Fernando Pessoa e Jorge de Sena: encontros e desencontros entre dois “indisciplinadores” de almas

fernando-pessoaApesar da distância conceitual que se insinua entre o Fingimento e o Testemunho, no âmbito ético e estético, Fernando Pessoa é uma referência incontornável na obra de Jorge de Sena – em particular na sua produção ensaística. O poeta dos heterônimos foi sempre um dos principais objetos de estudo de JS, como demonstra a bibliografia comentada por José Blanco que já publicamos aqui. E é a partir das aproximações e divergências entre os dois poetas que celebramos hoje o aniversário de Fernando Pessoa, através do ensaio gentilmente cedido por Dora Gago.

Junho foi, simultaneamente, o mês de nascimento de Fernando Pessoa (há 125 anos, no dia 13) e da morte de Jorge de Sena (ocorrida a 4/6/1978). Para além de terem sido dois geniais poetas, estas duas figuras ímpares da nossa Literatura, partilhavam igualmente a ascendência açoriana. Pessoa era filho de Maria Magdalena Pinheiro Nogueira, natural da Ilha Terceira – que terá visitado em 1902. Por seu turno, Sena era filho de Augusto Raposo de Sena, natural de S. Miguel, de ascendência aristocrata e comandante da Marinha Mercante.

Os ecos pessoanos na obra de Jorge de Sena são inegáveis, corroborados apriori pelos estudos e ensaios consagrados a este poeta e aos seus heterónimos. É principalmente os ecos dessa presença, os encontros, afinidades e desencontros que abordaremos em seguida.

Jorge de Sena ainda conheceu, pessoalmente, durante a sua adolescência, o poeta Fernando Pessoa. Isto porque, uma tia-avó de Sena, viúva de um cônsul norte-americano era amiga e vizinha da mãe de Fernando Pessoa (também ela viúva de um cônsul, neste caso português e falecido na África do Sul). (cf. Saraiva 1981: 236). Neste contexto, não era invulgar para o jovem Sena, encontrar como visita na casa da sua tia, o poeta: “aquele senhor suavemente simpático, muito bem vestido, que escondia no beiço de cima o riso discretamente casquinado” (Sena 1984:160).

Contudo, só mais tarde o chegou a “conhecer” verdadeiramente, tendo inclusive, ficado estupefacto, ao saber, em 1934, pouco tempo antes do falecimento de Pessoa, que ele fora premiado pelo Secretariado de Propaganda Nacional, pela sua Mensagem: “Porque o premiado era precisamente aquele senhor amigo da minha tia-avó que não falava nunca de poesia e cujas aventuras modernistas eu ignorava.” (160).  Então, Sena afirma, num texto publicado em 1960, sobre estes encontros “Porque afinal, e à semelhança de tantos que hoje se vangloriam de o ter conhecido, eu não cheguei a conhecer Fernando Pessoa” (161).

Contudo, é através da Mensagem, e da obra pessoana que Sena descobre o Modernismo. A este poeta consagra muitos estudos, a ponto de podermos dizer que com ele inicia e termina a sua vida literária. Esses ensaios, coligidos entre 1940 e 1978 (ano da morte de Sena), encontram-se reunidos num volume editado postumamente por Mécia de Sena (2ª edição, 1984), intitulado Fernando Pessoa & Cª Heterónima.

Dessa colectânea, de forma a corroborarmos a importância assumida por Pessoa na obra literária de Sena, referiremos e comentaremos, de forma muito sucinta, alguns dos textos mais relevantes.

Primeiramente, datadas de 1940, encontram-se duas cartas dirigidas à presença sobre o poema “Apostilha” de Fernando Pessoa, cujo objectivo era corrigir um lapso cometido pelos editores da revista, ao considerarem inédito o poema supramencionado. Esta correspondência comprova que, ainda bastante jovem, Sena já detinha notório conhecimento da poesia de Pessoa, numa altura em que ela ainda nem sequer tinha sido grandemente divulgada. Além disso, datam de 1942 duas odes dedicadas por Sena a Alberto Caeiro e a Ricardo Reis.

Por seu turno, a “Carta a Fernando Pessoa” foi publicada em Da Poesia Portuguesa (1959) e revela um profundo conhecimento da obra pessoana, ao “dizer-lhe”:

V. não foi um mistificador, nem foi contraditório. Foi complexo, da pior das complexidades – a sensação do vácuo dentro e fora, V. não foi um poeta do nada, mas pelo contrario, poeta do excessivamente virtual, de toda a consciência trágica de probabilidade, que a crença no Destino não exclui. (27)

Note-se que se lhe dirige tratando-o por “Meu caro Amigo” e termina com a fórmula de despedida: “Creia na imensa admiração e no imenso respeito do”, reveladoras precisamente do profundo apreço por Pessoa. Por seu turno, “Prefácio e notas a Páginas de Doutrina Estética” e “Fernando Pessoa, indisciplinador de almas (uma introdução a sua obra em prosa) apresentam a vertente de prosador do autor. Neste último texto, abordam-se aspectos decorrentes das implicações ocultistas e dissolução da personalidade, entre outras. Conclui-se o artigo da seguinte forma:

 

Ele quis-se, e foi, de facto, um terrífico “indisciplinador de almas”, para chamá-las ao conhecimento de si próprias, a hierática dignidade, a liberdade intemerata. E até o que há de espiritualismo conservantístico nele, e, por isso mesmo, num país de pretensa espiritualidade, profundamente revulsivo. Por muito tempo, no exercício desta missão sagrada, não haverá na língua portuguesa quem se lhe compare, como anteriormente, o não houvera. (82)

Como podemos constatar, neste caso é sublinhada a unicidade e superioridade de Pessoa, sem paralelo entre os poetas de Língua Portuguesa.

Por seu turno, “Inscriptions de Fernando Pessoa: algumas notas para a sua compreensão” – refere a ideia de divulgar, traduzir, analisar e anotar os poemas ingleses de Pessoa, concretizada em 1974, com o título Poemas ingleses, e a colaboração de Casais Monteiro e José Blanc de Portugal. Neste texto, Sena situa a poesia inglesa pessoana, negligenciada pela crítica, “com certo brilho entre a dos outros poetas ingleses dos fins do século XIX e primeiro quartel do nosso século”.(85). Aliás, enfatiza o valor desta poesia ao mencionar:” Deve mesmo acentuar-se que os seus 35 sonetos ingleses, tão afins da poesia dos “metaphysical poets”, e não tanto da tradição shakespeariana que pessoa se propunha adoptar, quase antecedem a voga cultural, na própria Inglaterra, dessa esplêndida poesia!” (85).

Em “Fernando Pessoa e a literatura inglesa”, datado de 1953, Sena começa por esclarecer que o tema mais adequado seria antes “a literatura de língua inglesa” uma vez que nem Edgar Poe, nem Walt Whitman são ingleses, mas são indispensáveis para a sua compreensão. Neste contexto, salienta: “O problema das relações de Pessoa com o “inglês” e indirectamente com a cultura britânica (na mais alta acepção do termo, que deve incluir as instituições e os costumes políticos) é da mais alta importância.” (92). Este contacto com a cultura inglesa conferiu ao poeta, para além de todo o enriquecimento cultural, a possibilidade de usar a língua portuguesa “com uma virgindade de quem a contempla pela primeira vez” (93). Na sequência deste estudo, Sena escreve também “Maugham, Mestre Therion e Fernando Pessoa” (1957) para o qual se inspirou na publicação da reedição do romance de S. Maugham The Magician, cujo protagonista teria afinidades com Mestre Therion. Segundo Sena, esse Mestre Therion seria precisamente Aleister Crowley (1875-1947), ocultista britânico, aventureiro, hedonista, crítico social e influente referência de muitos escritores. Nesta esteira, Pessoa também não escapou a este fascínio e traduziu de mestre Therion um poema esotérico (“Hino a Pan”), publicado na revista nº 33 da presença (Julho-Outubro de 1931). Gaspar Simões julgou, erradamente, que este “Mestre” seria mais um heterónimo pessoano. Então, no texto “Pessoa e a Besta” Sena esclarece também este aspecto, enfatizando a importância das relações de Fernando Pessoa com a cultura britânica e o esoterismo.

Em “O poeta e um fingidor (Nietzshe, Pessoa e outras coisas mais)” são apontadas as raízes esteticistas-nietzscheanas da teoria do fingimento poético preconizada por Pessoa. Esse fingimento delineia-se como uma “arte poética”, partilhada com diversos outros modernistas (entre eles, António Machado), de várias línguas, como forma de cisão com o “subjectivismo romântico”. Assim, o fingimento possibilitaria precisamente atingir o “âmago mais profundo” (423). Não obstante, verificamos que apesar de defender essa teoria, Sena recusa-a na sua poesia devido ao facto de contrastar com: “a humildade expectante, a atenção discreta, a disponibilidade vigilante, com que, dando de nós mais que nós mesmos, testemunhamos do mundo que nos cerca, como do mundo que, vivendo-o, nós próprios cercamos do nosso maternal cuidado” (Sena 1988:25).Assim, esta teoria não se coaduna com a concepção testemunhal da poesia que habita a obra seniana.

Verificamos, então que Sena se assume como um pioneiro dos estudos pessoanos, tendo produzido notáveis artigos sobre a sua obra, que contribuíram para a compreensão do fenómeno da heteronímia, do “drama em gente”, da problemática acerca da sinceridade e fingimento, do esoterismo, das profundas relações com a literatura inglesa.

Por seu turno, no texto “Fernando Pessoa, o homem que nunca foi”, Jorge de Sena refere o seguinte:

Claro que tenho sido chamado um discípulo de Fernando Pessoa – ninguém com um mínimo de distinção poética tem escapado a isso em Portugal, uma vez que Pessoa se tornou o símbolo do Modernismo que todos buscávamos, e era por certo parte da nossa educação poética. Mas todos somos, em sentido positivo, negativo ou ambivalente discípulos de tudo o que nos precedeu, desde a Epopeia de Gilgamesh e o egípcio Livro dos Mortos, que se queira que não. (1984: 416).

Constatamos que, nestas palavras, ecoa a concepção de Shelley, referente às “influências”. Este autor considerava que os poetas de todos os tempos e idades contribuíram para um “Grande Poema” perpetuamente em progresso, pois tal como referiu Borges, os poetas criam os seus precursores. Nesta senda, ainda segundo Harold Bloom: “Poetic Influence in the sense -amazing, agonizing, delighting -of other poets, as felt in the depts of all perfect solipsist, the potentially strong poet. For the poet is condemned to learn his profoundest yearnings through an awareness of other selves” (1997: 19).

Assim, notamos que apesar das inúmeras diferenças a nível biográfico e de personalidade entre Sena e Pessoa, também são bastantes as afinidades, como por exemplo, a ascendência açoriana, o local de nascimento (Lisboa), a educação cuidada, a vinculação a cultura e aos países de língua inglesa, a coragem de assumir posições originais e ousadas, a concepção da língua como pátria ou a pátria como língua (a “pátria de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações /nasci”), a constante inquietação com o destino e o futuro de Portugal. Além disso, evidenciam-se temáticas comuns, como o pessimismo existencial, a divisão do sujeito. Por isso, como referiu Arnaldo Saraiva, as obras dois autores, “iluminam-se e enriquecem-se mutuamente” (1981: 256), aliando as diversas vertentes duma cultura simultaneamente nacional e universal.

Em suma, ambos assumiram, através da genialidade da sua obra poética, a heróica missão de “indisciplinadores de almas”, ultrapassando as fronteiras geográficas, humanas e culturais.

 

Bibliografia:

Bloom, Harold. The Anxiety of influence. A Theory of Poetry, 2ed., Oxford, Oxford University Press, 1997.

Saraiva, Arnaldo, “Jorge de Sena e Fernando Pessoa”, Studies on Jorge de Sena, by his Colleagues and Friends, A Colloquium, edited by H. Sharrer and Frederick G. Williams, University of California, Santa Bárbara, Santa Bárbara, 1981, 236-257.

Sena, Jorge de. 40 anos de Servidão, Lisboa, Moraes Editores, 1979.

—————– Fernando Pessoa & Ca Heterónima, Lisboa, 2 a ed., 1984

—————– Poesia I,  Lisboa, edições 70, 1988.

 

[*] Versão publicada primeiramente por Irene Maria F. Blayer e Lélia Nunes no Blogue “Comunidades da RTP Açores” (21.7.2012)”