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Há 50 anos: cartas de 1962

Na correspondência editada de Jorge de Sena, só 4 cartas testemunham o ano de 1962: duas dirigidas a Sophia de Mello Breyner Andresen, uma a José-Augusto França e uma a Vergílio Ferreira. Esta última é quase integralmente dedicada a responder, ponto a ponto, aos comentários que o romancista de Aparição fizera, também em carta, ao ensaio "O Poeta é um fingidor", e pouco há sobre as circunstâncias então vivenciadas por Sena. Eis porque a eliminamos da transcrição abaixo, que visa a contextualizar esse tempo seniano de Araraquara, lá se vão exatos 50 anos.


Araraquara, 1/3/62

Meu caro José-Augusto

Acabada a História da Literatura Inglesa (480 pgs. dactilografadas) que me ocupava imensamente desde Out. e acabados os exames de admissão e 2a. época, eis-me, antes de lançar-me aos novos trabalhos, exausto, cansado, desiludido, mais danado que nunca com o mundo e a humanidade, diante da sua carta de 14 de Janeiro.

De obra minha publicada, não sei se entretanto já viu o Reino da Estupidez. Por certo, e com gralhas pavorosas (que a precipitação de não me mandarem provas produziu), recebeu da COR «A Noite que fora de Natal», safadeza de que gosto muito e onde pus do melhor e do pior de mim próprio (não como estilo, que acho ser lá só do melhor).

Diz-me que não me importe com a supressão do meu nome praticado no Colóquio, porque eu sou eu! Muito bem: mas se eu não me alegro a mim mesmo como espectáculo, sem o aplauso público, já que não acredito na eternidade (sob nenhuma forma), tenho da perpetuidade histórico-literária da canalhice e da estupidez ideias assentes, e acho a vida demasiado chata para ser sofrida sem coroações, com louros, aos Capitólios — como quer você que eu não me sinta? Os meus poemas longos são muito bons; mas a COR acaba de confessar que afinal não os publica, e o seu «primo» Azevedo não mexerá uma palha para isso, enquanto publicam monumentalmente e pomarescamente uma merda poética da Sophia. Os meus contos são muito bons — mas quem mos publica? Os meus ensaios são óptimos — quem fala neles? E por isso que, meu filho, já agora me não contento se não vir Portugal a ferro e fogo, transformado à luz do mundo na sangueira torpe que merece ser. A índia foi-se? Pois até que enfim! O Salazar fique? Pois que a todos muito preste. Acaso isso impede que Urbanos e Mourões, Namoras e «tutti quanti» sejam grandes escritores? Não protesto, nem protestarei jamais, contra qualquer agressão, por mais vil que seja, de que Portugal seja vítima: nunca será mais vil do que ele colectivamente é. E, no entanto, não suponha que lhe prefiro o Brasil: que acho um país de espantosas virtualidades, se não fosse de gente sem carácter, sem dignidade, sem hábitos intelectuais, sem amor da cultura, só interessada em ganhar mesquinhamente um dinheiro com que nem sequer saberia deixar de comer na cozinha. Acho a Europa irremediavelmente podre; e as Américas irremediavelmente reles. Que o Manuel Anselmo vá para Paris e para a UNESCO, está perfeitamente certo: se a UNESCO se sentisse mal, protestaria. Não sente. Que me importa a mim? Às vezes penso que a Rússia e a China são melhores. Não são. A única diferença — consoladora durante um tempo — seria assistir a estes burgueses todos lá varrendo a rua. Mas já acabaram esses que tiveram de varrê-las; e agora começa a haver outros, muito conspícuos, que as novas ordens trazem sempre consigo, prontos a admirar a Gioconda e a Vénus de Milo, e a mijarem-se de puro amor de Pátria ainda que socialista. Como compreendo o Tibério em Capri, sangrando escravos, ou o Calígula desejando que a humanidade tivesse uma só cabeça para cortá-la de uma vez! Pobres imperadores! — mas homens muito razoáveis e sobretudo sinceros.

O meu estado de espírito não sei se é o pior possível. É, porém, este. E dificilmente me parece que venha a ser outro. Descri de tudo, e não espero em verdade nada: apenas, porque continuarei sempre a exigir o reconhecimento a que tenho direito, por parte de uma corja humana que nem me merece, e eu mereço apenas pelos meus pecados de amor infeliz dela. A tal ponto assim é, meu caro, que não só o muito trabalho me impediu de fazer ofertas e dedicatórias do Reino da Estupidez, apesar dos apelos lancinantes da Moraes, deixados sem resposta. Oferecer para quê? Para uns não dizerem nada? Ou os melhores amigos me escreverem dez linhas carinhosas? Se quiserem ler, comprem. Se não quiserem ler, que não leiam. Afinal, toda a gente anda ocupada em justificar a sua própria existência: é pedir muito que nos ajudem a justificar também a nossa.

Obrigadíssimo pelas suas démarches todas, de que me dá conta nesta sua carta. Dê notícias dessa pátria parisiense, onde proliferam gloriosos e «bolsistas» tantos Saraivas. A minha próxima crónica de «Letras Portuguesas» será, com justos elogios, uma execução capital da Hist. da Lit. dele e do meu cunhado. A seguir será o Namora. Com alguma antropofagia me hei-de contentar.

A minha História da Literatura Inglesa ficou uma coisa monumental, como informação, como originalidade crítica, como síntese do método histórico-sociológico, e do método «ontológico». Alguém, nestes países de analfabetos ou pretensos «comunas», quererá dar-se conta de que não é uma compilação sem graça? Claro que não. E é tudo assim. Na poesia, a minha disposição não é melhor. Junto lhe envio a ode «A Portugal» que em tempos escrevi, e será a abertura ou o fecho dos Grão-Capitães, em que intercalarei violentos poemas «políticos». Mas já me resignei a ser um Lautréamont conspícuo… os meus amigos entreter-se-ão a publicar-me, a pôr os olhos em alvo, a dizerem com emoção: «— O Jorge… ah…» E continuarão todos muito tolerantes com todos os Gaspar Simões que me infernizaram a vida.

Não, meu caro, Portugal não existe. É uma fantasia apenas, muito triste. Um Carnaval sangrento e malcheiroso. Viu que o Zaluar Nunes, brasileiro agora, para que o soltassem em Lisboa, declarou que lhe falsificámos a assinatura num protesto do Comité dos Intelectuais, publicado há dois anos?
O que não impediu que os estudantes do Recife o aclamassem à chegada, e que os jornais não publiquem o comunicado em que o tratamos como ele merece. Veja se tudo isto não é o Portugal glorioso dos Albuquerques — uma língua suja que ainda hoje não merece que Camões a tenha usado para outros fins e em outros lugares.

Dê aos Seus as nossas melhores lembranças. E receba o grande abraço muito amigo do sempre seu

Jorge

PS – Esquecia-me dizer-lhe que o meu compadre António Cândido gostou muito de V. e do Terra, e achou o Saraiva um pedante malcriado, surdo por dentro e por fora, e que é bom que fique aí. [1]
 

 

Araraquara, 4 de Junho de 1962*

P.S. Acuse imediatamente a recepção desta carta.

Caríssima Sophia

Chegado de São Paulo onde fui fazer uma palestra sobre poesia moderna portuguesa na «Mostra Internacional de Poesia» (onde li o seu Porque e a sua Meditação do duque de Gandia), encontro a sua carta sem data (a senhora da Intemporalidade!). Para que nada esqueça vou respondê-la a par e passo.

Obrigado pelos parabéns pelo nascimento da nossa «brasileira» que vai prosperando, com o frio pavoroso que tem sido o Inverno em que estamos agora a 5o, 8o, etc. – puramente europeus! E ainda bem que vocês vão singrando firmes no meio desses acontecimentos que já comentarei.
Também eu acho – com a ressalva de A Janela da esquina, de que V. não gosta muito, e de os Amantes de que V. não gosta nada – que A Noite que Fora de Natal é, dos contos que a Sophia conhece, o meu melhor. Nele pus todas as minhas ambições de renovação literária, e as «teológicas» também: não lhe terá escapado que é visceralmente «anti-cristão» o conto, embora não seja «anti-católico». Mas os meus contos melhores, na opinião dos amigos daqui, que os têm lido, são os que tenho escrito e estou escrevendo: uns para Novas Andanças; outros, para um livro agora impublicável em Portugal (não recordo se já falei dele), Os Grão-Capitães. Estes são, além de implacável libelo contra a sociedade portuguesa das últimas décadas, uma exemplificação do manifesto que as prefacia, em que proclamarei o «realismo fenomenológico» e integral… São, tematicamente, estilisticamente, pelas situações, etc. terríficos. Não sei se a Sophia, apesar da dignidade que eles possuam, tolerará o estadeamento de tamanha miséria e degradação – que temos de vomitar. Creio que são dos melhores contos que já se escreveram em português, até pela audácia técnica e experimental de todos eles. São, porém, verdades medonhas e pavorosas: não poupo nada, nem ninguém.

De certo ponto de vista, tem V. razão quanto ao Reino da Estupidez; mas há no meio daquilo tudo, uma série de tomadas de posição que são afinal o que mais me interessa. Parece que o livro, apesar da cortina de silêncio que os nossos insignes confrades têm lançado sobre ele (et pour cause…), tem tido êxito…

Não recebi ainda o Livro Sexto, que já vira anunciado e aguardo ansiosamente.

A carta francesa recebi, sim. E não respondi a ela, porque queria escrever ao Murilo, e mandar à Sophia a carta em cópia… acontece que a minha vida é inenarrável de trabalho nestes últimos tempos, e fez-me inclusivamente suspender toda a correspondência. Com efeito, repentinamente, desde meados de Março a fins de Abril, compus uma gigantesca tese sobre Camões (300 páginas de máquina), em que joguei todas as minhas teorias de técnica literária e camonianas… Tinha de ser entregue até 30 de Abril, data do concurso de livre-docência em Belo-Horizonte, na Universidade de Minas Gerais. A Universidade que é a 3a. do Brasil, depois do Rio e São Paulo (esta última, a cujo âmbito externo eu pertenço), queria que eu concorresse à cátedra, na sucessão do [Manuel] Rodrigues Lapa. Não me convém financeiramente, pois que como catedrático federal ganharia (independentemente do mais que me arranjassem), menos de metade do que São Paulo me paga (cerca de 120 contos, ou sejam 10 portugueses, que valem cá mais do que aí, apesar da alta do custo de vida, e o tempo livre para fazer o que quiser…). A livre-docência é o título acima de doutor, e equivale a catedrático sem cátedra e eu preciso de um título de letras, que não tenho, para não estar à mercê de qualquer conspirata que, «legalmente», me exclua do ensino. Aqui, Sophia, é como aí… é preciso usar navalha, e aguentar as navalhadas: só que se está menos só, e a luta é mais de igual para igual… Acabo de ser excluído, «legalmente», do concurso de «livre-docência», perdendo o trabalho e a paciência. Mas, como queriam que eu concorresse à cátedra, «amigos» e inimigos uniram-se para isso: e, agora, os «amigos» prolongam o prazo de concurso de cátedra, para eu concorrer… E uma comédia. Este mês de Maio foi de desgosto, de expectativa e de exaustão total, o que culminou tudo numa gravíssima «virose» ou seja um festival bacteriano que me ia levando a garganta, o pescoço, e não sei se a vida. Só na passada semana me recuperei um pouco. Aqui tem a razão do meu silêncio, e de não ter escrito ainda ao Murilo, explicando-lhe quem são esses «cafagestes» (adorável expressão brasileira): os Urbanos, Natálias & C.a. O que farei agora.

Já notara pelos recortes e uma ou outra «página» (e até pelo boletim do Grémio dos Editores, vendo que se publica), que a canalha tomou conta do «poder» literário, na preparação para a tomada do outro (que garantirá os êxitos financeiros daquele). E o resultado inevitável da degradação geral de um país que perdeu, totalmente, nas pessoas e nas coisas, o sentido da dignidade e da decência.

E, acerca disto, creio, Sophia, que, por carta, se pode dizer tudo, menos aquilo que seja inconveniente que se «saiba»… para prevenir os acasos de «leitura», que não se dão sempre, nem tanto quanto o terror aí imagina.

Neste momento – pegue lá esta bomba – chegou ao Brasil, com autorização do governo brasileiro, o A. Cunhal, ou seja o famigerado secretário-geral… Sabe ao que ele vem? Procurar uma reunião «deles», com o Manuel Sertório, com o [Henrique] Galvão (!!!), e com o [Humberto] Delgado, da qual seja excluído este seu amigo, o Casais e o Paulo de Castro, isto é, o triunvirato da esquerda não comunista. Já ninguém está pensando na queda do Salazar, mas na sucessão dele. É provável que, a estas horas, um emissário do Marcelo [Caetano] já se tenha avistado, em Paris, com o dito cujo secretário-geral… Está vendo o golpe? É preciso, quanto antes (e nisso estão todos de acordo), eliminar a esquerda que faça balanço entre a direita foragida do Estado Novo e o extremismo partidário, que mutuamente se servem. Eu continuo a pensar que não se deve entrar em combines com os reformistas caetânicos: eles que «sucedam», se quiserem e puderem, que nós assistiremos de palanque ao festival (e deve ser essa a nossa posição). Tudo o que muda é mudança: mas sem compromisso. O futuro limpo que desejamos pertence às esquerdas descomprometidas; que todos se associem e lhes preste muito. Considero que a unidade de toda as forças é necessária, mas sem entrar pelo Estado Novo adentro, ou é ele o que se passa para nós: já pensaram que é o que está acontecendo? Mas é preciso que essa unidade se faça lealmente, e sem aventureiros, que um partido que se não destalinizou (senão na fachada) continua a achar, inescrupulosamente, interessantes, como o caso do Galvão, de partida para os States com visto dos EE.UU., para depor sobre Angola nas Nações Unidas (os «trusts» do urânio, dos diamantes têm mais força do que nós… e do que o [Getúlio] Vargas…). Curioso, não é?

Tenho a impressão de que, aí, falta perspectiva para se verem e apreciarem estes «ballets». Eu, por mim, continuo apenas a querer ser… embaixador fora daí! E, entretanto, serei o professor universitário que todos se aplicarão em que eu não seja aí…

Para o Francisco e para a Sophia vão as nossas saudosas e afectuosas lembranças. Dê notícias. Escreverei logo que possa. E beija-lhe as mãos o seu muito amigo

Jorge

P.S. – Como vão os seus pequenos? Conte o que fazem. O Casais está morando aqui, perto de mim, que o trouxe para reger a Teoria da Literatura. Não sei ao certo o número da porta. Mas pode enviar-lhe o livro para: Faculdade de Filosofia de Araraquara, Caixa Postal 174, Araraquara – São Paulo – Brasil. [2]

Araraquara, São Paulo, 20 de Dezembro de 1962

Caríssima Sophia

Perdoe-me, se pode o meu silêncio. Mas eu já não sei que fazer para aguentar o trabalho incrível que é e cada vez mais vai sendo o meu. Todos os dias penso nas cartas que preciso de escrever àqueles que estão sempre presentes no meu coração; e todos os dias sucumbo ao peso das urgências atropeladas de tudo o que tenha aceitado fazer. Se, nestes últimos meses, eu não estivesse livre da direcção do Curso de Letras de que me demiti, não sei como estaria vivo… Acabo de enviar, hoje mesmo, para Ocidente, a primeira parte dos meus estudos medievais – será que sairão? Estão, a meu lado, as provas da minha História da Literatura Inglesa, para fazer o índice onomástico… Tenho, até ao fim do ano (é bem de ver que não posso), de entregar os meus estudos antológicos de Garrett e de Pascoaes. Acabo de assinar o contrato para a publicação do Livro do Desassossego, do Pessoa, cujos originais recebi. A Ática insiste pelos poemas ingleses dele, de que estou redigindo o prefácio. Recebi duas bolsas, uma federal e outra estadual, para a realização de uma edição crítica da Lírica de Camões. Terei de, depois do ano novo, partir para o Rio de Janeiro, com demora, para montar a máquina camoniana necessária. Estou concluindo um monumental estudo sobre Inês de Castro e a política portuguesa até ao fim do século XVI (que inclui a análise estrutural da Castro de [António] Ferreira). Tenho em mãos uma tradução imensa, porque preciso desse dinheiro. No sábado, tenho os exames finais de Literatura Inglesa, cuja especialização de 4o. ano regi, com um curso sobre Shakespeare… Junte a isto a falta de dinheiro, as tricas sinistras da vida universitária, a amargura com as canalhices da «oposição» (de cuja acção activa me afastei por completo), o desgosto por nada saber das minhas edições portuguesas (poemas, ensaios, etc.), a solidão que é a nossa aqui em Araraquara, e terá uma pálida imagem da minha vida e da Mécia.
A única alegria e a única certeza que ambos tivemos, neste fim de ano que foi para nós duríssimo, foi o feliz nascimento do nosso segundo brasileiro, um rapaz desta vez, o Nuno Afonso, que veio ao mundo, a este mundo que não sabemos já (e talvez não importe muito) que seja, no dia 5 deste mês.

Não foi, pois, por desinteresse que tenho estado calado, mas por humana impossibilidade. Espero que esta carta lhe chegue às mãos e se lhe demore nelas. Nunca imaginei que a P[IDE] se tentasse com os meus autógrafos… Resta-nos a consolação de pensarmos que ficaram sabendo o que já sabiam ou o que até bom seria que soubessem. A minha posição política continua inalterável: não tenho, e não terei nunca (a menos que me filie em mim mesmo), filiação partidária. Penso que a unidade de todos é a suma necessidade; mas reconheço que é impossível colaborar com a mediocridade invejosa, que é a dos nossos políticos, desde a clandestinidade em que mesmo no exílio se comprazem os comunistas, até ao Palácio de São Bento. Cada vez mais penso que Portugal não precisa de ser salvo, porque estará sempre perdido como merece. Nós todos é que precisamos que nos salvem dele. Mas sabe que não há maneira fácil? Eu, por exemplo, tenho feito por comportar-me como brasileiro em tudo, o que a minha vida oficial me impõe aqui: eu sou funcionário do Estado, assessor do Ministério da Educação (constará aí que se me deve que a Literatura Portuguesa seja obrigatória em todos os cursos superiores de Letras?), figura pública de mérito reconhecido. Isto sem abdicar em nada de ser o português que ninguém é mais do que eu. Pois só consigo ser suspeito a todo o mundo: aos «exilados», porque me abrasileirei, quando eles se recusam a tomar conhecimento do país em que vivem e do que vivem; e aos brasileiros (não aos meus amigos, é claro), porque sou um agente temível de «portugalidade»… No momento em que, no Rio, eu conseguia o triunfo (e consegui-o, sacrificando-me a partilhá-lo com brasileiros…) oficial da nossa cultura, recebi na imprensa a mais violenta campanha de que jamais fui objecto na vida. Tudo isto são as minhas alegrias – sem compensação alguma. E a vida encarece, vertiginosamente: se estou, com os vencimentos actualizados, ganhando três vezes mais do que quando entrei para o ensino, o custo de vida subiu quatro vezes… E, no momento em que o Brasil se encaminha para uma emancipado espantosa (que nos não é indiferente), não sabemos se os Estados Unidos não propiciarão um golpe de direita…

O primeiro número da Távola que recebi foi, há poucos dias, o 19, em que vem a notícia da morte do Bernardo Marques (que eu já sabia e me entristecera muito – sei que se suicidou). Foi no anterior que a vossa direcção começou? Neste vem a sua «Procelária», que é muito belo. Recebi, sim, o Livro Sexto acerca do qual ainda não escrevi nas minhas «Letras Portuguesas» do Estado de São Paulo, que têm estado suspensas pelas razões supra. Gostei muito do seu livro; parece-me – e creio ter-lhe já dito isto, em carta anterior – uma admirável renovação da sua mesma identidade de poeta sempre fiel a si próprio. Mas direi isto melhor e mais longamente.

Não sei já que poema meu lhe mandara para a sua revista que não houve… Mas deve estar inédito, porquanto há séculos que não publico poemas em Portugal. Aonde os publicaria? Pode, sem dúvida, publicá-lo na Távola.

Vou mandar-lhe um capítulo da minha magna tese inédita sobre Camões. E desculpe-me a pergunta: a Távola paga? Se paga, eu depois lhe direi a quem, que é meu cunhado de Lisboa, o nosso procurador aí.

Não posso agora pensar numa colaboração regular para vocês, que não cumpriria. Mas farei todo o possível por estar presente. Crónica sobre a literatura brasileira – poesia ou prosa – não farei; porque tenho mais que fazer do que ocupar-me das porcarias que aqui, como aí, se vão publicando. O que não quer dizer que eu não me considere especialista em Brasil, como poucos portugueses terão sido… É provável que, num momento de alívio (e de menor amargura, para não dizer coisas demasiado graves, que me criassem mais complicações do que as que já me bastam), eu retome convosco as "Cartas do Brasil" que eu escrevia para a Gazeta Musical, e que não continuei por estupidez dessa comunistada honorária.

Eu e a Mécia mandamos à Sophia, ao Francisco e a todos os vossos, os nossos mais afectuosos e saudosos votos de Natal e de Ano Novo. E creia na dedicação e na amizade do sempre seu

Jorge [3]

 

 

[1] —> Correspondência Jorge de Sena/ José-Augusto França, Lisboa, IN-CM, 2007, p. 223-5
[2] —> Correspondência Sophia de Mello Breyner/ Jorge de Sena, 3.ed, Lisboa, Guerra & Paz, 2010, p. 58-62
[3] —> Correspondência Sophia de Mello Breyner/ Jorge de Sena, 3.ed, Lisboa, Guerra & Paz, 2010, p. 67-71