«Uma pequena luz» no meio da treva – Imagens da melancolia na poesia de Jorge de Sena

Especialista no tema da melancolia, rastreando sua permanência em numerosos autores portugueses, Fernando Pinto do Amaral – ele mesmo, além de ensaísta, poeta “de tonalidade melancólica e outonal” – aqui nos traz as modulações melancólicas que detectou na obra poética de Jorge de Sena.

 

Melancolia I, gravura de Albrecht Dürer, de 1514
Melancolia I, gravura de Albrecht Dürer, de 1514

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

I

É hábito dizer-se que a morte de um escritor projecta a sua obra para um limbo de relativo silêncio, espécie de purgatório findo o qual, ou a sua memória se vai progressivamente desvanecendo, ou, pelo contrário, surge revigorada por um interesse cada vez mais desinteressado – passe o aparente paradoxo –, que assim se confunde com a ilusão de uma posteridade. E todavia, desafiando tal regra, autores há que parecem furtar-se-lhe: na minha opinião, é esse o caso de Jorge de Sena, já que, trinta anos após a sua morte, os seus livros têm continuado a escapar a esse purgatório que o poeta, curiosamente, se queixava de ter suportado ao longo da vida.

Não é meu intuito, nesta abordagem de alguns aspectos mais ou menos associados à melancolia na escrita de Jorge de Sena, historiar a recepção crítica de uma obra que tem visto cada vez mais reconhecido o seu valor. Desejo, isso sim, manifestar o meu já antigo fascínio por um poeta em cuja escrita se detecta sempre uma profunda harmonia entre inteligência e emoção, como se ambas precisassem uma da outra para conferirem ao discurso seniano a sua espessura muito peculiar. Termos como estes podem parecer impressionistas, mas não encontro melhores para o que pretendo dizer e se prende com isso a que já Régio se referia ao falar de Sena, apontando na sua obra a conciliação entre o que chama uma «densidade intelectual» e uma «densidade espiritual» (Cf. Lisboa, 1984, p. 47).

De facto, ao insistirem em acusá-lo de inteligente (ou de demasiado intelectual para poeta…), os seus detractores esquecem que a pura efusão lírica corresponderia, no limite, apenas a um exclamativo «ah!» , dado que toda a linguagem implica articulações lógicas, nexos de sentido cuja interpretação pode resultar mais ou menos fácil ou difícil, consoante o quadro de referências de cada leitor e a sua adesão a cada texto. Por vezes mais especulativa do que meramente expressiva, uma poesia como a de Sena exigirá, talvez, um esforço intelectivo algo maior do que as de outros poetas seus contemporâneos (estou a pensar em Sophla ou Eugénio de Andrade), mas não creio que tal esforço depare com qualquer hermetismo ou aridez. Pelo contrário, toda a obra de Sena pretende criar sentido e comunicá-lo, e um verso como «A minha voz é misteriosa de mais para que me compreendam» (Sena, 1988ª , p. 148) só pode servir de estímulo a que nos tornemos cada vez mais permeáveis ao eco desse enigma.

Pessoalmente, julgo que o melhor meio de abordar Sena consiste em deixarmo-nos arrastar pela música dos seus versos sem nos preocuparmos excessivamente com a sua pormenorizada descodificação, embora me pareça um exagero considerá-los obscuros. Sempre acreditei ser possível ler com razoável limpidez poemas como «Post-scriptum» ou «Camões dirige-se aos seus contemporâneos », e mesmo de alguns textos mais densos (como «Fidelidade» ou alguns sonetos d’ As Evidências) se retira esse resto ou esse excesso de sentido necessários à melhor poesia. E que, de certo modo, cada poema sabe sempre mais do que o seu autor – «Não sei, meus versos, que direis de mim» (id., p. 155) – , jogando-se precisamente nesse desvio ou nessa distância a mais profunda fidelidade ao seu destino de poema e ao da própria vida, que assim acaba por ganhar, também ela, o sabor de um destino: «Soube-me sempre a destino a minha vida» (id., p. 63).

Solidamente ancorada numa tradição essencialmente clássica, mas enriquecida com uma visão integradora da modernidade que não exclui o surrealismo, a poesia de Jorge de Sena soube inovar quer ao nível temático – p. ex. no domínio das aproximações à sexualidade ou no modo de relacionar ecfrasticamente a escrita com as artes plásticas ou a música – , quer ao nível retórico, sendo de mencionar a fluidez dos seus hipérbatos, a capacidade de se desdobrar em interrogações bem integradas nos poemas ou, até, uma ocasional atitude de experimentação linguística, em que avultam os célebres «Sonetos a Afrodite Anadiómena». Estes últimos situam-se a meio caminho entre a poesia e a música e constituem implicitamente uma reflexão acerca do modo com a construção de palavras esvaziadas de significado (mas com sonoridades e desinências plausíveis em Português) pode condicionar decisivamente a leitura de um poema.

A poesia de Sena mostra-se, assim, disponível para captar a vertigem de uma linguagem questionada como criação verbal, operando uma aliança indissolúvel entre uma vocação testemunhal que a enraíza nas realidades mais palpáveis e, por outra parte, uma intenção reflexiva que tanto se detém nos pormenores circunstancias (por exemplo, na sua última fase, em que muitos poemas espelham as viagens de quem os escreveu) como daí consegue induzir as evidências que a arrastam numa fértil peregrinação ao longo dos desejos, medos, paixões ou angústias de que e forma a Vida humana, sempre «com a liberdade inteira [ … ] / de humildes assistirmos ao que somos / [ … ] / na esplendorosa ressonância de estar vivo» (Sena, 1988a, p. 217).

 

II

É claro que numa obra tão multifacetada como a de Jorge de Sena se torna, por um lado, mais fácil constatar a presença difusa da melancolia – encarada num sentido lato, ligada ao «desconcerto do mundo» de que falava Camões – , mas, por outro lado, mais difícil de identificar com precisão as particulares condições da sua ocorrência, tendo em conta que se dissemina ao longo da poesia seniana sob diversas configurações, desde a simples tristeza passageira ao sofrimento mais pungente, passando pelo medo, a nostalgia vaga e indefinida, a inquietação, o ressentimento, a quase-indiferença, o sentido do mistério indecifrável, etc. Em primeiro lugar, convém lânguida, envolta em auras saudosistas ou devaneios adolescentes, essa melancolia etérea ou, se quiserem, delicodoce, aparece muito pouco na poesia de Sena, quase sempre demasiado próxima do lastro da impureza humana para se iludir  com qualquer dimensão o pretensamente pura:

 

Se eu quisesse mentir, imaginar purezas / com que esconder de mim o que desejo ou penso,/ […] / diria que são anjos, // […] // Essa mentira de anjos porque o humano é incómodo / e há quem se goze mais numa saudade dele / não é comigo (Sena, 1978, pp, 94 / 95)

 

Desta atitude global deve exceptuar-se, contudo, a poesia juvenil, escrita num período de pós-adolescência e reunida postumamente por Mécia de Sena em 1985 nos dois volumes de Post-Scriptum II. Nesse heterogéneo conjunto de textos – a que não voltarei, por não se integrarem, quanto a mim, no corpus central da obra seniana – deparamos com o frequente derrame sentimental de uma tristeza por vezes inerte ou passiva – essa «melancolia inactiva da vida que passou / como um círio que ninguém incendiou» (Sena, 1985ª, p. 125) – , embora noutras ocasiões se anuncie já uma cicatrização da mágoa e uma lúcida consciência de si própria: «A ferida curada de si mesma… / Triste e funda e dolorosa / por ser lúcida» (Sena, 1985b, p. 93). Nessa fase de primícias poéticas, a tristeza modela-se num discurso ainda enleado por uma sensibilidade ligada a um ambiente bucólico ou crepuscular – «Como é bom / enlanguescer / nos campos / ao descer / da tarde» (Sena, 1985ª, p. 68) – ou à hiperbolização de um sofrimento sentido como atroz e quase insuportável: «Tenho a alma tão magoada, / tão desfeita e ferida, tão quebrada / […] / que a sinto doer materialmente … / E dói-me tanto, chora tão doente … » (id., p. 63). E todavia, já nessa época se detectava um curioso efeito de cansaço perante a repetição do Leitmotiv melancólico, analisado com auto-ironia num poema datado de 1939, em que tal discurso é comparado ao de um moinho de café triturando a alma e despojando-a da sua verdade: «Ai a tristeza é longa / e das tristezas longas eu compreendo que se não fale delas / e que se goste ainda menos de ouvir poemas assim, / monótonos, moles … / […] / é um zum-zum / de enforcado a moer, a dar à manivela, / o moer o café das almas, a dar à manivela / até não ser verdade nenhuma aquela história» (Sena, 1985b, p. 198).

Encerrado o parêntesis juvenil, é à luz destes versos que poderemos entender uma certa aversão do Sena adulto ao confessionalismo – «Não saibas confessar a dor com que te firam» (Sena, 1988ª, p. 62) – e, em última análise, uma desconfiança em face da tristeza quando ela se encerra em si mesma, um profundo desejo de felicidade e de alegria que nunca abandonará esta escrita, por vezes confiante no seu próprio poder – «Um só

poema basta para atingir a terra» (id., p. 84) – e impulsionada pela vontade de encontrar, algures ao seu alcance, um profundo e equilibrado bem-estar, «um mundo em que a alegria não devia ser / só a nostálgica presença da felicidade mais sonhada / que vivida, mas uma estrutura de se estar no mundo / consigo e com os outros […]  /  um mundo que sempre outro se amplia  /  de homens felizes» (Sena, 1988b, pp. 177 / 178). Como pólo (euforizante desse entusiasmo sempre renovado, ergue-se, por (ergue-se, por exemplo, a pulsão sexual e o prazer exaltante dos corpos que se amam. Ao perguntar: «Que gestos há mais belos que os do sexo» (Sena, 1978, p. 126) ou ao festejar jubilosamente essa

«doce perspicácia dos sentidos» (Sena, 1988ª , p. 168), a poesia de Sena não hesita em estremecer com uma pulsação orgânica erotizada, cuja principal via de acesso é a de um amor total e absoluto – «O amor tem todos os sentidos» (id., p. 211) – e ao qual o sujeito tem de se entregar com a maior plenitude de que for capaz: «Como queiras, Amor, como tu queiras. / Entregue a ti, a tudo me abandono, / seguro e certo, num terror tranquilo. / […] / Entregue a ti, Amor, eu me dedico» (id., p. 220).

Sobre essa omnipresente «mística erótica» (o termo é de Eduardo Lourenço a respeito de Sena) já muita gente dissertou, mas nunca é de mais insistir na atracção desta escrita por figuras e situações que, sem excluirem os afectos pessoais, se condensam, acima de tudo, nas imagens de uma beleza serena e pagãmente reconciliada com os ritmos que movem o mundo. Para isso bastará recordar «Variação primeira» de «Post-metamorfose» – evocando um cenário grego e litoral em que «ao sol ardente, ao mar azul, ao vento que / lhes faz vibrar a pele, os deuses dão-se / numa nudez total de agraste juventude» (Sena, 1988b, p. 141) – ou a famosa sequencia de meditações «Sobre esta praia», em que o poeta contempla a suave nudez dos corpos que, na «serena paz das tardes infinitas» (Sena, 1978, p. 243), ostentam uma quase-eterna juventude, sob a inocente luz das praias do Pacífico.

 

III

Do que fica dito não deve inferir-se qualquer subalternização dos estados de alma disfóricos  na obra de Sena. Pelo contrário, a dor, o sofrimento, a angústia, penetram a fundo na sua poesia, ao ponto de chegarem a desencadear a eclosão da própria escrita – «Minha meditação calada e permitida quantas vezes pela dor subtil» (sena, 1988ª, p. 56) – e de a dor se substituir à  voz do sujeito na sua expressão, como vemos no derradeiro soneto d’ As Evidências: «Noite, meus amor, / ó minha vida, eu nunca disse nada, / Por nós, por ti, por mim, falou a dor» (id., p. 193). Não se julgue, porém, que o sujeito atravessa facilmente essa união entre dor e poesia, comprazendo-se no confortável masoquismo tão frequente noutros poetas da tradição lírica portuguesa. Aqui, verificamos que a poesia por si mesma não justifica tudo e que, quando o seu preço é demasiado alto, mais vale simplemente sufocá-la, numa lição ética difícil, mas que alguns poetas conhecem bem:

 

Ah! meu Deus! Se toda esta tristeza, / se toda esta consciência amarga do desprezo alheio, / se toda esta raiva contra mim, / se toda a melancolia que essa raiva me deixa, / são unicamente para que saia um poema … // Podes ter a certeza que o esmago (id., p. 71).

 

Em certos momentos, no entanto, o grau atingido pelo sofrimento revela-se tão cruel ou violento que o próprio sujeito, ao interrogar-se quanto à utilidade da sua manifestação emocional – «Nada vale chorar» (Sena, 1988b, p. 43) –, acaba por soçobrar sob o peso da sua angústia inconfessável, sob uma sensação muito íntima que parece ocultar-se num lugar desconhecido do próprio eu e ultrapassar isso a que os seres humanos chamam sofrimento. Deste modo, quando conclui: «os homens sofrem porque sofrer dói menos» (Sena, 1988ª, p. 83), o sujeito reserva para a sua mágoa um «desvão», um recôndito e quase inacessível espaço de solidão – «É muito fria a minha mágoa. / […] // A mágoa, se é do mundo, / talvez não seja apenas de tão fundo / ser o desvão em que estou frio e só» (id., p. 133) –, espaço este envolto pelo negrume de uma noite que o oprime e o aflige quase fisicamente, asfixiando-lhe a alma: «É de repente que a noite profunda chega, / como um enjoo, uma agonia, uma vertigem, / [ … ] // Apenas, e é isso a alma, uma sensação / de nódoa, como de dedos, dentes que apertassem» (Sena, 1978, pp. 58 159). Um aspecto muito peculiar reside, além disso, na tendência para o eu se interrogar sobre a essência de tudo o que sente – «Esse gemido eu ouço – é desespero? / Saudade, uma tristeza, ou solidão?» (Sena, 1982, p. 150) – raciocinando a respeito da origem ou da natureza da dor de cada um de nós, que, de certo modo, inclui sempre uma espécie de herança social, biológica ou ou filogenética de outras dores indestrinçáveis do nossa: «Quanto de nós no que nos dói ou doemos / não é senão do repetido antes de nós! / E como custa nesta dobrada / o separar o que nos dói ou doemos / do que nos dói por hábito aprendido» (id ., p. 127).

Sem aparecer muito amiúde, o substantivo melancolia ou o adjectivo melancólico/a relacionam-se, na mundividência de Sena, com um mal-estar geralmente menos intenso ou doloroso do que o sofrimento que acabámos de observar. É certo que numa ou noutra ocasião o estado melancólico pode remeter para um resignado abatimento, que se confronta com um passado iludido ou esperançoso – «Não me arrependo de ter tido

Palavras de esperança eterna, / diferente da temporal melancolia de hoje, / da resignação vigilante com que atendo / amargamente e a quanto me convoca» (Sena , 1988ª, p . 149)– , mas o sentido atribuível à melancolia tem a ver, sobretudo, com uma difusa e misteriosa emoção que tanto pode corresponder à vocação de um tempo que passou – por exemplo, aludindo ao modo como os vindouros olharão a realidade: «Falareis de nós como de um sonhono / […] // Uma angústia delida, melancólica, / sobre ela sonhareis» (id., p. 141) – como pode equivaler à experiência estética mais profunda e enigmática, manifestada, por exemplo Arte de Música, que procura reflectir a transfiguração induzida no sujeito pela audição de determinados fragmentos musicais, neste caso as canções de Dowland:

 

Desta música não ouçam mais do que a / nítida estrutura que se oculta sob a melodia […] / Apenas ouço uma estrutura: um / gesto silencioso, um movimento, / e sobretudo uma melancolia (Sena, 1988b, pp. 166 / 167).

 

Para lá da música, a génese da melancolia pode advir de diferentes motivos, alguns dos quais directamente ligados à decadência do Ocidente ou de Portugal. Como exemplo do primeiro caso, basta citar uma sequência de sete sonetos («Heptarquia do Mundo Ocidental»)  nos quais se exprime, como notou Fernando J. B. Martinho, «o cansaço de uma civilização que já não sabe a quem entregar a sua esperança» (Cf. Lisboa, 1984, p. 181), numa atmosfera de crise cultural em que se traíram os grandes valores que sustentavam essa esperança, agora reduzidos a palavras ocas:

 

Nem Deus, nem pátria, nem amor, nem vida, / De humanidade, então, nem vale falar, / […] // Ah vãs palavras, / tão cheias de amargura e de passado, / tão cheias do vazio em que ficaram // decrépitos e em pó quantos sonharam / que além da boca essas palavras soavam (Sena, 1978, pp. 42 / 43).

 

Quanto às evocações que Sena faz do país onde nasceu, mereceriam um tratamento à parte, que não cabe neste breve artigo. Em geral, a vida portuguesa surge irónica e melancolicamente retratada quer na cinzenta monotonia de um quotidiano soturno e bisonho – «Os meus amigos morrem de cancro, / de tédio, de páginas literárias, / […] / As pessoas esperam com raiva surda e muita paciência / o autocarro, o aumento de ordenado» (id., pp. 175 / 176) – , quer sob o olhar cáustico e verrinoso de alguém ferozmente crítico para com a hipócrita resignação das maiorias silenciosas, sempre prontas a não fazer ondas e a dobrar a espinha: «Que Portugal se espera em Portugal? / Que gente ainda há-de erguer-se desta gente? / Pagam-se impérios como o bem e o mal / – mas com que há-de pagar-se quem se agacha e mente?» (id., p. 180).

Outros factores de tristeza provêm do clássico topos da correspondência entre um ambiente exterior crepuscular e o estado anímico do sujeito, afectado pela chegada da noite: «Melancolias virão simulando ocasos» (Sena, 1988a, p. 105). E é assim que, ao longo desses fins de dia em que a tarde vai caindo até se desfazer lentamente no lusco-fusco, os ecos do mundo «vão sendo ao longe, pouco a pouco, gestos / que a própria dispersão só envelhece» (Sena, 1988b, p. 19), num progressivo apagamento individual em que «a luz obscurece tudo» (Sena, 1978, p. 198) e em que, abandonando-se à atmosfera cada vez mais rarefeita de um horizonte litoral, o sujeito lamenta um paraíso perdido, uma Idade do Ouro ou um passado imemorial em que a espécie humana se integrava no universo isenta de culpa ou de maldade:

 

Esta luz que se esvai no céu que se acinzenta / e as montanhas tão nítidas e o mar tranquilo, / […] // A luz se apaga, a bruma sobe, as ondas indistintas / fundem seu som à noite lenta e quieta. / Não natureza isto: uma tristeza só / de nos pensarmos quanto no passado / se era animal sem culpa e sem vileza / de ser-se humano em pensamento (id., p. 138).

 

Muitos dos melhores poemas de Jorge de Sena consistem precisamente em longas e dialécticas meditações sobre a passagem do tempo e os vestígios que deixa à superfície das coisas. Sempre consciente da fugacidade da existência – «A vida se demora nos meus braços/ o tempo apenas de um encontro breve» (Sena, 1988b, p. 22), o lirismo seniano só raramente descreve as figuras concretas do passado que se perdeu – «a memória em vão procura abrir-se / a imagens de lembranças: rostos, sexos, pernas» (Sena, 1978, p. 197) – e por isso não surge quase nunca nesta poesia o mórbido prazer de retornar àquilo que já não existe, mastigando a saudade pela saudade, tão comum noutros poetas portugueses: quando o eu reflecte a propósito do tempo, fá-lo recorrendo a elementos concretos da sua experiência, mas apercebendo-se do inexorável (e universal) processo do envelhecimento, fenómeno que o atormenta na sua solidão: «Como velhice esta agonia desce / ao fundo em que me encontro só comigo. / […] // Como nos mata esta velhice enorme!» (id., pp. 78/80). Mas, conquanto observe até que ponto «o tempo se fez distância» (id., p. 96), dispõe-se a aceitar sem excessiva melancolia o ciclo da vida e o lento manto de esquecimento que o envolve e o parece tranquilizar, à medida que se vai afastando de quaisquer sentimentos démasiado humanos e se prepara para deixar o seu lugar aos outros – é o que nos dizem estes lúcidos versos:

 

Pouco a pouco me esqueço e não sei nada. / […] // Este ficar de longe, num, cansaço; / o ouvir das vozes como outrora infância; / o estar-se imóvel mais, e devagar / peder, um após outro, o gosto a um gesto // mesmo pensado nesta horizontal / que alastra entre o passado e coisa alguma. / Este não ter senão a solidão / como silêncio e treva finalmente aceites. // […] / as coisas e as palavras possuídas, / tudo se não dissolve mas se arrasta / alheio e sem saudade […] / […] / Apenas não sei nada, não recordo nada, / já nada quero e aos outros deixo tudo (id., pp. 137 /138).

 

Poucos versos nos dão como estes uma imagem tão conseguida do avançar da idade, no seu lento alheamento das coisas. Aqui vislumbramos já um clarividente prenúncio da morte, a antecipação, desse instante último, que se repercute num horizonte literal impensável e que reconhecemos, por exemplo, num poema que evoca a serenidade do rosto d’ A Morta, de Rembrandt, ou nos acordes do Requiem de Mozart: «Ó música da morte, ó vozes tantas / e tão agudas, que o estertor se cala. / Ó da carne amargurada / de tanto ter perdido que ora esquece, / Ó música da morte, ah quantas, quantas / mortes gritaram no que em ti não fala» (i d., p. 179). Mas o que a poesia de Sena consegue dizer-nos como nenhuma outra é, acima de tudo, o absurdo da morte, o seu escândalo especificamente humano quando comparado com os ciclos que regem a natureza, já que é a consciência da morte a negar aos homens a sua condição de seres naturais como os outros, a retirar-lhes toda a naturalidade e a torná-los as trágicas vítimas de uma perplexidade sem saída:

 

De morte natural nunca ninguém morreu. / […] / Não foi para morrer que nós sonhámos / ser imortais, ter alma, reviver / ou que sonhámos deuses que por nós / fossem mais imortais que sonharíamos. / […] // A morte é natural na natureza. Mas / nós somos o que nega a natureza (id., p. 135).

 

IV

É com o peso deste destino especificamente humano que o poeta se vê confrontado, entre a submissão ao natural imperativo da morte e a intuição de algo que pudesse transcender esse enigma sem nome nem saída.

E estamos aqui imersos já não propriamente na melancolia, mas numa dolorosa angústia com que esta poesia sempre se debate quando se coloca diante do mistério das coisas, na sua opacidade e na sua nudez, e reconhece a sua ignorância quanto ao essencial – «Só isto – o decisivo – não sabemos» (Sena, 1978, p. 112) – , a sua impotência para devassar o cerne de uma dúvida atravessada pela interrogação ontológica, mas ciente de que Deus talvez não seja mais que uma invenção humana: «Possivelmente, meu Deus, a vossa existência não passa / de uma piedosa mentira com que vos embalam os homens» (1988ª, p.131). Neste contexto, assistimos a isso que para Fernando J. B. Martinho consiste numa «desesperada descida às funduras da alma humana em que a imanência, embora não se creia solução ou saída , dialecticamente procura resolver as suas contradições, dilacerada entre a afirmação e a negação, o ser e o não-ser, a verdade e a mentira» (Cf. Lisboa, 1984, p. 175).

Daqui ressuma um desespero recortado num universo) por vezes quase beckettiano e despido de todas as ilusões soteriologicas quanto à possibilidade de redenção humana, como nos diz a «Glosa à chegada de Godot»: «Pois nenhum mundo nos fará melhores / nem nenhum Deus nos salvará do mal. / Nunca nenhum salvou / […] / É desespero tudo, mas repete-se / […] / O desespero é fácil tal como esperar» (Sena, 1988ª, p. 219). Deste último verso, bem como de um outro, glosado do italiano Cavalcanti – «porque não espero, espero contentado» (Sena, 1978, p. 53) – , colhemos todavia uma estranha serenidade, só possível para lá do desespero, situada já nesse deserto ou terra de ninguém onde a verdade e a mentira se reabsorvem numa mesma evidência sem sentido: «Não há verdade: o mundo não a esconde. / Tudo se vê: só não se sabe aonde. / Mortais ou imortais, todos mentiram» (Sena, 1988a , p. 121).

Neste panorama absurdo mas aceite, a posição do eu vê-se rodeada por um vazio e uma solidão sem remédio. Ironizando O respeito de outros poetas como Rilke ou Anna Akhmatova que «ouviam vozes a ditar-lhes versos» (Sena, 1978, p. 219) e que eram por isso «capazes de se crerem nunca sós / nem mesmo as horas mais terríveis / da terrível solidão» (id., ibid.), o sujeito descrê de qualquer espírito celeste que o acompanhe e concebe todo o convívio humano como um diálogo entre ausências – «De mim a ti eu ouço-te e convivo / […] / frente a frente, / duas ausências que a não ser se assistem» (Sena, 1988b, p. 26) – no seio de um universo como que desabitado e onde, por mais que procuremos alguém pelas ruas desertas de uma cidade vazia, estamos condenados a não encontrar nada ou, pior ainda, a entender que qualquer encontro é sempre e já um desencontro:

 

Só quem procura sabe como há dias / de imensa paz deserta; pelas ruas / a luz perpassa […]  /  […] // E nada coexiste, nenhum gesto / a um gesto corresponde; olhar nenhum / perfura a placidez, como de incesto / de procurar em vão; em vão desponta / a solidão sem fim, sem nome algum / – que mesmo o que se encontra não se encontra (Sena, 1988ª, pp. 210 / 211).

 

Ficamos, assim, face a face com o nada mais desolador ou com o silêncio mais incognoscível, que nos aguarda, algures, no meio da obscuridade, «na treva em que tudo perde significado» (Sena, 1978, p. 58) e se equivale no mesmo zero absoluto. Quanto à consistência de tal vazio, para Carlo Vittorio Cattaneo tratar-se-ia de «um nada que poderia significar apenas a incapacidade do homem em alcançar os últimos confins da visão profunda, mas […] também o vazio horrível e absoluto de onde vimos e para onde voltaremos»  (Cf. Lisboa, 1984, p. 245). Se lermos um poeta como «Regresso», encaminhar-nos-emos para a segunda destas hipóteses «Como este fósforo que acendo para subir as escadas / da casa onde nasci / […] / nada consegue esconder a escuridão que vi. / Nada mais existe, nada mais tem importância / para quem viu a treva nos intervalos das coisas. // […] / […] nunca mais, nunca mais a treva acabará» (Sena, 1988ª, pp. 199 / 200).

E todavia, será porventura no âmago dessa imensa treva, no imo ‘dessa noite de que somos feitos, que ainda tremulará, de vez em quando, para lá de toda a angústia do mundo, uma luzinha silenciosa e vacilante, capaz de atrair o olhar dos que a saibam ver e nela reconheçam o misterioso sinal de uma indefectível presença humana:

 

Uma pequenina luz bruxuleante / […] / brilhando incerta mas brilhando / […] / Uma pequena luz / que vacila exacta / que bruxuleia firme / que não ilumina apenas brilha. / […] / Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha. / Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha. / […] / Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha. / Uma pequenina luz bruxuleante e muda / como a exactidão como a firmeza / como a justiça. / Apenas como elas. / Mas brilha. / Não na distância. Aqui / no meio de nós. / Brilha (Sena, 1988b, pp. 49 / 50).

 

 

NOTAS:

Edições da poesia de Jorge de Sena utilizadas:

1978 – Poesia III, Lisboa, Moraes, 1978.

1982 – Visão Perpétua, Lisboa, IN / CM, 1982.

1985ª – Post-Scriptum II Vol. I, Lisboa, IN / CM, 1985.

1985b – Post-Scriptum II VoI. II, Lisboa, IN / CM, 1985.

1988ª – Poesia I, Lisboa, Edições 70, 1988.

1988b – Poesia II, Lisboa, Edições 70, 1988.

 

As citações de Carlo Vittorio Cattan e o, Fernando J . B. Martinho e José Régio foram extraídas dos seguintes ensaios:

Carlo Vittorio Cattaneo, «Testemunho e linguagem»

Fernando J. B. Martinho, «Uma leitura dos sonetos de Jorge de Sena»

José Régio, «Sobre o lugar de Jorge de Sena na literatura portuguesa contemporânea»

 
Estes estudos pertencem a um volume colectivo coordenado por Eugénio Lisboa, que inclui ensaios de inúmeros autores a respeito da obra de Jorge de Sena:
Eugénio Lisboa, org., Estudos sobre Jorge de Sena, Lisboa, IN / CM, 1984.

 

 

In: Relâmpago nº 21. Lisboa: Fundação Luís Miguel Nava, out. 2007, p. 21-32