, 1999, p. 154).
3 No original: “Nature and reason have dictated to every nation, that to preserve good actions from oblivion, is both the interest and duty of mankind”. O texto foi publicado inicialmente no Gentleman’s Magazine, periódico mensal londrino em que trabalhou desde 1738. Seguimos a edição de Robert Lynam, The Works of Samuel Johnson, with Murphy’s Essay. London: George Cowie and Co., 1825, vol. V., p. 237-244.
4 No original: “To examine, therefore, in what the perfection of Epitaphs consists, and what rules are to be observed in composing them, will be at least of as much use as other critical inquiries”. As orientações deste texto de Samuel Johnson distanciam-se, neste âmbito, de outros posteriores em que questiona a codificação classicista e discute a superioridade do gênio e da imaginação (FRANZINI, 1999, p. 114-115).
5 A experiência é descrita por Northorp Frye, que encontra neste poema, tal como em “East Coker” (com algumas diferenças), “o retorno do poeta ao ponto da história em que, para ele, o mundo moderno começou” (FRYE, 1963, p. 87). A importância do fogo para esta comunidade derivava da sua identificação com a comunicação do logos divino (o fogo pentecostal que desceu do céu), que, no âmbito da visita do poeta a esta comunidade, evocaria a necessidade de comunicação com os mortos, os seus guias poéticos por entre uma Londres devastada pelos raids nazis (FRYE, 1963, p. 88).
6 Jorge Fazenda Lourenço valoriza esta ideia ao destacar a relação de inclusão mútua entre poeta e poesia na perspectiva de uma tensão dialética de base fenomenológica, afirmando “uma forte implicação do sujeito autoral no seu objeto de linguagem, e, por consequência, uma relação entre o autor empírico e o autor textual que tende para o isomorfismo” (LOURENÇO, 2010, p. 120).
7 A propósito da interseção entre a elegia e o epitáfio, Rui Lage faz destacar, no estudo A Elegia Portuguesa nos sécs. XX e XXI: perda, luto e desengano (2010), a importância deíctica desta última forma poética, levando-o a considerá-lo “um poema deíctico, pois se refere às coordenadas que definem a própria situação enunciativa: ao tempo, mas, sobretudo, ao espaço da enunciação. A deixis do epitáfio recorre a um advérbio de lugar por excelência, ‘aqui’ (por vezes o sintagma ‘aqui jaz’) que localiza o espaço da sepultura por referência à localização do sujeito de enunciação” (LAGE, 2010, p. 110-111).
8 Joaquim Manuel Magalhães considerou este uso da ironia como um dos contributos mais importantes de Ruy Belo para a poesia portuguesa contemporânea, descrevendo-a como “não vincada, mas tenaz, sem sarcasmo, mas jocosa, da sentimentalização excessiva do mundo do vivido e do sentido” (MAGALHÃES, 1981, p. 153). Por sua vez, uma leitura genética deste poema pode mostrar-nos que, a dado momento do processo da sua composição, este aspecto terá sido considerado na sugestão de jogo de palavras entre “jaz” e “jaz[z]” que um apontamento a lápis no dactiloscrito/autógrafo de uma das fases de composição revela. O mesmo documento revela-nos que a composição era uma sétima e que o título inicial seria apenas “Cólofon”, sendo “ou epitáfio” acrescentado posteriormente a lápis (BELO, 2011, p. 46-47).
9 De acordo com Fernando J. B. Martinho, o impacto das proposições de T. S. Eliot em “Little Gidding” deve ser devidamente valorizado, uma vez que, como argumenta, “terão estado sempre no seu horizonte como pontos de referência de uma escrita capaz de conciliar o mais elevado grau de exigência literária com a necessidade de se manter aberta a um amplo e fecundo espaço de partilha” (MARTINHO, 2011, p. 58).
FONTE: FINO, Francisco Saraiva. Inscrição poética e epitáfio: representação e aprofundamento metapoético a partir de Jorge de Sena e Ruy Belo. Matraga, v. 31, n. 61, p. 142-153, jan./abr. 2024.