Wagner é um dos compositores mais evocados por Jorge de Sena em Arte de Música: são a ele dedicados nada menos que três poemas (o que o coloca num empate com Bach, perdendo apenas para Mozart e suas cinco representações). E, ao final do volume, escreveu sobre cada um destes, em notas que esclarecem as fontes de inspiração dos versos.
No caso de “A Morte de Isolda”, afirma não se referir particularmente “a qualquer das muitas interpretações da Liebestod do Tristão“, trecho do terceiro ato da ópera Tristão e Isolda que, em sua lista de eleitos, “ocupa naturalmente um primeiro lugar”. Sobre o “Final da ‘Valquíria'”, afirma “ter em mente a interpretação de Ferdinand Frantz, com a Orquestra Filarmônica de Viena, dirigida por Furtwängler (…), segundo a qual Votan é, ao mesmo tempo, o deus e um pai humaníssimo, cheio de tristeza ao condenar Brunhilde”. Por fim, sobre a “Marcha Fúnebre de Siegfried”, peça do terceiro ato do Crepúsculo dos Deuses que é, segundo Sena, “uma das coisas mais terríficas e grandiosas que alguém terá composto”, afirma escrever “sob a influência da interpretação de Klemperer, com a Orquestra Philarmonia”.
Seguindo, portanto, as instruções do poeta, apresentamos aqui sua seleção wagneriana, acompanhada de suas respectivas influências sonoras.
- A Morte de Isolda (Liebestod na versão de Kirsten Flagstad e Furtwängler, ao vivo no Royal Albert Hall, 22/5/50)
- Final da “Valquíria” (Leb wohl du kühnes herrliches Kind na versão de Ferdinand Frantz e Furtwängler, Scala de Milão, 9/3/50)
- Marcha Fúnebre de Siegfried, do “Crepúsculo dos Deuses” (Siegfried Trauermarsch na versão de Klemperer e a Orquestra Philarmonia, 27/2/60
Nesta fluidez contínua de um tecido vivo
que se distende arfando como um longo sexo
viscosamente se enrolando em torno ao mundo
que não penetra mas ansiosamente
estrangula em húmidos anéis
fosforescentes de ansiedade doce
e resignada à morte
em roncos e estridências lacrimosas,
palpita a frustração do amor maldito
porque de um filtro só nasceu.
Por mais que de crescendo delirantes
se evolem as volutas de uma chama ambígua,
nesta fluidez sem tempo não há gozo algum,
mas o prazer remoto do que não foi vivido
senão como entressonho e fatal gesto;
e mesmo este balanço largamente harmónico
que se exaspera e expira em tão agudas poses
é cópula mental.
Nesta doçura que ao silêncio imóvel
acaba retornando, não há uma paz dos rostos que se pousam,
enquanto os sexos se demoram penetrados
no puro e tão tranquilo esgotamento da chegada
que só ternura torna simultânea.
Não há, mas só tristeza infinda e fina
e tão terrível de que, estrangulado,
o amor no mundo é morte impenetrável: dois
seres que o sexo destruiu,
estéreis como o sopro da serpente eterna.
Fica-nos o gosto da piedade.
E uma vontade de enterrá-los juntos
p’ra que talvez na morte – imaginada – se conheçam
melhor do que se amaram. E também o ardor
de uma impotência que se quis só sexo
virgem demais para um amor da vida.
8/3/1964
Deuses podiam de um Valhala em chamas
sumir-se nos escombros quando o Reno
cantante como o fogo inundaria verde
o palco e o catafalco dos heróis:
cavalo ardente de Valquíria amante
que o pai sofrendo humanamente triste
condena ao sono não de eternidade mas
da inércia solitária de quem espera
o amado herói que há-de tocar-lhe os lábios
soprando-lhes ardências de fatal destino.
O anel dos deuses, dos mortais esse ouro
(mas por agora é só Votan partindo,
e do futuro ainda é que desastres pendem):
“Assim de ti o deus se afasta agora,
num beijo te roubando a divindade”.
4/7/1973
Marcha Fúnebre de Siegfried, do “Crepúsculo dos Deuses”
Na tarde que de névoas se escurece
escuto a marcha que ao herói transporta
fúnebre e doce, tão violenta e fluida,
à sua pira em que arderá cadáver
a cinzas reduzido. Erguem-se os metais
nos ares entreabertos, terra se contrai
onde tambores reboam, e as madeiras
e cordas acompanham o cortejo
descendo para o rio que perpassa
igual sempre a si mesmo de outras águas
como os heróis que morrem tão humanos.
E é o que nos diz este mostrar por música:
os semi-deuses morrem como nós,
como nós sofrem mágoas de derrota,
e como nós desejam, amam, gozam
ou raivam da tristeza de não ter.
Mas nós não possuímos quanto a eles cabe,
neste fervor de imaginá-los, quem
nos cante o fim de tudo o que foi grande,
o que foi puro, o que de consentido
foi gesto dedicado sem usura
ao simples existir além de nós
na terra que nas trevas se nos fecha
de noite enevoada só distância
nas pálpebras cerradas deste corpo,
o herói que assassinado me transportam
neste cortejo em majestade e lágrimas.
Não temos isto mais do que em só música,
mas os deuses também não, que aos heróis mortos
nunca sobrevivem.
13/1/1974