Há 50 anos: poemas de 1963

Os poemas que transcrevemos a seguir pertencem ao mesmo livro – Arte de Música – e têm ainda em comum a inspiração musical germânica de que traçam uma espécie de histórico, embora tenham sido escritos fora de uma ordem, digamos, cronológica: do romântico alemão (que inspira o poema escrito a 8 de abril de 1963) passamos ao barroco compositor do Sacro Império Romano-Germânico (poema de 04/05), seguido do moderno maestro austro-húngaro da virada do século XIX para o XX (08/05, e portanto na mesma semana do poema anterior), e, por fim, do clássico vienense do século XVIII (12/11).   
Acompanhados pela música de Brahms, Bach, Mahler e Haydn, vale reler estes poemas cinquentenários de Sena.

 

 

Oitava, ouvindo a primeira sinfonia de Brahms

 

Da música ao sentido, que palavra
preenche o vácuo de silêncio entre este
fluir contínuo de timbrados ritmos
e o que desperta em nós de não sonhada vida?
E que palavra traz consigo o som
do que ela mesma evoca em nós: imagem
de uma ideia, cor de uma lembrança.
perfume de um desejo, forma de um conceito?

 

Esta que ouço orquestralmente ansiosa.
o que me diz? De que soluços seus
eu posso, com palavras ou sem elas,
humedecê-la do que sinto ou sofro?
E que soluços são palavras que
flutuem ténues neste rio fluido
dentro de mim, sonhando que sonhei
da vida que não tenho ou que já tive?

 

Dulcíssima harmonia, sopro e gesto,
ouvida sem ser vista, e pressentida
no imprevisto da sequência firme
de um cálculo de pausas e de alturas:
o mundo sem palavras, movimento imóvel,
frase destituída de sentido.
É isto a Vida: algo que se ouviu
num timbre momentâneo e sobreposto

 

ao vácuo entre as palavras, para além
do som ou do sentido. Ó triunfal
dormência da verdade! Ó suspensão
de todas as certezas! Ó fervor
tranquilo, infrene, ardentemente frio!
Ó trégua, ó paz, vitória sem vencidos!
Eu te saúdo como noite eterna
onde por sons se escreve que existimos.

s

Concerto “Brandenburguês” n.º 1, em Fá maior*, de J. S. Bach

(*) Por lapso Sena indicou “Fá menor” no ms. e nas primeiras edições.

 

I

Como se modulando neste espaço-tempo
que se desenha espaço em mero som contínuo
de um tempo trespassado,
a fina imarcescível
dor
é timbre e andamento,
e proporção de altura
a desdobrar-se na serena angústia
de um nada preenchido.

 

Intensamente.
Quietação.
Vácuo.
Tudo.

 

II

Canta o impossível.
Que voz humana
sustentaria
esta pressa alegre
ou a tensão suspensa
do lento sonho?

 

III

Madeiras, cordas, gestos, sopros. tudo
avança imóvel, sem parar, quieto,
a passo irresistível.

Não há que os contenha
senão o inaudível.

 

IV

Neste silêncio, que ficou, flutua?
O quê?
Nós?
Como tão pouco restaria?

4/5/1963

 

 

«Das Lied Von Der Erde», De Mahler

 

São versos de poeta* chinês. Depois de sabermos
Isto, é fácil percebermos o exotismo
da orquestração estranha e convencional da
China coada em salas de concerto da Germânia
em que os Siegfrieds, as Brunhildas, as Isoldas.
os Parsifais, e tutti quanti, espreitam dos veludos
vermelhos e coçados de Bayreuth. Mas
por entre os timbres ricamente escritos
uma voz humana, em que o sexo alterna,
ergue de agudos a clara esperança
de que: a dor e a morte sejam alegria,
E tudo isso um pouco uivante e repetido,
mesmo alongado em gesto de só rttmo e orquestra,
é tão mais que Chinas e Germânias de concerto,
é tanto mais que a própria voz de compromisso
entre ópera e lied, galantemente soluçando
mágoas, piririri, tararara,
que a voz, os versos (traduzidos), a orquestra
se fundem neste dia de tão claro céu
em que os não ouço já.
Das Lied von der Erde – será da terra que isto canta, ou canta
do que não somos terra? Eu creio que
…para que crer ouvindo este sonhar da vida?

 «Andante Con Variazioni, em Fá menor, de Haydn
Firmemente suave e docemente atenta vai seguindo em variações serenas
até que ao fim exclama resumidamente a mesma doçura
tenuemente harpejada que ao princípio dissera
como esta vida é urna simples coisa tão subtilmente amarga
que só variando em torno de perdê-la a toleramos toda.
Neste suspenso e continuado recordar sempre diverso
que nunca na memória se repete, mas recorre
mais vago ou mais nítido conforme
o vento passa, a luz se apaga, as vozes se entrecruzam.
e um gesto se desdobra em mil volutas que não foram
sequer as mesmas que o tão vulgar nunca chegou a ser,
trila, remia, reexpõe, repete,
e vai seguindo pensativa, sem pensar em nada
porque pensar, em música, seria mentir tranquilamente
à sucessão de que é possível transitar de uma ideia
ao ponto concordado na memória imaginada da frase que
só de si tira tudo o que será tirado dela.
Como é terrível ser-se tão sereno assim,
perante todos os passíveis que nos não dá a vida,
mas a música dá. Como dói esta imensamente delicada e tão viril
tranquilidade mais do que inumana. Como ultrapassa tudo
este meditar de sons e sentimento, que finíssimo
penetra onde lá nada tem sentido mas uma existência
que num silêncio termina após o acabar-se.

12/11/1963

 

[*] No ms, como na ed. original, onde está cortado pelo Autor, estava um poeta.