Sinais de cinza: derivas homoeróticas na obra de Jorge de Sena

Em texto dos anos 80, Eduardo Prado Coelho apontava Jorge de Sena como uma das “figuras tutelares” da poesia portuguesa contemporânea e, dentre os pioneirismos que aí lhe atribui, há este: “Jorge de Sena introduziu na poesia portuguesa uma linguagem da sexualidade que não somente rompe com convenções e puritanismos ainda persistentes nos circuitos mais conservadores, como teve o mérito de propor uma demarcação […] entre o espaço da relação amorosa e o espaço da demanda sexual, o que veio a tornar muitas outras coisas possíveis à poesia portuguesa mais recente. Diria […] que Sena veio permitir à poesia portuguesa assumir certas dimensões de homossexualidade que, em anteriores poetas do amor […] se enunciava em termos de uma cuidadosa ambiguidade. Hoje, podemos afirmar que a homossexualidade é uma das áreas temáticas mais intensas e explícitas da poesia portuguesa contemporânea“. E, dos vários planos em que esta homossexualidade se verifica, destaca em primeiro lugar: “na linha de poemas claramente heterossexuais de Sena ou das suas admiráveis páginas poéticas sobre o enigma da pornografia ou dos corpos nus na areia indiferente das praias americanas, uma distinção muito nítida entre a temática amorosa e a temática sexual”. Estas observações do saudoso ensaísta também permitem indagar sobre a presença do homoerotismo na obra de Sena — tarefa a que se lança Antonio Manuel Ferreira, focalizando tanto a poesia como a prosa ficcional seniana.
 

 

 

1. Jorge de Sena é um obreiro intelectual de vocação omnívora. Parece exprimir em cada página uma vontade de tudo escrever, como meio de tudo compreender. Entendo desta forma a dispersão por múltiplos modos e géneros literários, bem como a intensa actividade ensaística e crítica, marcada, não raras vezes, por uma verve polémica que, mais do que traduzir um acrimonioso mal-estar, revela antes uma idiossincrasia ética dominada pela necessidade de destruir a superfície enganadora das coisas, para melhor se aproximar da matéria realmente viva, num processo de desocultação, como refere Jorge Fazenda Lourenço [1]. Há em Sena um propósito de verdade desamparada, mas, por isso mesmo, mais integral e genuína, cuja procura implica necessariamente a desconstrução dos estereótipos, em todos os domínios da actividade intelectual: no metassistema sociopolítico, nas leituras ideológicas da história e da cultura, nos preconceitos ético-morais.

 

A Weltanschauung seniana é fundamentada num antropocentrismo de raiz humanista, liricamente filtrado pelas lições mirandina e camoniana, cujos alicerces conferem ao homem não apenas o direito, mas igualmente a obrigação de procurar viver de forma plena, não elidindo nenhum factor da dignidade, quer a elisão resulte de negligência pessoal, quer advenha de factores alheios à vontade individual, como sejam, por exemplo, a repressão política ou a castração moral. A exigência ética que enforma o ofício do homem-escritor adquire uma dimensão pedagógica de longo alcance, que faz da literatura um modo de concertação pessoal e um meio de influência comunitária. E é do mesmo teor a exigência estética, ainda, de algum modo, na sequência do magistério humanista. Este substrato de matriz antropológica não compartilha, todavia, os pressupostos filosóficos de um antropocentrismo eufórico, enveredando, pelo contrário, por uma deriva de desconcerto maneirista, realisticamente fundamentada num tempo histórico e numa experiência pessoal marcadamente disfóricos.

2. “Liberdade” e “amor” são dois dos esteios essenciais da cosmovisão seniana. A importância da liberdade está abundantemente documentada na obra e na vida do escritor, quanto mais não seja através da denúncia de situações em que ela é destruída. A vivência pessoal do exílio, e consequente relacionamento conflituoso com a Pátria, é, neste âmbito, um testemunho expressivo da importância da liberdade política e mental. No que concerne ao amor como elemento imprescindível da plenitude humana, é impertinente escolher exemplos comprovativos, tal é a sua quantidade. E um dos veios de força do amor é o seu entendimento como “eros somatizado”, como acontece, de resto, na poesia de Eugénio de Andrade, mas de forma mais débil, tanto no plano semântico, como nos procedimentos retórico-estilísticos. A este nível, creio que a obra de Sena permanece relativamente isolada no panorama da literatura portuguesa. Com efeito, o pensamento livre e complexo do escritor, bem como a sua concepção do amor como força basilar do concerto desejado do mundo, conduzem-no à necessidade ético-estética de expandir o campo da representação erótica, de modo a poder contemplar a diversidade sexual inerente ao ser humano. Parecendo partilhar o princípio clássico Homo sum: nihil humani a me alienum puto (“Sou homem: nada do que é humano me é estranho”), inscrito pelo comediógrafo Terêncio no verso setenta e sete da peça Heautontimoroumenos (“O castigador de si próprio”), Sena constrói na sua obra lírica, narrativa e ensaística uma representação da sexualidade que pretende, aparentemente, ultrapassar os limites definidores da sua experiência individual. No ensaio “A poesia e a vida”, datado de 1972-1973, o escritor alerta-nos para os perigos das falácias biografistas, exemplificados através dos casos, entre outros, de Camões, Dante, Proust e António Nobre (Sena, 2005: 104) [2]. Mas sendo a sua literatura tão marcadamente testemunhal, e partindo o testemunho da experiência do homem que, como sempre acontece, precede o escritor – mesmo em casos insólitos como o de Mário de Sá-Carneiro [3] – é importante salientar, neste ponto, a circunstância biográfica. Ou seja, em toda a sua obra, Jorge de Sena reflecte sobre o amor e a sexualidade, a partir de características autorais configuradas por uma visão estritamente heterossexual, como pertinentemente assinala Eduardo Pitta [4]. Consequentemente, as derivas homoeróticas discerníveis na obra não obedecem a uma natural necessidade de expressão vital, nem são condicionadas por motivações de natureza programática ou politicamente panfletária. Convém, no entanto, salientar que o estatuto psicossocialmente maioritário que assegura a persona intelectual do escritor está longe de obedecer aos traços caracterizadores da maior parte dos escritores portugueses, senão da sua totalidade. É precisamente por isso que a obra de Jorge de Sena se afirma com uma originalidade incomparável.
A poesia de António Botto, Luís Miguel Nava, Joaquim Manuel Magalhães, Al Berto, Isabel de Sá ou, de modo mais alusivamente metafórico, Eugénio de Andrade – para dar apenas alguns exemplos canónicos – exprime literariamente um erotismo que configura, na sua totalidade, uma experiência existencial concorde com o mundo literariamente representado. Não havendo em Portugal uma literatura globalmente gay, como defende Eduardo Pitta [5], estes e outros escritores dão, no entanto, voz literária a um tipo de sexualidade que não deflui apenas de pressupostos epocalmente esteticistas – como acontece, por exemplo, no romance naturalista O Barão de Lavos, de Abel Botelho , mas resulta da necessidade de uma afirmação eticamente vital. Exprimem, portanto, a vivência da sexualidade pessoal – experimentada ou desejada, o que, neste contexto, e apenas neste, tem uma valência ontológica equivalente. Ora, no caso de Sena, tal não acontece, porque, como já referi, a perspectiva do autor é sempre heterossexual, apesar dos matizes retórico-semânticos deflagradores de uma questionação tendencialmente libertária e, consequentemente, em dessintonia com o Zeitgeist histórico-literário.
Desta perspectiva biográfica provêm várias consequências projectadas nos textos, e que afectam não apenas a motivação textual do tema, mas igualmente a sua representação lírica, narrativa ou ensaística. Ou seja, ao contrário dos escritores homossexuais supracitados, Sena parte de uma enciclopédia pessoal tendencialmente vazia, ou melhor, sem a plenitude em construção que fundamenta os seus textos sobre o amor heterossexual. Alguns poemas inscrevem, é certo, uma figuração sexual pictoricamente ambígua, de contornos andróginos e pansexuais, como já tem sido salientado pela crítica [6]. A androginia dos corpos e das situações radica, porém, numa enciclopédia cultural e erudita que, evidentemente, não elimina a projecção narcisicamente indagadora do sujeito lírico, mas também não resulta de uma compulsiva textualização de dilemas biograficamente caucionados. O “eu” que observa o encontro pagão de corpos erotizados manifesta, todavia, um encantamento que não é apenas intelectual, mas que se encaixa numa visão do mundo refractária à culpabilização cristã da sexualidade. Os belíssimos poemas “Post-metamorfose: variação primeira” e “Dançarino de Brunei”, do livro Metamorfoses (1963), parecem-me, neste plano, inteiramente iluminadores. No primeiro poema, o cenário marinho e paganizado reactiva a memória da “Ilha dos Amores” camoniana e, segundo esse modelo, liriciza um quadro de liberdade erótica protagonizada por “deuses”, logo a partir dos versos iniciais: “Ao sol ardente, ao mar azul, ao vento que/lhes faz vibrar a pele, os deuses dão-se/numa nudez total de agreste juventude” (Sena, 1999: 119). E no remate do poema, é ainda uma figura divinizada que fica na memória de quem observa a cena: “Apenas o tinir das gargalhadas/subsiste ainda, e na memória o vulto/do deus que se espreguiça à beira de água” (ibid: 121). O erotismo teofânico, embora possa simbolizar uma humanidade juvenilmente adâmica, precisa da figuração mítica para se apresentar esplendoroso e liberto. Creio, aliás, que a erótica camoniana obedece a uma concepção similar. No poema “Dançarino de Brunei”, assistimos ao mesmo tipo de questionação, e a plasticidade ecfrástica não se limita, como é evidente, à mera descrição semanticamente intransitiva. Com efeito, a visão de um “corpo que se ondula duro e frágil/como de amor a força requebrada” (ibid.: 114) vai conduzir à interrogação filosófica que encerra o poema, em tom de desesperança antecipada:

Quando será que de ocidente a morte
virá matar-nos, antes que matemos
com deuses feitos homens os humanos deuses
que já tão poucos sobrevivem límpidos
como este corpo se dançando em si
(e as mãos paradas segurando os ares?)
(ibid.: 114)

3. A dimensão autobiográfica de textos como Sinais de Fogo ou Os Grão-Capitães lenifica um pouco a falta de experiência autoral, do mesmo modo que a sensibilidade modelada pela alta cultura contribui, como vimos, para o preenchimento das lacunas da enciclopédia. Mas tanto num caso como no outro, trata-se de uma posição de voyeur que pretende entender algo que lhe diz respeito, porque é humano, mas que, em princípio, não faz parte do seu universo privado. É talvez por isso que a representação do homoerotismo na obra de Jorge de Sena é genericamente periclitante. Uma passagem do romance Sinais de Fogo é amplamente ilustrativa deste condicionalismo. No capítulo trinta e quatro da quarta parte do romance, Jorge a personagem principal e modelizada por biografemas autorais de que o nome é apenas o exemplo mais evidente – deambula, em passeio nocturno, pelas ruas da Figueira da Foz, e encontra, por acaso, um noctívago Rufininho, que exerce no romance a função de vítima expiatória da hipocrisia moral burguesa, e que, no encontro nocturno com Jorge, reifica o medo da homossexualidade sentido pelos heterossexuais mais convictos, como é o caso do protagonista. Jorge vence pelo riso uma fantasmática ameaça que só ele concebe, como se pode verificar no passo seguinte: “Olhei-o de soslaio, pensei «É agora que ele vai cair de joelhos, com a boca aberta e as mãos estendidas para a minha braguilha», e não contive um riso que, em gargalhadas que se atropelavam, quase me engasgou” (Sena, 1984: 388). Perante o receio de Rufininho, o verdadeiro ameaçado, que pretende afastar-se, Jorge chama-o em tom imperativo e conduz toda a conversa no sentido de tentar compreender uma realidade sexual que lhe é estranha, mas que lhe interessa não apenas do ponto de vista intelectual, mas porque faz parte dos seus fantasmas aterrorizadores. Há várias passagens em Sinais de Fogo que revelam o receio da cedência à experimentação, sobretudo quando se trata de homossexuais que não obedecem aos códigos estereotipados, e portanto não deletérios, da representação tipificada [7]. Exacerbando voluntária e desesperadamente os traços grotescos de uma tipificação redutora, Rufininho diminui o atrito entre o rosto e a máscara, ao mesmo tempo que oferece ao moralismo maioritário uma trégua redentora. Ele é o “anormal”, o “invertido efeminado” que nada esconde e que, por isso mesmo, não constitui um perigo. Carnavalizando-se, Rufininho anula-se enquanto portador da desordem. É um ser funambulesco, habitante da noite e dos lugares de venalidade sexual. A sua figura desqualificada só é potencialmente ameaçadora nas ligações espúrias, mas recorrentes, que a sociedade burguesa mantém com o submundo. Veja-se, por exemplo, que Jorge e Mercedes têm o seu ninho de amor secreto na mesma casa, e, por vezes, na mesma cama onde Rufininho se encontra com os seus amantes, entre os quais se conta o sobrinho de Ti Mariana, a proprietária da vivenda acolhedora de necessidades eróticas compulsivas [8].
Não é, no entanto, esta afronta superficial que abala a segurança do protagonista. O desequilíbrio psicossocial advém fundamentalmente de Rodrigues, porque ele não se enquadra no estereótipo redutor e domesticado de Rufininho. Nos seus traços de carácter insistentemente debilitados pelo narrador, Rodrigues é uma das personagens mais dramáticas do romance, e, também por isso, uma das mais interessantes: é um homem que se define neste grito confitente: “Eu só tenho raiva” (ibid.: 215). Mais do que qualquer outra personagem, ele ocupa um lugar sem espaço: faz parte da sociedade diurna, confortavelmente iluminada, mas é igualmente o símbolo do meretrício mais destruidor, que faz sorrir, de forma torpe, os empregados de hotel, e conduz Jorge – tido como amigo indefectível – a traí-lo numa missão de sórdidos enganos, profundamente aniquiladores da dignidade.
Perdido e equivocado nas suas contradições, Rodrigues divide-se entre o amor impossível, mas idealmente purificador, e o comércio sexual. Porque lhe recusam a alma, rendibiliza o corpo como único signo socialmente reconhecido. Mas não fica em lugar nenhum; não pertence a nenhum dos lados da fronteira. Fazendo parte do grupo dos “normais”, é, todavia, um indivíduo anatemizado e perturbador: não é inteiramente recusado, nem totalmente aceite; é apenas tolerado por motivos classistas e de afectividade grupal [9]. E, por outro lado, também não usufrui da abdicação ironicamente confortável, protagonizada por Rufininho. A bissexualidade de Rodrigues – social, ética e erótica, ao mesmo tempo , embora prostituída, constitui assim o motivo instigador da indagação de Jorge.
Oscilando entre a documentação “exemplar” de Rodrigues e Rufininho, a deriva homoerótica de Sinais de Fogo reduz-se a uma figuração fantochizada, incapaz, portanto, de aprofundamento hermenêutico, ao contrário do que acontece, por exemplo, nas longas divagações de Jorge acerca da sua relação amorosa com Mercedes. A superficialidade da reflexão é ainda, de certo modo, coadjuvada pelo ambiente de leveza estival, que contamina igualmente outras áreas temáticas do romance, nomeadamente a conspiração política ambiguamente derrogada pela figura excessiva do tio Justino, na sua relação teatralizada com os exilados espanhóis.
Há ainda o caso do muito jovem Luís, apodado de “Dona Micaela”, nos momentos de explosão do machismo mais incontido. E há também o episódio expressionista do velho e do seu equívoco amante juvenil, num ambiente de saturnal etílica e inconsequente. O adolescente miserável e sem pouso representa, ao nível erótico, nada mais do que um motivo para a reafirmação da masculinidade normalizada. No plano sociopolítico, esboça um conteúdo potencialmente mais rendoso, mas a necessária elaboração diegética não é prosseguida no romance. Perante a figura excruciante e paternal do velho protector e amante, a sua decisão de não acompanhar o grupo de meninos burgueses embriagados confere-lhe, no entanto, uma grandeza moral intrinsecamente equívoca, é certo, mas que contrasta, mesmo assim, com a mesquinhez patética e estultamente iconoclasta dos machos, acolitados por prostitutas sexualmente pacificadoras da virilidade imaculada.
A cena em que Luís reafirma, perante Jorge, a sua masculinidade irrepreensivelmente normalizada é apenas isso. Não permite – ao contrário do que parece sugerir Eduardo Pitta [10] – leituras de tessitura mais compexa. Trata-se, em suma, de uma demarcação do terreno erótico-afectivo [11] que havia sido questionado pelas alusões inocuamente assassinas do tio Justino e pela presença tolerada de Rodrigues – o verdadeiro anjo do mal, equiparável, em tom menor, à personagem luciferina que no romance e filme Teorema, de Pasolini, encarna o espírito da desordem erótica.

4. É outro, bem diferente, o ambiente sociopolítico que enquadra os contos de Os Grão-Capitães. Como tem sido salientado pela crítica, especialmente por Francisco Cota Fagundes, nos seus magníficos ensaios sobre a narrativa breve seniana, o volume Os Grão-Capitães é, a partir da enunciação titular [12], um repositório de anti-heroísmo a que a figura palimpséstica de Vasco da Gama serve apenas de contraste demolidor. Apodrecendo em pleno reino cadaveroso, os capitães nada têm de grande. Mesmo a tendência repressiva que os caracteriza é apenas mero estilhaço de uma violência maior que os conglomera num microcosmo moralmente concentracionário. Em Os Lusíadas, a exemplaridade de Vasco da Gama advém, em grande medida, da obediência a um poder régio que, mesmo à distância, funciona como bússola reguladora. É verdade também que essa reverência sem mácula contribui para transformar o “valeroso Capitão” num herói relativamente menor, se comparado com as figuras mais humanizadas de Ulisses e Eneias. De resto, Camões apercebe-se bem da falência dos seus propósitos encomiásticos em várias partes do poema e, especialmente, no remate. Mas é evidente que, neste contexto, o que mais interessa é a figura de Gama formatada pela tradição grandiloquente, e é nessa medida que ela funciona como contraponto aos capitães de Sena, reforçando a sua negatividade. Isto é, a autoridade distante que pessoalmente concretizam não se fundamenta na lhaneza, mas na distorção de carácter. E é nesse contexto miasmático que são inscritos os episódios homoeróticos.
Como acontece em Sinais de Fogo, Jorge de Sena constrói cenários sociais claramente estereotipados, prevalecendo a visão de uma sexualidade desviada, quer se trate do machismo castrense, que exemplifica a hipermasculnidade como mito homossexual, quer se trate, no outro extremo, da desvirilização urbana e correlatos episódios de sexo clandestino. No que diz respeito ao reconhecimento da hipermasculinidade como transferência dissuasora de uma deriva homossexual latente, é o próprio Jorge de Sena quem nos fornece a explicação esclarecedora, numa passagem do excelente verbete sobre o “Amor”, quando afirma o seguinte:

O machismo de dominadora ostensividade viril, em certas sociedades, como o desportivismo violento e “masculino” de outras, são muitas vezes uma não-efeminada homossexualidade que se defende de si mesma pela violência, ou se disfarça nos padrões estabelecidos para a masculinidade (Sena, 1992: 38).

O macho hiperbólico e o seu contraste efeminado inscrevem-se, portanto, numa moldura literária condicionada pelos mesmos mecanismos socioculturais [13]. Não há, realisticamente, lugar para uma tentativa de figuração da diversidade sexual como projecto erótico-afectivo divergente e – digamos assim – inteiramente merecedor das garantias protocolares de dignidade humana socialmente considerada. Ora, a desvalorização da natureza no pensamento do escritor [14], ou seja, a sua recusa enquanto entidade autónoma e desvinculada da presença humana, não tem que ver apenas com a natureza física, mas igualmente, e de forma mais profunda, com o imponderável sedimento instintivo – digamos assim à falta de melhor expressão – que subjaz ao comportamento humano. Não significa isto que Jorge de Sena conceba um homem purificado dos seus apelos basicamente instintivos; significa apenas um entendimento do ser humano como construtor e construção de uma determinada cultura. Vão nesse sentido – parece-me – as suas polémicas reflexões sobre a importância psicossocial da prostituição e da pornografia [15]. Entende-se, portanto, pelo menos aparentemente, o tom simplista da narrativização do homoerotismo em Sinais de Fogo e Os Grão-Capitães. Isto é, a pobreza do universo ficcional decorre apenas, coerentemente, do pacto de verosimilhança estabelecido com o mundo de referência. Note-se, no entanto, que é completamente diferente o discurso do escritor, quando desvinculado dos protocolos de verosimilhança literária, como se pode comprovar no texto que apresenta a segunda edição de Poesia – I, publicada pela editora Moraes:

Moralmente falando sou um homem casado e pai de nove filhos, que nunca teve vocação para patriarca, e sempre foi em favor de a mais completa liberdade ser garantida a todas as formas de amor e de contacto sexual. Nenhuma liberdade estará jamais segura, em qualquer parte, enquanto uma igreja, um partido ou um grupo de cidadãos hiper-sensíveis, possa ter o direito de governar a vida privada de alguém. (Apud Coelho, 1999: 56)

Esta claríssima declaração de princípios dá-nos o mote perfeito para referirmos a diferença fundamental que existe entre Sinais de Fogo e Os Grão-Capitães: o substrato político. O que acaba por ser curioso, porque o romance é, no seu nível de superficialidade diegética, mais politizado do que os contos. Mas se passarmos da estrutura de superfície para o magma descontínuo da totalidade, verificamos terem mais densidade política as situações representadas nos contos, nomeadamente no que concerne às questões do amor e da sexualidade. Em Sinais de Fogo, o cenário de veraneio fragiliza a maior parte dos confrontos e, por isso mesmo, a violência latente raramente explode. Tudo acaba na putrescente paz solar. Pelo contrário, nos contos de Os Grão-Capitães, a violência constitui um dos Leitmotive unificadores da sequência narrativa, tanto no plano das relações heterossexuais (veja-se, como exemplo, “Homenagem ao Papagaio Verde”), como no domínio dos equívocos de carácter homossexual. Em qualquer dos casos, o que prevalece, com uma energia narrativa nitidamente audível, é o retrato de uma sociedade injusta e intrinsecamente disfuncional, que perverte o poder de Eros e que, por consequência, de acordo com a reconhecida paleta de valores do autor, não permite às pessoas uma relação com a vida assente em parâmetros de dignidade. No fundo, as representações estereotipadas da homossexualidade na narrativa de Jorge de Sena constituem apenas mais um dos elementos veiculadores da denúncia testemunhal. É como se o escritor pretendesse dizer: “eu relato o que vi, o que me foi permitido conhecer. E não gostei”. Como nós, leitores, também não gostamos. E não gostamos porque todos nos sentimos diminuídos: quem age, quem relata e quem lê.
Este efeito de mesquinhez aviltante é, portanto, descompassado em relação à mundividência do autor. Consequentemente, temos de ler a redução como processo semântico-pragmático propiciador de uma visão contraditória. Ou seja, a figuração da pobreza erótica e afectiva – e neste caso tanto vale ser hetero como homossexual – integra-se num propósito maior de denúncia dos mecanismos de repressão. Dando forma a um universo empobrecido, porque hipocritamente mascarado, Jorge de Sena convida-nos a ler – e reside aí o saldo pedagógico das narrativas –, o inexprimível, porque não representável, de acordo com os pressupostos teóricos de procura do realismo integral, temperado com o sabor cronístico, explicitamente expostos nos prefácios a Os Grão-Capitães. No “PS 1974 ao Prefácio que se segue”, declara a vocação cronística dos contos, nos termos seguintes: “Pelas datas fictícias que na portada de cada conto vão inscritas, a acção deles cobre um quarto de século de 1928 a 1953. E é como crónica amarga e violenta dessa era de decomposição do mundo ocidental e desse tempo de uma tirania que castrava Portugal, que eles agora, uma dúzia de anos depois de escritos, devem ser lidos” (Sena, 1989: 14). E quanto à questão do realismo, o escritor começa por dizer no “Prefácio (1971)” que: “Nestes contos de um realismo que se quis integral, a experimentação estilística com as estruturas narrativas não é menor que nos contos de Novas Andanças” (ibid.: 16), para acabar da seguinte maneira: “Nenhum realismo o será, se recuar aflito, mas porque, aflito, não recua” (ibid.: 21).
O mesmo é dizer que elidir literariamente a violência hipócrita seria trair a realidade historicamente situada.

5. Há, todavia, outros domínios do trabalho criativo de Jorge de Sena que nos propiciam uma visão, senão mais amena, pelo menos mais complexa, e, portanto, mais interessante e enriquecedora. Trata-se de traduções e prefácios em que o poeta-ensaísta revela um conhecimento aprofundado do homoerotismo como tema literário e artístico. Neste âmbito, adquirem especial relevo a tradução e estudo dos poemas de Konstantinos Kavafis, e, sobretudo, o elevadíssimo prefácio que antecede a sua tradução dos Poemas Ingleses, de Fernando Pessoa. Neste prefácio magistral, Jorge de Sena demonstra, com uma sensibilidade e inteligência fulgurantes, o seu entendimento profundo do “caso erótico” Pessoa. E esse entendimento resume-se numa proposta hermenêutica devastadora. Segundo ele, a poesia de António Botto atingiu o ápice da qualidade durante o tempo que em que despertou o interesse de Pessoa. Questão de datas, podemos dizer, ou questão de gosto. Nada de particularmente relevante, portanto. O que se afigura extraordinário é defender que António Botto pode ser considerado um heterónimo de Pessoa: o heterónimo que escreveu em português o tipo de poesia que o poeta de Antinous só terá exprimido em inglês – uma língua à época incompreensível – e por intermédio de uma dramatização epicédica de recorte classicizante [16]. Considerar Botto um heterónimo de Pessoa é, a meu ver, a melhor representação do homoerotismo na obra de Jorge de Sena.
Mas há um poema, entre outros relevantes, que me parece particularmente importante. Trata-se do texto intitulado “«Romeu e Julieta», de Tchaikowsky”, inserto no livro Arte de Música (1968). Sempre achei um pouco desconcertante a inclusão do compositor da sinfonia Pathétique num escol de afinidades electivas e musicais em que avultam Bach, Mozart, Debussy ou Wagner. Não porque Tchaikowsky não mereça fazer parte de tão selecta companhia – embora Aguiar e Silva o nomeie como exemplo explicador do kitsch [17]. Comparado com a complexa matemática de Bach, a alta poesia de Mozart ou a soberba grandiosidade teutónica de Wagner, talvez Tchaikowsky resvale, em certos momentos, para uma estética musical fracturada por uma expressividade sentimental, cuja notação biográfica nem sempre sabe eludir o sentimentalismo. Talvez seja kitsch, mas esse pecadilho estético é resgatado por uma emotividade exposta, que não contribui apenas para o sucesso comercial do compositor, mas lhe garante também uma autenticidade artística a que Sena não era de todo insensível. Recorde-se, por exemplo, a sua leitura de José Régio, nomeadamente a desconstrução crítica da pobre acusação de umbilicalismo, levada a cabo por neo-realistas ideologicamente cerceados e por pseudomodernos claramente precipitados [18].
O poema sobre Tchaikowsky é, no entanto, intrinsecamente ambivalente. É duvidoso o juízo estético do poeta sobre a música que ouve, estando, portanto, noutro lugar o seu interesse pelo compositor. A “Fantasia-Abertura «Romeu e Julieta»” é oximoricamente considerada um “belo cântico, cheio de estrondos e lirismos fáceis”, e “um poema da juventude que se desconhece no horror/de não se diferenciar” (Sena, 1999: 142).
A partir da andrógina definição de Tchaikowsky como “Romeu e Julieta num mesmo adolescente apaixonado e/tímido” (ibid.: 141), é a trágica homossexualidade do compositor que dinamiza a indagação perquiridora de Jorge de Sena. No prefácio aos Poemas Ingleses pessoanos, temos explicitada a apropriação de Botto por Pessoa – e seria interessante, a este nível, mas com outros contornos, uma reflexão sobre o interesse de Régio pelo autor das Canções, descontando, desde logo, o mero intuito economicamente rendoso, recentemente revelado nas cartas a Alberto de Serpa ; em “«Romeu e Julieta», de Tchaikowsky”, lateja, como subtexto maior, o “caso” Mário de Sá-Carneiro. A cisão dual configurada no poema reifica-se dramaticamente na exemplaridade canónica do par shakespeariano; mas a linguagem mais acutilante tem a marca irrefragável da tragédia grotesca de Sá-Carneiro, nomeadamente no dístico final: “E sonha e faz sonhar, nesta grandeza tão sonora e fútil,/do horror de ser-se e de não ser-se dois” (ibid.: 142). Não pretendo afirmar, como é evidente, que escrevendo sobre o compositor russo, Jorge de Sena pretendesse aludir ao autor de A Confissão de Lúcio [19]. Parece-me apenas que, com provável inadvertência, circula no macrocosmo poético do escritor – incluindo narrativa, tradução e ensaio – uma interrogação peregrina e instigante sobre as múltiplas faces de Eros, aquele deus exigente que, segundo o poeta grego Anacreonte, se abate sobre o homem com a violência metálica de um machado [20]. Os poetas clássicos, desde Safo a Horácio, passando por Catulo e Virgílio [21], sabiam, com inescapável certeza, ser vão todo o esforço para evitar os assaltos, mesmo extemporâneos, do inclemente deus do amor [22]. E sabiam também, muito melhor do que nós – apesar de não conhecerem Freud e os seus discípulos – que as imposições inelutáveis de Eros não admitem recusas – vejam-se o caso exemplar de Narciso, ou a sofisticação ludibriada, mas existencialmente eficaz, de Fernando Pessoa. E também não se submetem às normas falsas inventadas pelos homens, na sua ânsia de disciplinarem os caminhos que conduzem à improvável felicidade.
Correndo o risco de me transviar nas veredas da sobreinterpretação, creio ser esta a mensagem educadora que brilha, com muitos sinais, na obra de Jorge de Sena. Ele talvez não gostasse do tom enfático e voluntarioso da expressão “mensagem educadora”. Mas os sinais são dele: alguns são de fogo, outros são de cinza. O jovem poeta que nas praias da Figueira da Foz sente, pela primeira vez, e em total desconcerto, o assalto intempestivo da Musa avassaladora, sabe, desde então, que os sinais de cinza também desencaminham a deriva humana sobre a terra [23]. E não há outra. Somos filhos de “Caim”, a arquipersonagem seniana que, no conto do mesmo nome, escolheu o caminho que se desvia da promessa divina de paraíso salvífico [24]. Escolheu, dos sinais, a cinza mais aparentada ao barro. Escolheu ser homem. São terríveis as consequências. E maravilhosas também. Sem essa escolha, não haveria poetas como Jorge de Sena.

 

Notas:

1. “Um dos propósitos da obra de Jorge de Sena é, precisamente, o de descobrir, o de desocultar, desvendar, descobrir a realidade, no sentido de levantar o véu ou o manto, mais ou menos diáfano, feito de regras e preceitos, com que tapamos a nossa realidade, colectiva ou pessoal, com que, no fundo, damos alguma segurança e aconchego ao nosso incerto existir quotidiano” (Lourenço, 1999: 132).
2. Repare-se que a posição de Jorge de Sena quanto à falácia biográfica é muito equilibrada, como se vê nesta passagem do artigo: “Por certo que, quando alguns factos biográficos nos sejam conhecidos, eles podem ajudar a interpretar alguns passos de uma qualquer obra, compreender melhor o sentido de uma vida. Esta vida, porém, nunca nos importou, nem importa, senão porque houve uma obra que a fez importante para nós, quer essa obra seja outra, quer seja aquela que o autor «biografou»” (Sena, 2005: 103-104).
3. Ainda no mesmo ensaio, Sena faz, a propósito de Sá-Carneiro, esta pergunta essencial: “Ou será que o que atrai em Proust é a sua homossexualidade, o que atrai em Nobre é a ridícula incapacidade para amar sem ser por procuração, e o que atrai em Sá-Carneiro é a desproporção entre a vulgaridade do drama e a grandeza que ele lhe deu?” (ibid.: 104).
4. Eduardo Pitta afirma o seguinte: “(…) Sena escreve sempre de um ponto de vista heterossexual, e nem por isso a sexualidade por si ficcionada se esquiva à tensão homoerótica, definindo inequivocamente o enfoque do texto” (Pitta, 2003: 16).
5. “Mas literatura gay é coisa que não existe em Portugal” (Pitta, 2003: 31). E não havendo literatura, também não existe ensaísmo, como se pode concluir do texto preambular de apresentação do ensaísta: “O presente ensaio, sobre a condição homossexual na literatura portuguesa contemporânea, insere-se na tradição (entre nós inexistente) dos gay studies”.
6. Veja-se, por exemplo, o artigo “Amor, erotismo e gender na poesia «brasileira» de Jorge de Sena”, da autoria de Camillo Cavalcanti (http://camillocavalcanti.blogspot.com).
7.Veja-se, por exemplo, a “cena” seguinte, protagonizada por Jorge e Rodrigues: “Nus, com as roupas no braço, estávamos diante um do outro, e havia nos olhos dele um frio cortante e fixo. Brandamente, empurrou-me um pouco pelo corredor adiante, e agachou-se diante de mim. Fechando os olhos, senti-me coberto de suor frio” (Sena, 1984: 408). Curiosamente, apesar do “suor frio”, Jorge apenas fecha os olhos, e não se afasta. É, pois, Rodrigues quem sai vencedor deste drama burlesco: “ Com que então foi com isto que a fizeste tua? . Não respondi, e ainda que quisesse não poderia. Esperei. Não aconteceu nada” (ibid.: 408).
8. A proprietária da casa, que é uma figura extraordinária, responde assim aos pruridos de Jorge: “Sim senhor, os rapazes estiveram aqui neste quarto, e é sempre para este quarto que o menino Rufininho vem. Se o senhor não quer servir-se da mesma cama, porque acha que essas coisas se pegam, vá lá para dentro” (ibid.: 204).
9. Atente-se no seguinte pensamento de Jorge, depois do encontro nocturno com Rufininho: “E lembrei-me de que, ao deixar que se sentisse, talvez sem querer, um homem a meu lado, instintivamente percebera a diferença entre o modo como tolerava o Rodrigues e não suportava ver de perto aquele Rufininho” (ibid.: 393).
10. Veja-se a seguinte constatação de Eduardo Pitta, comentando a cena referida: “Parece-me irrelevante que o desenvolvimento da narrativa desfaça (e será que desfaz mesmo?) o logro aparente. Naquele preciso momento, «Jorge» descobriu-se objecto do desejo de «Luís», e descobriu isso com «um dos seus», num contexto peculiaríssimo” (Pitta, 2003: 16).
11. Eis a síntese da cena: “Abracei-o, e senti que ele se colava inteiramente a mim, abraçando-me com força. Perplexo, deixei-o estar, até que ele se soltou. Sorria triunfante, e deitou abaixo as calças do pijama. Depois, sacudindo o sexo flácido, disse: Se a amizade que eu tenho por si, grande, grande como é, fosse o que você pensou, isto não ficava assim. Tenho a certeza que não ficava” (Sena, 1984: 472).
12. Francisco Cota Fagundes conglomera os “grão-capitães” no comentário seguinte: “Embora estes personagens – assim como vários outros de menos importância – como o sargento das «Ites», o Silva nos «Salteadores»– sejam individualizados nos contos em que aparecem, eles são também tipos. É a eles que o título satírico do livro se refere” (Fagundes, 1999: 154).
13. As experiências sexuais adolescentes, proporcionadas pelo ambiente do colégio, são desvalorizadas no seguinte comentário: “ No fim de contas, essas coisas aconteciam no colégio, e sempre percebi que vocês não davam grande importância a isso, quando eram apanhados por cima” (Sena, 1984: 270). No conjunto de poemas intitulado “América, América, I love You”, do livro Sequências, há três poemas que têm a vantagem de referir a questão num tom de ironia e divertimento: “Sabedoria”, “As peúgas”, “Pelo buraco aberto pacientemente” (Sena, 1980: 96, 108, 111).
14. Recorde-se a seguinte afirmação, numa entrevista a Frederick Williams: “A natureza interessa-me se os seres humanos ou marcas humanas estão nela. Doutro modo, não estou interessado nada na natureza” (Apud Coelho, 1999: 55).
15. Veja-se a seguinte passagem de “Resposta a um inquérito sobre pornografia”: “Com efeito, ler textos indecentes ou ver fotografias pornográficas pode ser um prazer para muita gente, e às vezes o único que lhes é concedido, pois que as pessoas podem ser idosas, solitárias, não atractivas, e não encontrarem nunca o chinelo velho para o seu pé doente, razão pela qual uma oficializada prostituição, ou uma totalmente protegida libertação sexual, é obra de caridade para com os feios e os tímidos” (Sena, 1977: 283-284).
16. “(…) Sob este aspecto, e tendo-se em conta que o melhor período de António Botto é o que coincide com o interesse de Pessoa pela sua poesia, até à morte deste em 1935, quase se seria tentado a considerar que, de certo modo, Botto foi também um heterónimo de Fernando Pessoa – e que este se «realizou» também na poesia daquele, e na vida a que ela correspondeu” (Sena, 1982: 26).
17. “(…) Outras vezes, ainda, o kitsch manifesta-se de modo mais complexo e subtil, aflorando ou espraiando-se em romancistas como Dickens, Camilo ou Dostoiewskj, em compositores como Verdi ou Tchaikowskij, em pintores como Renoir ou Salvador Dali, etc.” (Aguiar e Silva, 1999: 124).
18. No remate do artigo “A poesia e a vida”, Jorge de Sena diz o seguinte: “Há décadas passadas, foi moda atacar José Régio por, dizia-se, contemplar o próprio umbigo. O mais que pode dizer-se, hoje, é que mais vale o próprio do que o alheio. Porque, se uma pessoa começa no umbigo, é um perigo onde acaba” (Sena, 2005: 108).
19. Uma das questões estruturantes de A confissão de Lúcio é o problema da “posse” erótico-afectiva, que, a dado momento da novela, explode da seguinte forma: “Ao estrebuchá-la agora, em verdade, era como se, em beijos monstruosos, eu possuísse também todos os corpos masculinos que resvalavam pelo seu” (Sá-Carneiro, 1982: 123). Ora, em Sinais de Fogo, a cena em que Luís exige possuir a mesma mulher que havia sido possuída por Jorge parece reflectir, com bastante distância, é certo, o mesmo tipo de questionamento elaborado na novela de Mário de Sá-Carneiro. Repare-se na seguinte passagem do romance: “Mas o Luís, agarrado a ela, arquejou: Não, não, ele primeiro – e, como eu começava a vestir-me, veio segurar-me as mãos numa súplica: Não, não, venha – e arrastou-me para a cama onde, numa fúria, me abracei à mulher e a penetrei enfim. Quando acabei e me despeguei de cima dela, o Luís estava de joelhos na cama, ao meu lado. Ela fez menção de levantar-se, mas ele, atirando-se-lhe para cima, não lhe deu tempo, e penetrou-a violentamente” (Sena, 1984:469).
20. O aludido poema de Anacreonte é traduzido assim por Maria Helena da Rocha Pereira: “Com um grande machado, tal um ferreiro, de novo,/Eros me bate e mergulha-me numa torrente invernal” (Rocha Pereira, 1982: 118).
21. Recorde-se, como exemplo confirmador, o famoso verso sessenta e oito da segunda Écloga de Virgílio: “me tamen urit amor; quis enim modus adsit amori?” (Vergil, 1986: 48).
22. Jorge de Sena também sabia isso, como se pode ver na seguinte passagem de “Resposta a um inquérito sobre pornografia”: “O amor – EROS – existe, e é na verdade e felizmente uma força terrível. Por isso tantos cobardes físicos e morais lhe têm um medo dos diabos” (Sena, 1977: 281-282).
23. A passagem é realmente extraordinária: “E, de repente, ouvi dentro da minha cabeça uma frase: «Sinais de fogo as almas se despedem, tranquilas e caladas, destas cinzas frias». Olhei em volta. De onde viera aquilo? Quem me dissera aquilo? Que sentido tinha aquela frase? Tentei repeti-la para mim mesmo: Sinais de fogo…Mas esquecera-me do resto. (…) «Sinais de cinza os homens se despedem, lançando ao mar os barcos desta vida»” (Sena, 1984: 113). 
24. Eis a resposta rebelde de Caim, perante a tentativa de sedução divina: “ Hipócrita! Não me compras com as tuas escorregadias palavras de perdão…Vou-me embora, sim! Pode ser que tenha filhos! Pode ser que seja feliz! Que te perdoe, que chame por ti! Mas não há-de ser onde tu quiseres! Vou-me embora, mas não pela tua ponte! Não quero nada do que te pertence, não aceito nada do que me ofereces! Vou para onde a minha vontade me levar” (Sena, 1986: 39).

Bibliografia:

AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de (1999). Teoria da Literatura. 8ª ed. Coimbra: Almedina.
CAVALCANTI, Camillo (artigo consultado em 4 de Março de 2008). “Amor, erotismo e gender na poesia «brasileira» de Jorge de Sena”. (http://camillocavalcanti.blogspot.com).
COELHO, Eduardo Prado (1999). “O nó dos tempos”. In SANTOS, Gilda (ed.). Jorge de Sena em Rotas Entrecruzadas. Lisboa: Edições Cosmos, 51-68.
FAGUNDES, Francisco Cota (1999). Metamorfoses do Amor: Estudo sobre a ficção breve de Jorge de Sena. Lisboa: Edições Salamandra.
LOURENÇO, Jorge Fazenda (1999). “Jorge de Sena: o brilho dos sinais”. Românica 7, 131-141.
PITTA, Eduardo (2003). Fractura – A condição homossexual na literatura portuguesa contemporânea. Coimbra: Angelus Novus.
ROCHA PEREIRA, Maria Helena da (1982). Hélade – Antologia da Cultura Grega. 4ª ed. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
SÁ-CARNEIRO, Mário de (1982). A Confissão de Lúcio. 6ª ed. Lisboa: Ática.
SENA, Jorge de (1977). “Resposta a um inquérito sobre pornografia”. In Dialécticas Teóricas da Literatura. Lisboa: Edições 70, 273-290.
(1980). Sequências. Lisboa: Moraes Editores.
(1982). “O heterónimo Fernando Pessoa e os Poemas Ingleses que publicou”. In PESSOA, Fernando. Poemas Ingleses. Lisboa: Ática, 11-87.
(1984). Sinais de Fogo. 3ª ed. Lisboa: Edições 70.
(1986). Génesis. 2ª ed. Lisboa: Edições 70.
(1989). Os Grão-Capitães. Lisboa: Edições 70.
(1992). Amor e outros Verbetes. Lisboa: Edições 70, 25-68.
(1999). Obras de Jorge de Sena – Antologia Poética. Ed. Jorge Fazenda Lourenço. Porto: Asa.
(2005). “A poesia e a vida”.In Poesia e Cultura. Porto: Edições Caixotim, 103-108.
VIRGIL (1986). Eclogues. Ed. Robert Coleman. Cambridge: Cambridge University Press, 48.
 

 

* António Manuel Ferreira é Professor Associado c/ Agregação do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro.