Poesia Carnavalizante II

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Ainda em ritmo carnavalesco e carnavalizante, mais alguns exemplos na poesia seniana:

 

Goya, "O Enterro da Sardinha"
Goya, “O Enterro da Sardinha”

* Vigília Cívica (de Peregrinatio ad loca infecta, Poesia III)

* Homenagem a Tristan Tzara (de Peregrinatio ad loca infecta, Poesia III)

* La dame à la licorne (de Peregrinatio ad loca infecta, Poesia III)

* “O Beco sem saída, ou em resumo…” (de Exorcismos, Poesia III)
 

Vigília Cívica

No planalto da Pérsia,
enquanto Quetzalcoatl se espaneja, arrasta a cauda,
eles votam pela adopção da ementa parlamentarista.
A ementa é:
sopa de nabos, feijão guisado, arroz com carne seca.
Seca? Sim, minha senhora,
é na secura que os dentes encontram, exploram
e desenvolvem
as mais lídimas virtudes mastigativas.
Acredita V. Exa., senador, na selecção natural,
ou prefere, peito de rola, o outro mundo como
vontade e representação?
Eu sei, Excelência, que a resposta é impossível,
que o vento sopra no altiplano irânico
por uma forma que a serpente pode –
– o quê? Minha senhora, que entende de serpentes,
a senhora, emplumadas? Não
interrompa as meditações patrióticas dos sábios da Grécia
que eram sete e não houve, que se saiba,
outros.
Sirva-se V. Exa., senador, e a madame
também,
deste precioso guisado. O nabo é,
como diria Freud, um símbolo.
Acreditam V. Exas. no inconsciente coletivo? –
– pode a serpente levantar voo,
com as penas adejando e a cauda pendurada.
Nem sempre, eu sei, minha Senhora; mas,
em sopa cozinhada a fogo lento,
esse legume simbólico reage
como pode. Recorda-se, pai da pátria,
da sua juventude no planalto da Pérsia?
E de Édipo (o complexo), e de Jasão (o velo),
e de Ulisses (as sereias), naquela madrugada em que,
com ligeiro atraso, almoçámos juntos?
A cotação do café firmava-se nos astros
que Zaratustra lia apaixonadamente.
Foi nesse almoço que, na mesa ao lado, o cardeal falou,
citando CIF New York o Tigre de Bengala.
Creia, minha senhora, que de Ganimedes
nunca mais se soube, tranquilize
o coração maior que o mundo. Sobremesa?!
Mas como, senador, esta madama,
quando as serpentes passam exibindo as plumas,
deseja ainda pêssego em calda?!
O seu voto, senador, e o delas,
nesse altiplano irânico, Pamir, tecto do mundo,
são a derradeira garantia das instituições.
Mas pêssego, madame, com feijão
guisado e arroz com carne seca,
não é possível. Lembre-se de Ísis.
Repita a sopa. De nabo. Eu sei,
minha senhora, mas, a fogo lento,
esse legume simbólico reage
como pode.

4/9/1961
 

Homenagem a Tristan Tzara

Que mundo este. Morre a Princesa do Traseiro-ao-Léu,
Bacoreca Sinfrásia d’Aldipopes. Morre o tribilinto asfásico
dourada pluma de popotássicos futebóis tintáceos.
Ascende no ar um cheiro a Presidente. E a Imprensa
cai em delíquio de pernoca e bunda. Ou pavelitches
mandam cantar missas de Requiem. Ou tam tam tam tam tam
pum. Mas tu, Tzara, morreste há ano e meio,
e é no acaso de um jornal que o sei “des poètes” o
jornal. Il y a des poètes, voyez-vous? Et ils ont
un journal. Oui, mais ma tente, elle tricote. Método Berlitz. Comme]
il y a tantes, honni soit qui mal y pense.
Eras romeno e de monóculo. A România ou Roménia,
como sabem todos os jornalistas cultos, é
um país latino embora eslavo, oh coisa estranha.
Mas em francês é que escrevias das aventuras celestes
do Senhor Antipirina, por aquele tempo em que,
abrindo um dicionário, encontraste DADA.
As palavras ao acaso, os recortes de jornal num chapéu
(como a imprensa se tornou dada, não é verdade, e sem chapéu),
e o mundo então estourando dia a dia em lama da Flandes ou
dos Lagos Masúrios. Mas tu, em Zurique, na montanha mágica
que havia entre os montes sem magia mais que a das vaquinhas
(que todas são suiças), transformaste em loucura calculada
a tua nostalgia de romântico reclinado “onde bebem os lobos”,
e o teu sangue de “homem aproximativo”, como todos os homens
que se prezam de ser DADA, com chapéu, a única coisa sensata
de um mundo em petição de miséria. Depois
foi o surrealismo com o papa Breton, o sacristão Péret, o politiquelho Aragon,]
Éluard-anjo-do-lar, Artud-a-fúria, o mártil Crevel, o bigodes
pré-franquistas Salvador Dali. E tu – poeta dadaísta, ali em francês
enquanto os outros estavam cavando a sepultura das Academias para]
a fundação da grande Academia parisiense da poesie Frrrrrrrrçaise,]
nouveau langage pour les prochains siècles: ó Racine: ó
pipoca saponácea de ceboso antraz. E haveria depois
o existencialismo (oh não de Malraux, não de Jean-Paul Sartre, mas]
do bela letra pied noir si digne Albert Camus). E depois o
nouveau roman nouveau roman tão bem escrito oh nouveau roman.]
Morreste há ano e meio, ou coisa assim. Ridiculamete,
como diz a notícia no melado tom do necrologio hipotético,
“quando o pai Natal enche de brinquedos as meias das crianças”.
Só te faltava esta para seres completo. Adieu, Tzara,
e que os antipirinas comovidos movidos vidos mu
te soltem sobre a tumba (Père Lachaise?) a gota militar
de um épico anúncio de jornal, como este:
“O armário de várias utilidades para o lar, solucionando
as medidas de espaço e de ambiente – 36 variações
à escolha” (CLIPPER dixit). Só 36? O Kamasutra! Adieu, Tzara.

1965
 

La dame à la licorne
Dona Semifofa erguendo o dedo
mindinho arqueado em asa sobre a asa da
chávena (ou xícara) disse: –
– Eu sempre soube que poetas não
são gente em quem confie uma senhora –
e num sorvinho delicado rematou
a mágoa de cinquenta primaveras.
O licorne, num doce balançar do chifre esguio,
gravemente assentiu,
um pouco perturbado
pela insistência obnóxia e recatada
com que a discreta dama confundia,
ou mais que a dama os olhos vagos dela,
o chifre legendário e o metafórico
que de entre as pernas longo lhe descia
ou já de perturbado não pendia.

Torcendo as ancas disfarçadamente
para encobrir das vistas semifofas
essa homenagem à inocência delas
(como o cavalheiro que pousando a mão
assim se esconde em pudicícia o quanto
não esconda muito mais que a discrição obriga),
D. Gil cofiou a capriforme pêra
e de soslaio viu que Dona Semifofa
do branco em ferro assento resvalava
para a verdura em que as florinhas eram
de cores variegadas, salpicantes.
D. Gil era o licorne, e disse com voz cava:
– Mas eu também, minha senhora, nunca
acreditei que de confiança eles fossem.
Se acreditasse, como não teria
a mágoa imensa de não ser centauro? –

No chão, erguendo as pernas, Semifofa uivou:
– Centauro, para quê? Não há centauros.
Licornes, sim, D. Gil, vinde a meus braços.

18/06/1967
 

“O Beco sem saída, ou em resumo…”

I
As mulheres são visceralmente burras.
Os homens são espiritualmente sacanas.
Os velhos são cronologicamente surdos.
As crianças são intemporalmente parvas.
Claro que há as excepções honrosas.

II
As pedras não são humanas.
Os animais não são humanos.
As plantas não são humanas.
Os humanos é que têm algo deles todos:
o que não justifica o panteísmo,
nem a chamada «Criação».

III
Humanamente feitas são as coisas,
e as ideias, as obras de arte, etc.
mas que diferença há entre ser-se uma besta na Ilíada
ou no Viet-Nam?

IV
Há por certo os poetas, os santos, e gente semelhante
(os heróis, que os leve o diabo)
– mas desde sempre, em qualquer língua,
qualquer das religiões (ilustres ou do manipanso),
fizeram o mesmo, disseram o mesmo, morreram igual,
e os outros que nascem e vivem e morrem
continuam a ser a mesma maioria triunfal
de filhos da mãe.

V
Que haja Deus ou não
e a humanidade venha a ser ou não
e os astros sejam conquistados (ou não)
apenas terá como resultado o que tem tido:
uma expansão gloriosa do cretino humano
até ao mais limite.

VI
A vida é bela, sem dúvida:
sobretudo por não termos outra,
e sempre supormos que amanhã se entrega
o corpo que já ontem desejávamos.

VII
O poeta Rimbaud anunciava o tempo dos assassinos.
Sempre foi o tempo dos assassinos
– e mesmo um deles é o que ele era.

VIII
Gloriosos, virtuosos, geniais,
mas burros, sacanas, surdos, parvos.
Ignorados, viciosos ou medíocres,
mas burros, sacanas, surdos, parvos.
Do primeiro, do segundo, do terceiro ou quarto sexo:
mas burros, sacanas, surdos, parvos.
Em Neanderthal, Atenas, ou em Júpiter
– burros, sacanas, surdos, parvos.

IX
Canção, se te culparem
de infame e malcriada,
subversiva ou não,
ou de, mais que imoral, desesperada;
se te disserem má, mal inventada,
responde que te orgulhas:
humano é mais que pulhas
e mais que humanidade mal lavada.

15/10/1970

 

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