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Shakespeare

  • Categoria do post:Tradução

Celebrado a 21 de março, o "Dia Mundial da Poesia" foi instituído pela XXX Conferência Geral da UNESCO em 16 de novembro de 1999.
Celebrado a 27 de março, o "Dia Mundial do Teatro" resulta de proposta apresentada em 1961 pelo International Theatre Institute (ITI), organização não governamental fundada em Praga no ano de 1948, com o apoio da UNESCO e da comunidade internacional ligada ao teatro.
Fazendo convergir as duas efemérides, nosso site recorda hoje algumas páginas que Jorge de Sena dedicou ao "bardo inglês" — objeto inconteste de sua enorme admiração –, a começar pelas que se encontram na Poesia de 26 Séculos e que tanto reúnem sonetos, como fragmentos dramáticos, traduzidos pelo próprio Sena. Ao fim, a "apresentação" que este dedica ao escritor elisabetano.

 

SHAKESPEARE
Inglaterra 1564-1616

 

SONETO XV

Se considero quanto cresce vivo,
e atinge a perfeição só por instantes;
e que este imenso palco está cativo
de ocultos astros fortes e inconstantes;

se atento que Homem como planta aumenta,
do mesmo céu domado e guarnecido,
e que da seiva juvenil que o tenta
quando é mais forte é que será esvaído;

então o conceito deste incerto estado
mais rico em juventude em mim te cria,
ao ver que o Tempo a te mudar se há dado
era noite escura esse tão claro dia.

Com o Tempo em guerra por amor de ti,
o que el' te rouba, eu te reponho aqui.

 

SONETO XXIX

Quando em desgraça aos olhos dos humanos,
sozinho choro o meu maldito estado,
e ao surdo céu gritando vou meus danos,
e a mim me vejo e amaldiçoo o Fado,

sonhando-me outro, rico de esperanças,
co'a imagem dei', como el' tão respeitado,
invejo as artes de um, d'outro as usanças,
do que mais gozo menos contentado.

Mas se ao pensar assim, quase me odiando,
acaso penso em ti, logo meu estado,
como ave, às portas celestiais cantando,
se ergue na terra, quando o sol é nado.

Pois que lembrar-te, amor, tem tal valia,
que nem com grandes reis me trocaria.

 

SONETO LXXVI

Porque de orgulho são tão nus meus versos,
tão limpos de contrastes e mudanças?
Porque, com o tempo, não vão sendo imersos
em novo estilo e estranhas esquivanças?

Porque escrevo eu sempre tão igual ao que era,
mantendo-me fiel ao que inventei,
que cada termo é como se dissera
quanto de mim procede, que o gerei?

Que é só de ti, meu doce amor, que escrevo,
contigo e Amor aos devaneios basto;
e o meu saber de poeta é este enlevo
de ainda outra vez gastar o que está gasto.

Tal como o Sol é novo cada dia,
assim do Amor eu digo o que dizia.

 

SONETO CXXI

Antes ser vil que como vil ser tido,
quando o não ser de ser é suspeitado,
pois que o prazer se perde, imaginado
nos olhos doutrem, não por nós sentido.

Porque há-de dar dos outros o olhar falso
leis a meu sangue, se el' se goza assim?
Porque mais frágeis me andarão no encalço,
a condenar o que me praz a mim?

Ah não, eu sou quem sou. Quem me condena
por meus pecados, pelos seus me acusa:
posso mais recto ser que quanto ordena:
que os feitos meus não valham mente escusa.

Que a menos que se mude tanto mal,
homem não há livre de império tal.

 

RICARDO II — Acto III, Cena 2

RICARDO — Falemos de sepulcros, vermes, epitáfios,
Sejamos pó, e com pluviosos olhos
Inscrevamos tristeza no seio da terra.
Do nosso testamento aqui tratemos.
E para quê? que temos que testar,
Salvo o deposto corpo, entregue ao túmulo?
Tudo que é nosso e a vida a Bolingbroke advém,
E que diremos nosso senão morte nossa
E esta pequena crosta de singela terra,
Que serve só para cobrir os ossos?
Ah, por amor de Deus, sentemo-nos no chão,
Contando histórias tristes da morte dos Reis:
Como têm sido alguns depostos; outros
Caíram em combate; alguns possessos
Pelos fantasmas que deposto haviam;
Outros, envenenados por esposas,
Enquanto outros, dormindo, foram mortos:
Assassinados todos. Pois dentro da Coroa
Que as têmperas mortais de um Rei circunda
Tem sua Corte a Morte, e lá está o Bobo
Zombando de seu Estado, e rindo-lhe da pompa,
Permitindo um suspiro, ou uma cena breve,
Que monarquize, o temam, mate com olhares,
Embebendo-o de estultas presunções,
Como se a carne que muralha a vida
Nos fosse inexpugnável bronze: oh, ilusão!
Quando ela vem por fim, e com um alfinete
Perfura os muros do Castelo… e adeus Rei.
Cobri-vos. Não troceis da carne e osso,
Com reverências solenes. Deitai fora
Respeito, as tradições, as etiquetas,
Porque rne haveis julgado o que não sou:
Vivo de pão, qual um de vós. E sinto faltas,
Procuro amigos, sofro dores. Assim sujeito,
Como podeis dizer-me que sou Rei?

 

MACBETH — Acto V, Cena 5

No interior do Castelo de Dunsinane. Macbeth, Soyton, soldados com atabales e bandeiras

MACBETH —Suspendam as bandeiras nas muralhas;
a ordem é "que venham": o castelo
rir-se-á de um cerco: pois que acampem todos
até que a fome e a peste aí os comam:
sem o reforço dos que deveriam
ser nossos, poderíamos batê-los
E expulsá-los. Mas que grita é essa?
SEYTON — É choro de mulheres, meu senhor. (sai)
MACBETH —Eu quase já esqueci o gosto às lágrimas.
Um tempo foi em que me regelara
Ouvir gemer de noite; o meu cabelo
De susto se eriçava e estremecia.
Mas saciei meu coração de horrores.
E tais extremos são tão familiares
A meus sinistros pensamentos que
Não mais me assustam. (volta Seyton) Que era a
gritaria?
SEYTON — É que a rainha, meu senhor, é morta.
MACBETH —Há muito que devera ter morrido:
Seria tempo então de tal palavra.
Amanhã, amanhã, mais amanhã,
Pé ante pé vem vindo dia a dia,
Até à sílaba final dos tempos,
E os nossos ontens iam guiando tolos
No caminho da morte. Vai-te! Vai-te!
Ó tão breve candeia, vai-te! Apaga-te!
A vida é sombra andante, um pobre actor
Que no palco gagueja a sua deixa,
E se não torna a ouvir: é uma história
Que um doido conta, toda estrondo e fúria,
E sem sentido algum.

 

A TEMPESTADE —Acto V, Cena 1

PRÓSPERO — Ó vós, elfos dos rios, montes, lagos, bosques,
E vós que nas areias sem deixar pegadas
Afugentais Neptuno que se afasta, mas
Dele fugis quando el' retorna: semi-títeres
Que ao luar torceis anéis azedos, verdes, que a
Ovelha nunca morde; e vós, que passatempo
É criar nocturnas estranhezas, que gozais
De ouvir solene o recolher, por cujo auxílio
— Por frágeis que sejais — tenho ofuscado às vezes
O Sol meridiano, convocado os ventos
Amotinados, e entre o verde mar e a cúpula
Azul lançado a guerra: ao trovejar terrível
Já dei o fogo, e ao forte carvalhal de Júpiter
Rachei com o próprio raio: o duro promontório
Eu fiz tremer: e p'las esporas arranquei
Os pinheiros e os cedros. À minha ordem tumbas
Acordaram quem dorme, abriram-se, e expeliram-nos,
Por minha Arte potente. Mas as rudes mágicas
Aqui abjuro: e quando tiver ordenado
Celeste Música — qual inda agora o faço —
Para incitar meu fito em seus sentidos todos,
Ao que este encanto vem, a vara hei-de quebrar,
Hei-de enterrá-la após no coração da terra,
E mais profundamente que já sonda foi
Meu livro hei-de afogar.
 

 

SHAKESPEARE, WILLIAM — Um dos maiores, se não o maior génio poético que a humanidade produziu, nasceu em Stratford-on-Avon em 1564 (tradicionalmente, a 23 de Abril), filho de um comerciante enriquecido e depois nobilitado. Não se sabe que tenha feito quaisquer estudos, além dos elementares na sua cidade natal. Em 1582, foi forçado a casar com uma mulher bastante mais velha do que ele, que lhe deu três filhos, dos quais só duas filhas sobreviveram. Por 1585 ou 87 terá iniciado uma carreira londrina de actor, e em 1593 aparece o seu belo poema Venus and Adonis que imitava o não menos sensual Hero and Leander de Marlowe. De 1594 é a sua primeira peça teatral. A tragédia de Ricardo II terá sido representada na "season" de 1595-96, e foi publicada em 1597. Os Sonetos, que lhe garantiriam um dos mais altos lugares na lírica europeia, se o seu teatro lhe não desse a categoria que dá, foram publicados em 1609, e as conjecturas têm-se acumulado para identificar-se o jovem que é objecto das suas paixões (e é possível que "ele" seja uma sucessão dos que faziam, no teatro do tempo, em Inglaterra, onde as mulheres não representavam os papéis femininos). Entre 1604 e 1608, Shakespeare apresentara as suas tragédias mais célebres: Othelo, Macbeth (1605-06), King Lear, Antony and Cleopatra, e Coriolanus, que Julius Caesar, em 1599-1601, e Hamlet, em 1601-02, haviam precedido. Crê-se que, por 1608, rico e cansado de Londres, Shakespeare se fixa na sua cidade natal: The Tempest (1611-12) tem sido interpretada como a sua despedida de dramaturgo. Em 25 de Março de 1616, sentindo a morte aproximar-se da sua bela casa (de que hoje só as ruínas restam), faz testamento; e exactamente um mês depois é enterrado na Igreja da Santíssima Trindade, onde jaz. O seu "teatro completo", levantando enormes problemas de autoria e de texto (muitas peças haviam tido publicação dispersa, com lições muito diferentes), foi publicado em 1623. Para bem entender-se o trecho de Ricardo II, aqui traduzido, há que saber que este rei foi combatido e deposto por Henry Bolingbroke, depois Henrique IV, o irmão de Filipa de Lancaster, a esposa de D. João I de Portugal. A cena célebre de Macbeth refere-se ao momento em que, já ameaçado pelos adversários que vão destruí-lo, Macbeth sabe da morte de sua mulher, cujo remorso pelos crimes a que incitara o marido a fizera enlouquecer. Na fantasia sublime que é The Tempest, a traduzida fala do mago Próspero, o protagonista, é a do último encantamento que ele executa.