Estudos sobre o vocabulário de “Os Lusíadas” (1982), publicado postumamente, é um dos principais volumes camonianos de Jorge de Sena, que demonstra a sua dedicação minuciosa à obra do poeta quinhentista. O verbete a seguir revela de modo bastante claro o método empregado pelo ensaísta para a análise literária, que mobiliza diferentes estratégias e referências para investigar os meandros da epopeia.
Vimos que, em Os Lusíadas, ocorria que formavam virtuosa companhia os mil religiosos que em procissão foram com Vasco da Gama ao lugar de embarque em Belém (IV, 88). O adjectivo ocorre mais uma vez (X, 130), quando Téthis, descrevendo o Extremo Oriente, a ser descoberto e visitado, menciona a China e a sua muralha célebre, e diz que “estes o Rei que têm não foi nacido / Príncipe, nem dos pais aos filhos fica. / Mas elegem aquele que é famoso / Por cavaleiro sábio e virtuoso” [1]. Trata-se de uma descrição de monarquia electiva, em que o homem de armas e nobreza [2] que seja famoso por sabedoria e virtude, é quem sucede no trono ao que o precedeu. É-nos imediatamente evidente que estas duas ocorrências de virtuoso não estão para significar o mesmo, independentemente da ironia camoniana que se ocultará na primeira, e da curiosa seriedade com que o princípio ideal de um governo electivo é apresentado no passo em que a segunda comparticipa como elemento fundamental. Que significa virtude para o Camões de Os Lusíadas?
O vocábulo ocorre 16 vezes: duas no canto IV, quatro no Canto VI, uma no VII, três no VIII, duas no IX, e quatro no Canto X. É de notar que as duas ocorrências de virtuoso coincidem em dois destes Cantos – o que não quer dizer que, nos Cantos I, II, III, e V, não há a quem se aplique virtuoso ou virtude, e que, por pouco, o não haveria no Canto VII. Ou que não aparecera ocasião em que Camões comentasse, ou fizesse alguma personagem comentar, do que se poderia significar por “virtude”. Mas não é menos certo que, se Camões escreveu mais ou menos a seguir a sua epopeia, não se lembrou de a usar (a virtude) antes de a narrativa da batalha de Aljubarrota lha suscitar (IV, 35). Tratando-se de uma noção essencial da sua cultura – como veremos pelos contextos –, qual a razão de não ocorrer na narrativa da viagem do Gama até Melinde (os dois primeiros Cantos), nem na que o Gama faz da história da Primeira Dinastia, nem no Canto em que ele narra a sua viagem até Melinde (contando o que Camões não contara naqueles dois primeiros)? Historicamente, a noção não era aplicável a antes dos fins do século XIV? E, do ponto de vista na narração épica da viagem do Gama, não o era, antes da chegada a Melinde (já que o vocábulo não ocorre para essa parte da viagem, quer na narrativa do autor, quer na da personagem central)? Para o aspecto cronológico, poderá haver explicações conexas com a difusão específica do conceito no século XV. Para o que se refere à viagem do Gama de Lisboa a Melinde, em que tantos trabalhos e perigos se acumulam em momentos selectos, poderíamos supor que eles são as provações de que a virtude se constrói. Consideremos, portanto, as ocorrências, e vejamos o que nos dizem, analisando-as uma por uma.
IV, 35 – “o ânimo valente / Perde a virtude contra tanta gente”
Trata-se do momento em que os portugueses fraquejam em Aljubarrota, e alguns são mortos pelos adversários, porque etc. Virtude, aqui, está por “qualidade”, “coragem” do ânimo valente.
IV, 81 – “A sua virtude louvada vive e crece, / E o louvor altos casos persuade”
Diz o Gama que o rei o convidou para dirigir a expedição, o que é uma ordem que ele dedicadamente aceita cumprir, e o rei logo lhe agradece com mercês sumptuosas, do mesmo passo que “com razões m louva esta vontade” (a coragem, a decisão, a obediência esclarecida), porque etc. Isto é, porque o rei sabe, ou soube para Vasco da Gama, que o louvor incita a mais altos feitos, como a virtude (a qualidade de quem é capaz de dar-se a tais feitos) se alimenta e desenvolve quando receba incitamento benévolo.
VI, 24 – “por virtude da erva poderosa”
Camões descreve a chegada dos deuses marinhos para o Consílio dos Deuses do Mar. E, numa perífrase de alusão mitológica, menciona Glauco que foi transformado em deus marinho, sendo um pescador que comeu de uma erva que vira peixes comerem, enlouqueceu e atirou-se ao mar, aonde Oceano e Téthis o deificaram. Tinha o dom da profecia, e era crido que vagueava pelas costas e ilhas mediterrânicas, proferindo oráculos e lamentando que a sua imortalidade o impedisse de morrer (aspecto que veio a repetir-se, na sobreposição de dom profético e de impossibilidade de desejada morte, para a Sibila de Cumes). Camões não o descreve fisicamente (era representado como um velho com cauda de peixe, escamoso, coberto de algas e conchas), mas, logo após aludir à sua metamorfose, diz que ele vinha chorando o mal que Circe fizera à sua amada Cila (os amores de Glauco e delas fizeram parte do seu mito). Mas é interessante que ele se lembre de trazer Glauco a seguir a Melicertes, referido na estrofe anterior, como vindo com sua mãe Leucotea, brincando pela areia. Este jovem deus, de origem fenícia, veio a ter tal importância no mundo helénico, que os Jogos Ístmicos em honra de Poseidon (= Neptuno) vieram a ser celebrações funerárias dele, que se afogara no mar e fora deificado; os romanos tinham-no por divindade protectora dos portos. Mas, no mito de Glauco, há também a história de a razão da sua loucura e de querer alimentar-se como um peixe para poder penetrar as águas ter sido a sua paixão por Melicertes, com quem em vários cultos era identificado e confundido. A continuidade de ambos mostra que Camões não ignorava as afinidades entre os dois; e a virtude (força, qualidade específica, poder de metamorfose) poderosa da erva, ou a virtude da erva poderosa (é este um dos muitos exemplos, como o célebre “tão cedo desta vida descontente”, em que Camões joga com a flutuação adjectiva para criar uma ambiguidade profunda), assume um complexo sentido que pode ser uma alusão erótica.
VI, 63 – “A dama (…) / Se alegra, e veste ali do animal de Hele / Que a gente bruta mais que virtude ama”
No episódio dos Doze de Inglaterra, esta dama é a que esperava pelo Magriço que chegava atrasado para defendê-la. A gente sem refinamento prefere os ornamentos exteriores e o ouro deles à virtude. O vocábulo ocorre num contexto cavalheiresco, pelo que se reportará mais às qualidades de coragem e cavalheirismo de espírito e atitudes do que a “virtudes” ético-religiosas.
VI, 96 – “algua obra heróica de virtude”
Esta ocorrência é perfeitamente clara quanto à conotação “heróica” de virtude (não as “virtudes heróicas” que definem a santidade, a não ser em muito bélico-cavalheiresco sentido). No fim do Canto VI, quando os nautas chegam à vista da Índia, Camões comenta que tais feitos, e as consequentes honras imortais, não se alcançam, se uma pessoa se encosta aos “Troncos nobres de seus antecessores”, nem se fica nos leitos dourados, nem com manjares novos e esquisitos ou passeios moles e ociosos, nem com os “vários deleites infinitos/ Que afeminam os peitos generosos”, nem com os “nunca vencidos apetitos/ Que a Fortuna tem sempre tão mimosos,/ Que não sofre a nenhum que o passo mude/ Pera algua obra heróica de virtude”. Alcançam-se, sim, com estes hórridos perigos e com estes trabalhos graves e temores. A virtude é o contrário do efeminamento dos peitos generosos, e está essencialmente ligada ao carácter enérgico, firme e corajoso, num sentido heróico – e de generosidade e isenção a este nível.
VI, 98 – “Desprezador das honras, e dinheiro,/ Das honras, e dinheiro, que a ventura/ Forjou, e não virtude justa, e dura”
Na mesma sequência, é reiterado o que foi dito antes, e a adjectivação justa e dura sublinha o que observámos – dura, é claro, no sentido de “firme”, contrário ao mole efeminamento, e não no de uma dureza de insensibilidade, grosseria, ou brutalidade. E as honras e o dinheiro só merecem respeito, quando são adquiridos como prémio da virtude, e não por acaso da ventura.
VII, 70 – “com virtude sobrehumana”
Refere Monçaide que os portugueses, de quem ele informa o Catual, expulsaram, no passado, os seus mouros antepassados “dos campos abundosos/ Do rico Tejo, e fresca Guadiana,/ Com feitos memoráveis e famosos” – o que foi realizado graças àquela virtude, àquela coragem e firmeza de propósito, superior ao que se esperaria de forças humanas (o eu ecoa os “Em perigos e guerras esforçados,/ Mais do que prometia a força humana” da primeira estrofe da epopeia).
VIII, 40 – “Aqueles pais ilustres que já deram/ Princípio à geração que deles pende,/ Pela virtude muito antão fizeram”
No fim de explicar as Bandeiras, Paulo da Gama faz reflexões sobre a nobreza transmitida, e que se perde nos descansos corrutores em que os descendentes vão ficando. Portanto, aqui, num contexto ideologicamente análogo, virtude tem a mesma conotação de peculiares virtudes de heroísmo, que se conservam não apenas pelo nome, mas pela contínua ilustração deste.
VIII, 54 – “De consciência, e de virtude interna”
Num breve excurso sobre as qualidades dos conselheiros e privados dos reis, o poeta declara que estes devem ter cuidado em que aqueles sejam dotados de etc. (e também de sincero amor). Repare-se como, para acentuar que se não trata da virtude no sentido que ele primacialmente atribui à palavra, ele a qualifica de interna (este adjectivo só aparece mais duas vezes: em VI, 8, para o “mais interno fundo das profundas/ Cavernas altas”, onde mora Neptuno; e em X, 4, para o interno coração onde o vinho move súbita alegria), isto é, íntima, inerente a uma honestidade de alma.
VIII, 99 – “Até os que só a Deus omnipotente
Se dedicam, mil vezes ouvireis,
Que corrompe este encantador, e ilude:
Mas não sem cor contudo de virtude.”
Na última estrofe do Canto, ao termo da meditação moral sobre o dinheiro e a corrupção (em conexão com a estadia do Gama na Índia), com que o encerra, Camões dá, por derradeiro e supremo exemplo dessa corrupção, o dos que se dedicam a Deus, ou seja o clero – e acentua a ironia com a seta ervada da hipocrisia. Os religiosos “virtuosos”, como se vê, nem sempre o são: pior ainda, escondem atrás de aparências de virtude a sua cobiça e a sua simonia. Assim, a virtude não é nem a heróica que conduz a altos feitos, nem a interna da pureza de alma – é apenas cor disso…
IX, 81 – “Ou na virtude de teu gesto lindo”
Na Ilha dos Amores, Leonardo, na sua fala à ninfa Efire, diz que espera que a alma dele, que vai presa dos cabelos dela, ou a ele pesará demasiado, e deixará de fugir-lhe, ou – e verso citado – ela lhe mudará, à alma, a triste e dura estrela. Nestes jogos conceituosos da poesia amorosa, virtude é “poder”, “influência”, etc., mais ou menos como no caso da erva que transformou Glauco – e não deixe de reparar-se a repetição da conexão com a ideia de transformação ou metamorfose. A leveza do jogo verbal vai ao ponto de usar estrela, e dura, para situação ocasional e não para “destino”, “fado”.
IX, 90 – “Caminho da virtude alto e fragoso”
Os heróis antigos, comenta o poeta, ascenderam ao Olimpo, sobre as asas da Fama, por obras valerosas (note-se a repetição da expressão que apareceu logo no início do põem, para “aqueles que por obras valerosas/ Se vão da lei da Morte libertando”), “pelo trabalho imenso, que se chama/ Caminho, etc.” [3]. Como, no contexto, se não trata de santos mas de heróis, este caminho alto e fragoso (assimilado à senda da virtuosa santidade, pelas alturas e as fráguas a vencer) é o do heroísmo ou da dignidade que lhe equivalha.
X, 55 – “Mas com virtudes certo singulares,
Vence os imigos da alma todos sete”
É, na fala da Ninfa. Na Ilha dos Amores, parte das referências a D. Henrique de Meneses (a quem celebra o soneto “Esforço grande igual ao pensamento”), herói famoso pelas virtudes militares e morais (ainda que o seu temperamento impetuoso e violento não justifique o mito índico que faziam dele, e que casou e teve descendência, pelo que não levou a castidade até o tálamo conjugal). O facto de esse homem apresentar qualidades, ou se considerar que apresentava, inerentes à vida “virtuosa” (no sentido ético-religioso), a par da virtude que temos observado predominante nas ocorrências analisadas, é evidentemente o que leva Camões a pluralizar o vocábulo, e para acentuar a pluralização, e ainda para que lado pende o plural usado (para o combate aos inimigos da alma), lá está o adjectivo singular (que, na epopeia, ocorre mais sete vezes, sempre como “raro”, “eminente”, “excepcional”). Note-se que Camões, ao referir os inimigos da alma todos sete, quer dizer, por certo, os pecados mortais (que o são por prejudicarem a imortalidade).
X, 104 – “Se mostrará a virtude em armas clara”
O verso, nas profecias de Téthis, pertence à menção de D. Filipe de Meneses (sobre quem se pode consultar o nosso A Estrutura etc.). A deusa aponta o lugar onde etc. O em armas clara nitidamente sublinha a natureza heroica daquela virtude.
X, 113 – “Que inimiga não há tão dura, e fera,
Como a virtude falsa da sincera”.
A “virtude falsa” – que já vimos referida nesta série – é o pior inimigo (o mais duro e fero) da “virtude sincera”, que igualmente o tem sido. O passo pertence ao incidente de o principal dos sacerdotes indus perpetrar um caso horrendo (matar o próprio filho) de que acusa S. Tomé. Isto é, os interesses criados, ameaçados pela virtude – aqui, para “santidade”, – não recuam perante nada.
X, 155 – “De quem virtude deve ser prezada”
Este verso da penúltima estância do poema coroa condignamente, do ponto de vista semântico, a série. Porque ocorre, quando o poeta diz: “Pera servir-vos braços às armas feito, / Pera cantar-vos mente às Musas dada, / Só me falece ser de vós aceito, / De quem etc.”. Camões apresenta-se, no fim de tudo, como uma imagem ideal de homem dotado de virtude: heroico para os feitos bélicos, artista para celebrá-los, e portanto digno de ser aceite de D. Sebastião – o que lhe falta, e mais nada, para que a imagem se complete com os merecidos prémios de que a virtude vive e crece…
Em Roma, Virtus era a divindade simbólica dos altos feitos em combate. Era associada a Honos, a abstracção deificada da Honra, e com Belona, antiga deusa da guerra, que os romanos vieram a identificar com uma esposa de Marte (o Ares grego). Durante o Império, era costume celebrar a virtus dos imperadores – mas a abstracção do “valor” já existia desde pelo menos c. 200 a. C.[4]. Camões retém muito viva a acepção heroica de virtus, segundo o exemplo clássico, que já implicava peculiares qualidades morais (reais ou atribuídas). Mas acrescenta-lhe, sem dúvida, outros critérios de poder, elegância ou dignidade aristocrática, persistência e firmeza de carácter, e cultura – que expandem aquela acepção, sem todavia a transformarem, quer em virtudes religiosas, quer em virtudes burgueses. A sua virtude é, assim, a virtu dos tratadistas italianos do Renascimento e do Maneirismo – e de modo algum, ao contrário do que primariamente se possa supor, uma mistura de religiosidade da Contra-Reforma com heroísmo de cavaleiros medievais. A ênfase no carácter heroico do conceito está em inteiro acordo com uma lúcida cultura clássica (que foi apanágio dos séculos XV e XVI, como ainda dos dois seguintes) e com a que tinha naqueles tratadistas – e também com a estrutura socio-cultural de Portugal, desde os princípios do século XV, quando, apesar de uma grande nobreza de sangue, que está cerca da Casa Real como não sucedera tanto na Primeira Dinastia, há toda uma centralização do poder na pessoa do rei, nitidamente afirmada com D. João II. E toda a nobreza média e pequena tinha de reportar-se aos seus serviços, ou de contar com eles, para receber as tenças que materializassem, por força da virtude, a posição aristocrática que era a dela. A dialéctica da “virtude” e da “recompensa” não dependia, porém, mais em Portugal do que noutra parte, da virtude do príncipe – na própria Itália, a virtú dos condottiere dependia muito da gratidão das cidades ou principados que lhes pagassem generosamente (e o patriciado de uma cidade soberana era, na verdade, como que um principado colectivo em que algumas famílias tinham a hegemonia), quer para exercer-se, quer para conservar-se. E essa dialéctica não era necessariamente e especificamente feudal, nem pressupunha uma rigidez hierárquica impossibilitando a mobilidade vertical do indivíduo, já que a acumulação global de um património de virtú e do correspondente reconhecimento social dela podia, a qualquer momento, fazer um indivíduo (e a família com ele) saltar para uma órbita superior. Demasiado se esquece que o feudalismo (e houve diversas formas dele, no tempo e no espaço), se previa relações de dependência, também permitia o escapar-se a elas, que mais não fora pela interacção contraditória de relações desse tipo. Que os príncipes de Avis, como o rei D. Duarte ou o infante D. Pedro, apresentem nas suas obras uma preocupação principesca com a virtude de governantes e de servidores, nem é relento feudal, nem subconsciente manobra de uma oligarquia que se instala no poder, como sucedera com o pai e respectivos aderentes. Pedir que, príncipes, não fosse como príncipes que pensassem e escrevessem é o mesmo que julgar que não foi como César que César escreveu os seus comentários, ou não foi como Cícero (o mestre por excelência, com Séneca, da filosofia moral dos séculos XV e XVI) que Cícero compôs os seus tratados e discursos. No que tiver daqueles dois aspectos sem sê-los essencialmente, o conceito é uma atitude nova que reflectia o espírito do Renascimento, com os seus interesses laicos (independentemente de a Igreja ser o fiel último – que foi para o Renascimento inteiro, ainda quando a criticava ou queria que ela se reformasse), e, do ponto de vista dos homens públicos, a preocupação com o bem público, com a responsabilidade moral ou pragmática de governar, e com o sentido terreno e político das relações humanas no plano ético-jurídico e social. O povo, para baixo dos burgueses das cidades e dos artesãos das mesmas, ou de tradicionais famílias de camponeses livres, não tinha existência em parte alguma do mundo: e não pode dizer-se que, em grande parte dele, a tenha hoje [5]. Para entender-se o que era aquela virtú que veio a ser identificada com os condottiere italianos, mas os homens do Renascimento procuravam todos proclamar a que ponto a possuíam e lhes era reconhecida, e como ela estava ligada a uma noção familiar, tribal, nacional, carregada de tradições clássicas, não há como ler, por exemplo, a discussão sobre a ascensão e queda das famílias, ou a descrição da sua própria personalidade, que um dos tratadistas mais influentes – o grande artista e escritor Leone Battista Alberti (1404-72) –, e um dos que mais diretamente contribuiu para isso que tão vagamente se chama Renascença, faz na sua obra [6], discutindo precisamente da virtú. E, para quanto a ideia de homem universal pelo exercício dela estava conexa com virtudes heroicas (ainda que ironicamente, no caso de “príncipes”) de coragem e decisão, não há como ler em Machiavelli a biografia do condottiere Castruccio Castracani da Lucca ou Il Príncipe, onde a palavra virtú circula por toda a parte. Esta virtude era a dos heróis do espírito ou das armas – as virtudes eram de toda a gente que virtuosa fosse [7], e, se serviam para ganhar o céu, não chegavam para ganhar-se um lugar na imortalidade terrena. E a dignidade do homem em Quatrocentos e Quinhentos (tão segura de si ali, tão angustiada aqui) não era apenas uma consolação interior: era um espectáculo público e uma obra de arte [8].
Santa Barbara, Março de 1971
NOTAS
1 Sábio, como adjectivo, ocorre 18 vezes com esta. Para o sábio Grego (Ulisses) (I, 3); para o “Mouro (…) velho, sábio” em quem Baco se transforma em Moçambique (I, 77); para o mesmo “Mouro” (…) sábio e velho”, logo adiante (I, 82); para o piloto mandado a Vasco da Gama e que era “sagaz, astuto, e sábio em todo o dano” (I, 83); para o piloto que o Gama terá em Melinde e será sua certa e sábia guia (II, 63), em que “certo” contrasta a sabedoria de todas as perfídias que o outro tinha; o sábio capitão (Nun’Álvares) (IV, 36); a invenção de sutil juízo e sábio (o astrolábio) (V, 25); os pregadores muçulmanos que converteram o Perimal, de sábios e eloquentes que eram (VII, 33); os sábios magos das Índias, que haviam profetizado, diz o Catual, futuras vitórias de gentes estrangeiras (VII, 55); o sábio peito do Gama, de onde ele tira a voz grave com que fala ao Samorim (VII, 59); o Mauritano sábio que é Monçaide traduzindo o que Paulo da Gama descreve das Bandeiras (VIII, 1); novamente o sábio peito do Gama, recebendo a notícia de que os seus feitores foram presos, e prendendo, em represália, os mercadores que estavam a bordo (IX, 9); as sábias Magas que são mulheres que prendem os apaixonados com palavras sutis (IX, 33); Duarte Pacheco, na guerra forte e sábio (X, 21); os sábios cavaleiros, preteridos pelas aparências da lisonja no crédito dos reis (X, 24); Martim Afonso de Sousa, “Tanto em armas ilustre em toda parte, / Quanto em conselho é sábio e bem cuidado” (X, 67); e, por fim, a ocorrência citada no texto. É claro que sábio está por uma fluida gama em que se combinam, ou prevalecem, “prudente”, “experimentado”, por um lado, e “sabido” por outro (com duas ou três ocorrências em que há a conotação de “saber teológico, ou científico, ou profético”). Precisamente para o caso de Ulisses, há o passo de X, 24, em que ele é citado, no contraste entre “os prémios de Ajax merecidos” e a “língua vã de Ulisses fraudulenta”, e que nos esclarece acerca da sabedoria que Camões lhe atribuía, em comparação com heróis bélicos. Sabido, como substantivo, não ocorre. Sábio, substantivamente, ocorre uma vez (V, 22), a propósito da tromba de água, para os sábios que são mandados ver “na escritura/ Que segredos são estes da Natura”. O vocábulo escritura só ocorre esta vez; junto desta ocorrência uma outra vez (V, 23), para ironia acerca do que grandes escrituras teriam os antigos Filósofos deixado, se tivessem visto “as maravilhas que eu (Vasco da Gama) passei”; no fim da vasta fala do Gama, estrofes adiante, quando ele diz que “A verdade que eu conto nua e pura/ Vence toda grandíloca escritura” (V, 89); e ocorrera, antes, primeiro (IV, 56), quando o Gama comenta que “Maravilhas em armas extremadas, / E de escritura dinas elegante” fizeram os cavaleiros de D. Afonso V no Norte de África. Logo, o vocábulo não é nunca as Sagradas Escrituras, mas obras literárias ou filosóficas (de filosofia natural). Estas últimas, por muita autoridade tradicional que detenham, devem ceder o passo ao sabor da experiência (não da experimentação científica). Sabiamente ocorre duas vezes: para o prometido (e falso) piloto de Moçambique, por quem os nautas seriam “Guiados pelas ondas sabiamente” (I, 52); e, na oração do Gama em II, 30, quando ele diz: “Quem poderá do mal aparelhado/ Livrar-se sem perigo sabiamente, (…)”, no sentido de que não há saber que valha contra o mal devidamente organizado. Saber (subst..) ocorre cinco vezes: saber humano, no passo citado anteriormente (II, 30); o só de experiências feito (IV, 94); o esforço e saber dos que são preteridos pelos privados dos reis (VIII, 41); a força e saber do vice-rei D. João de Castro (X, 71); o saber alto e profundo do fabricador da Máquina do Mundo (X, 80), a única ocorrência em que a palavra se refere a Deus, e não ao saber das outras quatro humanas ocorrências.
2 Cavaleiro (subst.) é o torpe Ismaelita (I, 8) que Camões deseja que D. Sebastião vença, entre outros povos; o invicto cavaleiro que foi D. João I (I, 13); nobres cavaleiros são os nautas, a quem o rei de Melinde recebe (II, 76); o cavaleiro português em desproporção de um para cem, na batalha de Ourique (III, 43); o famoso cavaleiro Mem Rodrigues de Vasconcelos (IV, 24); os cavaleiros que caçam o leão em Ceuta, numa comparação com Nun’Álvares atacado (IV, 34); o mesmo Nun’Álvares (IV, 35); os fortes companheiros, subidos cavaleiros a quem se dirige D. João I (IV, 37); o invicto cavaleiro que D. Afonso V seria, por África, se não tivesse tido pretensões ao trono de Castela (IV, 54); os cavaleiros que com este rei em África triunfam (IV, 56); o “Gentil, forte, animoso cavaleiro” que foi D. João II enquanto príncipe (IV, 59); os Doze de Inglaterra são todos e um só cavaleiro, destro, ou esforçado (VI, 53); seu cavaleiro é o Magriço, da dama que o espera para defendê-la no torneio (VI, 59); o mesmo, quando chega à última hora (VI, 62); os cavaleiros galegos e leoneses que o conde D. Henrique de Borgonha superou no combate aos mouros (VIII, 9); o cruzado Henrique de Bonn, famoso cavaleiro (VIII, 18); Geraldo-sem-Pavor (VIII, 21); o que se chamava Martim Lopes (VIII, 23); os soberbos cavaleiros que Gonçalo Ribeiro matou em Castela (VIII, 27); os sábios cavaleiros, mencionados na nota anterior, preteridos pela lisonja (X, 24); o cavaleiro sábio e virtuoso que ascende a imperador da China ou da Mongólia, citado no princípio do texto (X, 130); e os cavaleiros (referidos como uma classe) que Camões recomenda a D. Sebastião que tenha em muita estima (X, 151), ao final da epopeia. Cavaleiro (adj.) ocorre três vezes: na apóstrofe do poeta aos matadores de Inês de Castro (III, 130), e para Sepúlveda (V, 46) e o Leonardo amoroso da Ilha dos Amores (X, 75). Note-se como cavaleiro é usado numa rigorosa conotação histórica de equacionamento de aristocrata = combatente a cavalo, para as referências conexas com a história da Primeira Dinastia, com a batalha de Aljubarrota (vista cavalheirescamente), com os Doze de Inglaterra, com os combates tidos por cavalheirescos no Norte de África, e ainda o jovem e futuro D. João II. As restantes referências substantivas são para o Ismaelita norte-africano (que, na tradição muçulmana, era um aristocrata), duas referências em termos de moralidade social contemporânea (como protesto e como recomendação ao rei), acentuando que os cavaleiros (ou sejam os que tinham esse título como pertencentes à Casa do rei, ou eram membros das ordens militares, etc.) merecem especial crédito e atenção, os próprios nauta chegando a Melinde, e o homem que, por mérito, ascende a imperador. Estas últimas referências estão despojadas da conotação histórica de combate a cavalo, e de cavaleiros, das anteriores: os cavaleiros são agora uma classe em que se recrutam os servidores do rei, a pé ou por mar, e países há aonde eles até chegam a imperadores… É indiferente, na interpretação de X, 130, para compreensão das intenções do poeta, saber se ele se refere à China ou à Mongólia (como nos parece que é o caso, visto Camões mencionar primeiro a China, depois a muralha famosa, e depois um império de cada lado dela), a aonde terá ido ele descobrir tal informação errónea, como já foi discutido pela crítica. Substantivamente, os cavaleiros eram já só aquilo, embora Camões sonhasse que continuassem a ser, mitologicamente, o que, para a contemporaneidade, ele mesmo só considerava adjectivamente. Mas, não esqueçamos, que ele era, segundo documento que lhe concede a tença em 1572, cavaleiro fidalgo de minha casa…
3 Obras valerosas ocorre mais três vezes, entre estas duas referidas no texto (I, 17; III, 84; V, 92), e, em I, 9, ocorre feitos valerosos. O Gama é chamado ou dito Capitão valeroso ou vice-versa, três vezes (I, 64; II, 2, 109). O deus Marte (Mavorte) é valeroso (I, 41), e Afonso IV, no Salado, também o é (III, 108). Alexandre Magno avança na Índia, “De palmas rodeado valerosas” (VII, 54) – passo que dá a conotação clássica do Triunfo. Em VII, 82, ironicamente, Camões, após queixar-se às ninfas do Tejo das suas misérias, exclama: “Vêde Ninfas que engenhos de senhores/ O vosso Tejo cria valerosos,/ Que assi saber prezar com tais favores/ A quem os faz cantando gloriosos” – em que se espelha a contradição, que ele sempre denuncia, entre o valor dos capitães portugueses e a incapacidade deles para a apreciação das artes. E só numa única ocorrência (VIII, 62) o adjectivo se refere a presentes, coisas materiais. Valor ocorre 16 vezes, em conotação que, desde a primeira (I, 3), se sintetiza bem na última (X, 74): “Honra, valor, e fama gloriosa” – que bem poderia servir de definição para virtude nestas ocorrências épicas. Sobre as relações histórico-semântica entre honra, virtude, ver adiante o texto. Acrescente-se que a série esforço, esforçar, esforçado, esforçadíssimo (que aquela época conotava com “heroísmo”) tem, na epopeia, globalmente, 45 ocorrências, vinte das quais se concentram nos Cantos III e IV (os da narrativa da História heroica de Portugal até à partida do Gama), repartindo-se mais 15 pelos Cantos VIII e X (Bandeiras e profecias heroicas).
4 Belona é mencionada no poema: “Dos jogos de Belona verdadeiros” (VIII, 27), na explicação de uma das Bandeiras de Heróis. Note-se como, tratando-se, no caso, de torneios fatais, isso é elegantemente dito no verso citado: são jogos bélicos a sério… – e como a velha deusa romana da guerra é referida num contexto de transfiguração heroica. Outra Belona, mas importada da Capadócia, houve na Roma antiga, desde o séc. I a. C., que não foi, e não deve ser, confundida com aquela. Honra ocorre na epopeia 23 vezes, quase sempre no sentido de “honrarias”, mas também no conexo com virtude: o que significa que este conceito absorvera parte do conteúdo daquele, no sentido bélico-heroico. É de notar historicamente, quanto a Roma, o seguinte. Cerca de 212 a. C., Marco Marcelo, o conquistador de Siracusa, ampliou o já existente templo de Honos, adicionando-lhe o culto de Virtus. As duas entidades eram divindades masculinas, e ambas juvenis na sua iconografia: Honos cercado de louros, e Virtus com um elmo ricamente ornamentado. É um elmo como este o que se depreende que usa Marte na epopeia (I, 37) – e quem declaradamente os usam são os Doze de Inglaterra (as três outras ocorrências da palavra), ainda que não de diamante como o do deus da guerra, que é luxo para divindades.
5 O vocábulo povo ocorre 56 vezes em Os Lusíadas, em todos os Cantos menos no VI, e predomina, com 12 ocorrências em cada, nos Cantos III e VII. É, na ordem de frequência, o 27º substantivo do poema, e aparece em sentidos correntes: “populações”, “nação”, “gente”. Gente, com 280 ocorrências, é o substantivo mais frequente na epopeia, e em numerosos casos está pelas acepções de “povo”. Tem valores mais altos nos dois primeiros Cantos (46 e 51, respectivamente), que declinam progressivamente até 13 no Canto VI, sobem a 37 no canto VII, descem para 22 e 10, respectivamente, nos VIII e IX, e regressam a 22 do Canto X. Sendo um vocábulo que Camões usa largamente, e bastante como auxiliar da expressão, os altos valores dos dois Cantos iniciais podem indicar – e seria uma impressão a confirmar só por computorizado estudo – que, neles, Camões variou menos este vocabulário genérico, e que só depois cuidou mais desse aspecto. Acerca dos usos vagos ou demagógicos da palavra povo (ou equivalente, noutras línguas), consultar-se-á com proveito o excelente livro de George Boas, Vox Populi, essas in the History of an Idea, Baltimore, 1969, de que há acessível edição em paperback.
6 Os trechos aludidos podem ser lidos em The Portable Renaissance Reader, ed. James Bruce Ross e Mary M. McLaughin, New York, 1953, com numerosas reimpressões (Viking Portable Library). Recomenda-se esta vasta selecção de textos desde o século XIV até aos princípios do século XVII, como contacto introdutório directo com as ideias e atitudes do Renascimento em lato sentido (e também para leitura, ainda que antológica, de muitos textos curiosos e geralmente inacessíveis).
7 É o que queda claro de VIII, 55, por exemplo, quando Camões faz ser comentado que “um bom em tudo (…) justo e santo”, não acerta com os negócios do mundo: o que significa que virtude é também e claramente uma prudente ciência dos negócios deste mundo.
8 A bibliografia sobre o Renascimento é imensa e não cabe aqui. Mas ainda hoje é fundamental a leitura do clássico livro de Burckhardt, para entendimento do carácter espectacular e estético da vida, como os homens dos séculos XV e XVI a entenderam.
FONTE: SENA, Jorge de. Estudos sobre o vocabulário de “Os Lusíadas”. Lisboa: Edições 70, 1982.