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O Indesejado – um posfácio (Parte III)

CONSIDERAÇÕES SOBRE A NATUREZA DO TEATRO E O LIVRE ARBÍTRIO, À GUISA DE FINAL

 

MUNDO. Y, pues representaciones es aquesta vida toda, merezca alcanzar perdón de las unas y las otras. (CALDERÓN — El gran teatro del mundo) 

 

A noção de que se despe ao morrer a indumentária da breve representação que foi a vida é velha como o mundo, ou, mais exactamente, tão velha como o teatro. A tal ponto é esta imagem da vida, que o findar da peça aparece como imagem da morte — «e aqui fenece a susodita tragicomédia». Durante a vida representou-se um papel na peça. Que papel? Que peça?

Creio que, à luz do que hoje se supõe ser a estrutura do mundo, é fácil de compreender que a peça é um esquema de condicionalismo cénico, o papel a inspiração de momento permitida por essas condições. É isso o livre arbítrio. E por isso a pura paixão pelo teatro, pela eufórica vivência teatral, tenderá sempre, como para um limite, para a «commedia dell’arte», em que tipos determinados podem ver-se metidos em situações e complicações que eles próprios criaram, até que estas os ultrapassam, cabendo então à inspiração pessoal apenas ornamentar fantasiosamente um estado de coisas a que se não pode fugir, até que, na derrocada dos seus próprios valores, esse estado de coisas se diminua perante a ascensão de uma nova peça em novos palcos.

Não se representa, na vida, um papel previamente escrito, palavra por palavra, gesto por gesto, no chamado livro do destino. Não se representa pior ou melhor conforme pior ou melhor se tomou consciência desse papel que não existe. Actuamos livremente no palco exíguo e na peça vaga e vasta que é a nossa condição de homens, tornada responsável pela racionalização que nos humanizou como seres conviventes, à custa de uma desumanização interior, secreta, como seres viventes. Somos menos humanos pela necessidade absoluta de o sermos mais. E nesta necessidade desesperadamente aceite, que nos conduz ao livre jogo das infindas virtualidades de um conjunto fechado, está precisamente a génese do teatro, como duplicação, como encarnação, como ditirambo que se projecta fora de nós.

Do rigorismo ritual, indispensável à criação, transitar-se-á para a libertação formal, indispensável à representação. Asceticamente se aguardam as Elegias de Duíno até ao momento em que as vozes se adensaram para desencadear-se. E escrita, fixada de uma maneira ou de outra, Une Saison en Enfer, nada mais há a dizer senão, como Próspero, que é um cair da noite sobre o tablado de um «Globe» interior da Renascença, confessar que «os encantamentos acabaram» e pedir que o público nos não confine para sempre «na adusta ilha». Isto é sempre de pedir, porque ao público seguinte é impossível, e ao público presente ficou feito o pedido, que é, de resto, a única mensagem a transmitir a esse outro, que virá.

As graças da representação, a imaginação da frase, a subtileza da intenção no dizer, a delicadeza do gesto, tudo o que foi a vida das palavras, tudo o que foi essencial ao encantamento — morre. E poderá duvidar-se do que fica, se afinal se não despe a indumentária, se a própria indumentária somos nós. Não fica, por certo, a liberdade que houve, porquanto da «commedia dell'arte» apenas resta um rígido esquema embora vasto e vago. Duvidar deste esquema, não como esquema, mas como a peça que ele sozinho não poderia ter sido, é da consciência da humanidade. Ou antes, da consciência pela qual nos desumanizamos para humanizarmo-nos mais. Da consciência pela qual sabemos que o teatro a que pertencemos não é só a peça, nem só a companhia, nem só a sala. Pela qual sabemos que a sala não tem, entre o palco e a plateia, senão por separação as luzes que acendermos. Uns acendem-nas; outros, não — conforme não aceitam ou aceitam a universal necessidade. Os primeiros temem o contraponto harmónico de solidões expressionistas que a peça é; e são, por isso e todavia, quem mais condena o silêncio consentido e aceite, com que os segundos se identificam, como eles não, com a estrutura plena que em si próprios vivem. Esses segundos, que, preferindo a treva comunicativa, respeitosamente a não proclamem, são quem melhor a aceita e por quem ela se efectiva e se transforma de condição em liberdade.

O texto de uma peça, se a peça incide sobre um significativo momento do espírito, é a «commedia dell’arte» de tal significação. Nada em si próprio e para o seu próprio tempo significa o que quer que seja. É «commedia». Quando a «commedia» acaba e se fecha um ciclo, nascem simultaneamente a tragédia e a correlativa farsa. Toda a tragédia é risível. Nem todas as personagens trágicas o sabem. Soube-o, como poucos, Molière, cujas peças são, por vezes, na elegância ou na crueza do cómico, pungentemente trágicas. Tal sabedoria não é, de resto, condição necessária à tragédia. Ser-se personagem trágica é ter consciência, ainda que não racionalizada, de contrários que, personalisticamente, são irresolúveis, mas podem ser aceites ou não, propiciando-se a sua resolução colectiva. A tragédia é, precisamente, a tradução escritural simbólica desse estar conscientemente à beira do abismo de aceitar ou não aceitar. Na vida, só por antonomásia é que há tragédias. Aquilo a que habitualmente se chama uma tragédia é, quase sempre, apenas uma situação difícil que se prolonga estranhamente para além do que seria lícito esperar da capacidade de sofrimento do homem; aquilo a que, também na vida, se chama uma personalidade trágica é o que pode dizer-se de alguém cuja aventura humana exemplifica uma dessas situações. As chamadas tragédias colectivas: morticínios em massa, migrações em massa, etc. (para não falarmos dos cataclismos — inundações, tremores de terra, etc, que são acidentes, apenas acidentes) — não são tragédias no sentido exacto do termo, são catástrofes, que podem incluir tragédias particulares ou fazer parte de tragédias mais vastas. Mesmo estes «incluir» e «fazer parte» são já uma descuidada superficialidade da expressão, porquanto a tragédia é uma elaboração simbólica, superstrutural. Saber-se que ela é risível é ter-se, além da ciência própria da condição trágica, uma outra ciência, dada a muito poucos, porque o instinto de conservação a recusa, e que é a da lucidez irónica acerca da natureza dessa mesma condição: — «commedia dell’arte» promovida a situação irreparável, irreversível e insubstituível, quando à economia do universo será absolutamente indiferente que a comédia, embora prossiga, seja comédia ou não. A restrita economia humana é que não é. Mas, seja qual for a atitude que, perante a estrutura do universo se assuma (e este assumir é já o início de uma representação mais cuidada, com encenação própria) — espiritualista ou materialista, determinista ou não —, acontecerá que, em última análise, o universal concreto, ao concretizar-se como Deus, como Eu supremo, como consciência colectiva, como consciência de classe, como individuação, como tudo quanto queiram, não poderá deixar de, muito silenciosamente, rir-se de si próprio. E ri sempre melhor quem ri no fim.

Outubro de 1949