Estudos sobre o vocabulário de “Os Lusíadas”: com notas sobre o humanismo e o exoterismo de Camões (1982) é uma obra póstuma e inconclusa, organizada por Mécia de Sena e Luís de Sousa Rebelo, que procuraram dar uma forma final ao projeto seniano de investigar alguns vocábulos significativos da epopeia. Conforme o prefácio, escrito por Rebelo, anuncia, o objetivo maior de Sena era, através dessa pesquisa, revelar que Camões teria sido cristão-novo. Ficando o texto incompleto, porém, só nos resta conjecturar os possíveis caminhos argumentativos trilhados pelo poeta para chegar a tal conclusão. O livro que ficou, do qual o texto a seguir é a introdução, demonstra muito bem os métodos senianos de análise, assim como o seu conhecimento enciclopédico, capaz de reunir diferentes assuntos ao longo de um mesmo raciocínio.
O vocabulário da epopeia camoniana tem merecido em diversas ocasiões, parcelarmente, a atenção dos estudiosos. Faria e Sousa, nos seus monumentais comentários à edição que da epopeia preparou e que publicou em Madrid, em 1639, comentários esses que são ainda, directa ou indirectamente, o ponto de partida de todos os comentários ulteriores, ocupou-se, por exemplo, das “palavras peregrinas”, aquelas que Camões teria, como neologismos, introduzido na língua através da epopeia, e muitas das quais nela ficaram. O primeiro estudo sistemático foi, ou terá sido, o meritório Dicionário dos Lusíadas, preparado pelos brasileiros Afrânio Peixoto e Pedro A. Pinto, publicado no Rio de Janeiro, em 1924, e em que inventariam, sem preocupações estatísticas, e com algumas abonações significativas, “em estado de dicionário” como diria o poeta Carlos Drummond de Andrade, o vocabulário do poema magno da língua portuguesa. Para a mentalidade filológica, o dicionarista ou gramaticante do século XIX, que tanto pesa ainda nos estudos de Português, isto era mais do que suficiente (e, na verdade, não pode dizer-se que os estudiosos ou os camonistas encartados tenham, nestas últimas décadas, extraído daquele dicionário as observações que ele permitiria que fossem feitas). Mas, evidentemente, para nós, hoje, mais de mentalidade linguística e estilística, um tal dicionário, com o valor que tinha e as possibilidades que oferecia, não era de modo algum suficiente. Porque, se o vocabulário de uma obra é característico de um autor nela (será óbvio que o vocabulário depende, também em grande parte, da natureza da obra e das intenções estilísticas do seu autor ao compô-la), e nos permite analisar o nível linguístico, mais ou menos refinado e peculiar, que o autor pretendeu realizar com ele, só verdadeiramente será característico e definidor de um índice analítico, em que todas as ocorrências vocabulares sejam registadas e classificadas. Disto, sempre os estudos literários tiveram consciência, mesmo nas suas horas mais devaneadoramente impressionistas, enquanto, para os filólogos tradicionais (e quanto crítico impressionista é, sem que o saiba, dominado pela filologia tradicional!), que um vocábulo ocorresse, um sintagma, uma construção sintática, bastava, e basta, para historicamente saber-se que já existia ou se executava naquele tempo. Todavia, uma ocorrência, para ser significativa em linguística diacrónica, ou melhor, em linguística histórica, está longe de valer por si mesma: o que é significativo não é que ela “ocorra”, mas quantas vezes ocorre proporcionalmente a outros vocábulos, outras construções, pois que só a frequência relativa nos dá uma ideia de se um vocábulo era de uso corrente, e de se um autor o usa em nível que seja característico do seu estilo pessoal. Para estudos de mera ocorrência vocabular, não tem ainda a língua portuguesa sequer um dicionário histórico: os dicionaristas nunca se preocuparam com dizer-nos quando, nos textos da língua, uma palavra terá ocorrido uma primeira vez, que se saiba, ou quando uma modificação semântica do seu sentido se poderá ter dado pela primeira vez. A nossa língua tem sido sempre tratada como se fosse, e devesse ser para a eternidade da sua própria múmia, uma espécie de latim clássico, idealmente reconstituído e codificado, existente fora do tempo e do espaço. Quando os dicionaristas dão abonações para os sentidos de um vocábulo, extraídas de autores antigos e modernos, fazem-no menos por um critério histórico de validade actual dos diversos sentidos, que por um critério a-histórico de coexistência intemporal deles no acervo secular da língua escrita. Não há contradição alguma entre este a-historicismo dos dicionaristas e o historicismo abstracto dos filólogos tradicionais: uns e outros partem do mito idealista da ocorrência única e exemplar. O reflexo dessa situação nos estudos literários, quando as palavras e as construções sintáticas valem num contexto (e não apenas num fragmento de frase, que mais não cabe em dicionários e gramáticas), e esse contexto vale na arquitectura de uma obra de arte, com tudo o que isto implica de intencionalidades e sugestões calculadas, de ecos e paralelos, de contrastes e acumulações, etc., é necessariamente infeliz – com efeito, uma mentalidade educada no conceito da ocorrência exemplar, e que nada fez para libertar-se dela, tende inevitavelmente para o impressionismo crítico, seja qual for a sua ideologia filosófica, uma vez que uma ocorrência que lhe saltou aos olhos assume, para ela, uma importância absoluta que nenhum relativismo científico ajuda a corrigir. Por outro lado, nesta situação, a falta de um dicionário histórico da língua não permitia, no caso de Os Lusíadas, que o prestimoso trabalho de Afrânio Peixoto e de Pedro A. Pinto produzisse os seus frutos. Se ele nos autorizava a dizer que vocábulos (e que alguns sentidos deles) Camões usava na sua epopeia, não nos autorizava sequer a afirmar se a ocorrência exemplar era exemplar de Camões no poema, ou se o era, muito simplesmente, do seu tempo – por não haver, para diversos outros autores e obras suas contemporâneas, trabalhos semelhantes.
Esta lacuna é a que a notável série “Dicionário da Língua Portuguesa – Textos e Vocabulários”, dirigida por A. G. Cunha e publicada pelo Instituto Nacional do Livro, do Rio de Janeiro, visa a eliminar, na medida do possível. E a publicação, em 1966, sob a orientação daquele estudioso, do Índice Analítico do Vocabulário de “Os Lusíadas” representa, para as investigações camonianas, um decisivo passo em frente. Claro que, para o comparativismo estilístico, continuamos limitados pela falta de um índice analítico do vocabulário do século XVI, para que estes três volumes são um importantíssimo contributo. Mas, por exemplo, no que aos verbos respeita, a experiência estatística daquele estudioso já se reflecte de útil modo na introdução ao índice.
Um índice analítico de Os Lusíadas não oferece os mesmos problemas que ofereceria o da obra lírica de Camões. Embora haja divergências de exemplar para exemplar da primeira edição da epopeia [1], estamos em face de um texto autêntico, impresso em vida do poeta, e as divergências não são tais e tantas que afectem significativamente um índice analítico da obra. O mesmo não sucede com a obra lírica, para a qual, como temos insistido [2], um índice analítico deve limitar-se rigorosamente às peças líricas que não sofram, nem levemente, de dúvidas de autoria, e só pode ser feito sobre um texto cientificamente estabelecido dessas mesmas peças, já que variantes existem nas primeiras impressões delas, e entre essas e manuscritos dignos de tanta ou mais consideração que os textos das primeiras edições. Esse índice analítico, assim estabelecido, seria um precioso e decisivo instrumento para julgar-se da autenticidade de muitas peças duvidosas. Não teria verdadeiro valor científico, se realizado sobre as falsificações ou descuidos das edições sucessivas da obra lírica, até hoje, já que incluiria as próprias divergências ou coincidências dos textos suspeitos e a julgar por ele.
Por outro lado, é sensível ao estudioso de Camões, embora por uma forma ainda impressionista, que ele, nas suas diversas obras, se não coloca no mesmo nível estilístico: a linguagem da epopeia não é a mesma, sob vários aspectos, da das obras líricas maiores, esta diverge da das obras líricas menores, o teatro tem outra linguagem, e a da prosa das cartas é francamente diversa. Claro que, quando tivermos um índice analítico, conjunto e comparativo, de toda a obra de Camões, verificaremos que, com as diferenças de nível próprias, retoricamente, aos diversos géneros e formas que ele praticou, estaremos em face de um “corpus” vocabular que lhe é pessoal e característico (o que melhor saberemos, em comparação com um trabalho paralelo para um número substancial de obras suas contemporâneas [3]), sobretudo pela maior ou menos frequência com que ele o emprega. Em Os Lusíadas, todo o vocabulário estará, por certo, dirigido para a criação de um pessoal estilo “alto e sublimado, grandíloquo e corrente” [4], não apenas um estilo adequado ao género épico, mas à criação de um estilo épico português e, sobretudo, à de um estilo que significasse as específicas intenções de um poema altamente ambicioso na sua estrutura e no seu sentido último [5]. Assim sendo, a elevada ocorrência de um vocábulo, e de outros que lhe sejam semanticamente análogos, por certo está em íntima correlação com o interesse do autor em criar certa atmosfera estilística; e, do mesmo modo, a baixa ocorrência de um vocábulo, ou a não-ocorrência dele, quando evidente seja que uma dada família semântica constituía, ao tempo, um dos pilares expressivos para uma área tida por fundamental da vida socio-intelectual, revelará que tal família não tem, para o autor, relevância equivalente, ou que, mais profundamente, o que essas palavras significam é algo que ele repele ou suprime do seu mundo intelectual e emocional. Por certo que a ideia que um vocábulo representa pode ocorrer, num texto, por perífrases, através de expressões em que essa palavra seja omitida. Mas uma elevada insistência nessas perífrases, resultando em não escrever-se aquela palavra, pode ser interpretada, para lá da função retórica das perífrases, como um desejo consciente ou inconsciente de evitá-la. De modo que a estrita e simples observação da frequência de um vocábulo será, sem dúvida significativa de peculiaridades estilísticas, senão de alguns arcanos do pensamento do autor, ou do sentido último da obra em que tais ocorrências se observam.
É dentro desta ordem de ideias que faremos algumas observações sobre o vocabulário de Os Lusíadas, a partir dos dados registados no Índice Analítico cuja utilidade pusemos em relevo.
Tenha-se porém presente no espírito que, esta sequência de estudos, parte dos dados (ocorrenciais) vocabulares por esse Índice prestimosamente fornecidos, mas ultrapassa em muito a mera observação deles, ou as ilações estatísticas que deles sejam tiradas. Porque, na verdade, o que fazemos é organizar diversas famílias semânticas que nos permitam penetrar, para além das palavras e dos seus contextos, no mais profundo cerne estrutural de Os Lusíadas, isto é, lá onde as ocorrências foram chamadas a significar não apenas por elas mesmas e os seus contextos imediatos em relação às intenções expressas pelo poeta, mas, pela inter-relação entre elas, são significativas de intenções menos expressas ou daquele complexo anímico e ideológico que constitui a personalidade mais íntima de um escritor.
Para tal, após uma análise dos verbos mais frequentes, que nos revela só por si o carácter dinâmico do pensamento de Camões, uma cadeia de sucessivas áreas foi analisada, todas elas consideradas relevantes para o entendimento das ideias e da sensibilidade camonianas, ou que a análise mostrou que relevantes eram. Assim, foi que tratámos do Amor e seus correlatos, dado que uma concepção do amor é fundamental na poesia camoniana com a maior evidência. Que, para melhor compreender a atitude do poeta em relação a aspectos mais exteriores da devoção católica, analisámos o papel que “santos e milagres” desempenham na epopeia. Depois, para amplificar a análise do “amor”, passámos ao papel desempenhado pela pudicícia e as partes pudendas no poema. A seguir, impunha-se uma investigação de “Natura, natureza, natural, etc.” para avaliar-se do real conceito que o “natural” desempenha na obra e na mente do poeta. Seria inevitável, porque é noção basilar da ideologia renascentista e maneirista, não analisar depois a virtude (que é muito mais que ser moralmente “virtuoso”, porque é a virtú mais que meramente normativa), e, pela mesma razão, a família Homem, humano, etc., base semântica do “humanismo” [6]. Daqui resultaria, consequentemente, o analisarem-se os Fados – o conceito de “destino”, tão nitidamente uma das obsessões de Camões em toda a sua poesia. As observações que todos os estudos anteriores haviam acumulado levou-nos a considerar que papel “mães e filhos” representam na epopeia, já que se manifestava uma tendência camoniana, curiosíssima, para uma intencional seleção (consciente ou inconsciente) dos tipos de relação entre esse par e o papel de um “pai”. Seguidamente, na linha de aclarar atitudes religiosas que estavam já implícitas na maior parte das áreas anteriores, investigámos como são tratados os judeus na epopeia – a situação deles era, de resto, para o pensamento do século XVI ibérico, e é, uma pedra de toque. Tão escatológica quanto a epopeia é, cumpria-nos logo depois observar quem e como se salva em Os Lusíadas – é o estudo sobre os Infernos pagãos e cristãos. Do que resultaria observar o papel do elemento demoníaco no poema. Daí passámos aos deuses pagãos que sempre se reconheceu – muitas vezes com enorme mal-estar – desempenharem papel de relevo na epopeia. E, com efeito, representam-no, e até como “representantes” do próprio Deus. A vez desta suprema personalidade ou ideia teria de chegar, e é o capítulo respectivo que culmina esta série de estudos, que não devem ser entendidos nem lidos como distintos uns dos outros mas como intimamente complementares. O conjunto (e muitos outros estudos semelhantes podem ser feitos, que venham a suplementar estes) é orgânico, precisamente para iluminar desde dentro a obra e o autor. Mas sempre nos abstivemos de extrapolar do que as próprias ocorrências, o lugar em que se encontram, a correlação observável com outros lugares paralelos, etc., eles mesmos nos denunciam. Não usamos por acaso este verbo. Uma análise deste tipo não denuncia muito mais do que os “entendidos” do seu tempo leriam com um sorriso de ironia contra a estupidez social dessa época, e seriam levados a descobrir por si mesmos, detentores que eram das chaves secretas para entrar no magnificente edifício. Mas, após quatro séculos de rotina oficial, ou de indiferença funda acerca das vibrantes mensagens cifradas pelo poeta, quase equivale a uma denúncia – que é na verdade a reabilitação de um poeta muito maior e ainda mais complexamente humano do que as vaidades nacionais, as ortodoxias religiosas, e a superficialidade consuetudinária têm feito dele. Se, daqui em diante, a maioria das pessoas não conseguir aproximar-se do poeta senão com uma espécie de sacro terror, pela profundeza terrível que ele ocultou habilmente na elegância e na majestade das suas estâncias, teremos conseguido o nosso objectivo de fazer dele o que ele foi: um poeta muito maior do que se supõe, e grande não apenas por não haver outro maior em português.
É óbvio que estes estudos representam a passagem de um nível a outro da análise da estrutura de Os Lusíadas, que iniciámos no nosso livro anterior. Havíamos dado a estrutura externa, ou arquitectura da obra. Agora, penetrámos no edifício pela porta das palavras. Se nele encontramos abismos de sombra e claridades fulgurantes não menos terríficas, para além do jogo de luzes e sombras que ele aparentemente escreveu (e já bastara para selar a sua grandeza por séculos), é porque sem elas não há grande poesia verdadeiramente grande. E poderá reconhecer-se que Camões não atingiu o universal só porque compôs maravilhosa poesia em português, mas porque, no que à epopeia respeita, transcendeu de dentro o mero quadro nacional e patriótico em que inscreveu Os Lusíadas, fazendo deles uma mensagem de nobreza, dignidade, tolerância, justiça e liberdade, que seria de esperar de um homem de tanto amor.
Seja-nos permitido apontar que, nas notas, os usos que Camões faz de centenas de outros vocábulos é analisado também, em suporte das observações consignadas no texto, o que amplia grandemente o limites das áreas semânticas analisadas nestes estudos, e completa estas bases para o estudo da linguagem e do estilo de Camões, estruturalmente considerados.
Se o nosso estudo de “a estrutura de Os Lusíadas” pretendeu ser uma explicação da arquitectura do poema, e também um guia de leitura das suas sucessivas partes componentes, esta presente sequência de estudos, transportando a análise para a organização vocabular através de numerosas séries ou áreas semânticas, pretende pôr em relevo a tessitura estilística em que a abstracção arquitectónica se concretiza. É, pois, também, um guia de leitura, mas diverso, pelo qual se fornecem pontos de apoio e de referência vocabulares e ideológicos (sem jamais abandonar-se o próprio texto e os seus contextos) para seguir múltiplas tramas que, do princípio ao fim, são a vera matéria da epopeia e transportam os seus sentidos últimos. E é também, para quem o estude, um exercício em “leitura atenta” (close reading) e em formalismo [7], pelo qual se verificam constantemente, pelos próprios contextos e a luz que eles lançam uns sobre os outros, os exactos sentidos que as palavras tinham para Camões, ou era sua intenção que tivessem. Esse exercício, todavia, visa a um entendimento integrador do pensamento de Camões, na sua constituição necessariamente multifacetada, tal como ela se revela na arquitectura e na tessitura da sua epopeia. Por certo que, com base em impressões gerais, em passos que suscitaram tradicionalmente a atenção, ou em analogias com outras obras semelhantes, muito se tem dito, e bem, sobre Camões e a sua epopeia. O intento deste livro, como daquele que o precedeu, é penetrar na própria estrutura, não para encontrar nela o que lá foi posto pelo tempo (ou não encontrar), mas para ver o que e como o poeta criou aquilo que ainda hoje nos fascina e atrai. Se a linguagem de um poeta representa o seu próprio mundo dele, é por ela e com ela que a leitura se deve estabelecer.
Santa Barbara, Fevereiro de 1972
NOTAS
1 Repetidamente temos chamado a atenção para o facto de que os conhecimentos actuais sobre os hábitos tipográficos e editoriais do século XVI e ainda do XVII não autorizam que se continue, em termos oitocentistas, a discutir das “duas” primeiras edições de Os Lusíadas, quando já o século XIX (cf. Tito de Noronha, A Primeira Edição dos Lusíadas, Porto, 1880) notara que as divergências entre exemplares apontavam absurdamente para mais de duas… que, à luz daqueles conhecimentos actuais, são, por certo, apenas exemplares de uma mesma edição cujas folhas eram reimpressas eventualmente, com emendas ou novos erros, à medida das necessidades comerciais. O que, de qualquer modo, só pode definitivamente ser resolvido pela aplicação computadorizada dos métodos de Charlton Hinman à comparação de todos os exemplares conhecidos de 1572, independentemente de para que lado o pelicano vira a cabeça. O “índice analítico” foi feito, em condições descritas na sua introdução, sobre um exemplar da série Ee, ed. fac-similada, Porto, 1939.
2 Vejam-se as longas considerações feitas em diversas secções do nosso livro Uma Canção de Camões, Lisboa, 1966, e que não mereceram a atenção mesmo da melhor crítica que dessa obra se ocupou, tão cega é a crítica luso-brasileira. Toda a gente perora sobre os escritores, sem cuidar de verificar a autenticidade dos textos de que se servem desatentamente.
3 A este respeito, há que ter um primacial cuidado na preparação de um tal estudo global, uma vez que a estandardização ortográfica, gramatical, etc., tende a fazer-se pesadamente sentir, nas obras portuguesas quinhentistas, a partir dos meados do século XVI (o que não é diverso do que então sucede nos outros países europeus, com essa estandardização precipitada exatamente pela difusão da tipografia). E há que ter presente que muitos autores da primeira metade do século XVI vieram a ter as suas obras completas impressas na segunda metade do século ou mesmo no final dele (pelo que só um aturado estudo comparativo de manuscritos existentes e dessas obras impressas nos poderá esclarecer sobre até que ponto eles aparecem a escrever não como tinham escrito, mas como o final do século XVI entendia que eles deveriam ter escrito). Mesmo para um autor cuja actividade se concentra no 3º quartel do século, como é o caso de Camões, veja-se o que sucedeu com os textos da sua obra lírica, impressos em 1595, e “corrigidos” arbitrariamente em 1598, ao gosto do tempo (como mostrámos no livro Os Sonetos de Camões e o Soneto Quinhentista Peninsular, Lisboa, 1969).
4 Às Tágides, na Invocação da epopeia, pede Camões “um som alto e sublimado” e “um estilo grandíloquo e corrente”. Estes quatro adjectivos caracterizam com rigorosa exactidão o que estilisticamente ele realizou, e todos os estudos que se fizerem da linguagem do poema mais reiterarão como ele transformou uma massa enorme de expressões correntias (fazendo-se o trocadilho entre esta acepção e a de fluência que Camões tem principalmente na sua ideia) e até banais, num “som alto e sublimado”, pela hábil manipulação da grandiloquência.
5 Vejam-se a este respeito os nossos estudos sobre “A Estrutura dos Lusíadas” publicados na Revista do Livro, Rio de Janeiro, nºs 23/24, 26 e 27/28, e agora no volume A Estrutura dos Lusíadas e outros estudos camonianos e de poesia peninsular do século XVI, Lisboa, 1970.
6 Não será demais lembrar que este termo é de origem recente, e foi cunhado em 1808 para definir um ideal de estudos baseados nas literaturas clássicas – ideal que era então posto em causa por uma visão tecnicista, por um lado, e nacionalista, por outro, da educação. Humanista foi termo que os renascentistas, seguindo o modelo dos currículos universitários medievais, cunharam profissionalmente para quem não era “legista”, “canonista”, “jurista”, “teólogo”, etc., – e, consequentemente, praticava ou ensinava as artes da gramática, retórica, história, poesia, e filosofia moral, as disciplinas que compunham os estudos de “humanidades”. Sobre estes pontos, e a importância que, para os século XV e XVI, teve o facto de a filosofia moral ficar do lado das “letras” e não do da filosofia propriamente dita, veja-se o magistral estudo de P. O. Kristeller, Renaissance Thought: The Classic, Scholastic, and Humanist Strains, New York, 1961, em especial o 1º capítulo, p. 9 e segs.
7 [Mantém-se a indicação da nota que Jorge de Sena tencionava inserir aqui sobre o formalismo, mas que não chegou a redigir.]