As representações do intelectual na correspondência entre Jorge de Sena e Vergílio Ferreira ― (1950‐1975)

Neste artigo, Marcio Roberto Pereira analisa a correspondência entre dois dos maiores nomes da literatura e da intelectualidade portuguesa do século XX: Jorge de Sena e Vergílio Ferreira. Destacando temas como o papel político do intelectual, a resistência à ditadura e o processo de escrita literária, o artigo contribui para o estudo ampliado da produção de ambos os autores.

Marcio Roberto Pereira[1]
Universidade Estadual Paulista (UNESP, Assis)

Pois como é possível que V. esteja “presente”, e com eficiência, nas zonas mais diversas e imprevistas? Que outra lição V. nos não desse — essa de um trabalho enorme e de um interesse sem limites bastava a impor‐se‐nos.
(Carta de Vergílio Ferreira a Jorge de Sena: 26 de fevereiro de 1964)

Espaço de contraponto, a troca de correspondências entre escritores representa uma grande oportunidade de acompanhar o cruzamento de ideias que compõem a trajetória de um intelectual. Na relação epistolar entre Jorge de Sena e Vergilio Ferreira há uma variedade de assuntos ― política, literatura, filosofia, entre outros assuntos ― que, entre os anos de 1950 a 1975, constroem um painel das relações entre o intelectual e a sociedade. Destaca‐se também a relevância das discussões sobre a representação da realidade a partir das ideias do Neo‐realismo, em especial sobre o papel do escritor em uma situação de ditadura e exilio. Literatura e política se cruzam na troca de experiências que tem como ponto de referência a passagem de Jorge de Sena pelo Brasil (Assis e Araraquara) e pelos Estados Unidos, em contraponto com a permanência de Vergílio Ferreira em Portugal (Évora, Fontanelas e Lisboa).

Nesse caso, o espaço de interlocução entre os escritores torna‐se importante para a composição das cartas porque a situação de Jorge de Sena como exilado constituirá a linha mestra de todas as discussões contidas nas cartas. Como salienta Vergílio Ferreira, em sua introdução à obra organizada por Mécia de Sena, “A nossa amizade foi assim, poderei dizê‐lo, fundamentalmente intelectual. (Sena 1987:11). Isso denota a posição de ambos os escritores em construir um espaço simbólico de reflexão sobre a condição do escritor em tempos de ditadura, em condição de exílio e frente a um modelo literário que coloca em discussão as relações entre o papel do escritor como resistência à qualquer tipo de violência e barbárie.

Além da representação da “fratura” ou “pelo estado de ser descontínuo” (Said 2003), o exílio oferece contrapontos que aproximam e distanciam culturas, percepções diversas da realidade, relações entre memória coletiva e individual, que delineiam histórias de vidas marcadas por “catástrofes silenciosas” (Seligmann‐Silva 2005:120) que perpassam a “passagem para a espacialidade em detrimento da temporalidade.” (Seligmann‐Silva 2005:126).

Nesse sentido, as relações entre o literário e o extra‐literário constroem um painel das relações entre o intelectual e a sociedade, formando novos contornos para a compreensão das obras de ambos os escritores aqui analisados. Em várias passagens das cartas de Jorge de Sena e Vergílio Ferreira é possível destacar reflexões sobre a composição de obras em processo de escritura ou já editadas, sobre o papel da crítica, sobre a recepção de suas obras pela imprensa local e internacional e, ainda, as impressões de leituras de Vergílio Ferreira sobre a obra de Jorge de Sena e vice‐versa. Como bem salienta Jorge de Sena, em carta de 17 de junho de 1961:

O que há de triste e consolador (porque essa coragem nos cumpre tê‐la sempre) nisto tudo é haver pessoas, como nós, a discutirem essas coisas ― que interessam quem? Mas, meu caro, que ao menos a dignidade da inteligência se não perca na terrível feira de vaidades dançando sobre o abismo (Sena 1987:50).

Uma literatura de resistência frente a um mundo de barbárie por conta do Salazarismo em Portugal: as reflexões de Jorge de Sena representam a posição do intelectual a lutar por espaços em que a liberdade seja um importante ingrediente no cotidiano das pessoas. Daí a ocupação dos escritores em espaços de resistência que transcendem o livro: jornais, revistas, instituições de ensino etc. Nesse sentido, o gênero epistolar torna‐se um importante contraponto com a obra ficcional ou teórico‐crítica produzida pelo intelectual que, na maioria das vezes, se sente num total deslocamento de sua terra e de seu ambiente cultural:

As faculdades que me aceitarão serão sempre as estrangeiras: as daqui (na medida em que eu conquisto posições que os industriais brasileiros de literatura portuguesa tudo fazem para que eu não tenha), ou as do largo mundo. E, porque estou cansado de Brasil (sobretudo deste, que é uma caricatura desse Portugal que já era uma caricatura de si mesmo), ponho os olhos além. (Sena 1987:99).

As opiniões de Jorge de Sena sobre o Brasil refletem sua condição de exilado que vive em contradição com uma realidade cultural e politicamente marcada pela barbárie. Assim sendo, o tema do exílio, tanto numa perspectiva pessoal, coletiva ou cultural (Suleiman 1998:2) interage com diferentes áreas do pensamento ao se relacionar com problemáticas identitárias — memória, lembrança, testemunho, barbárie, entre outros temas — em torno das quais busca‐se compreender, por meio da posição do intelectual, as diferentes formas de desterro. Desencadeado por diferentes motivos, como, por exemplo, os processos de exploração social e econômica dos impérios coloniais ou pelas consequências de estados totalitários, o exílio no século XX torna‐se uma constante na literatura.

Como afirma Angelides:

Se, de um modo geral, as cartas de um escritor constituem fragmentos valiosos que refletem a personalidade do seu autor, o seu ambiente e as circunstâncias que envolveram seu trabalho criativo, a correspondência entre escritores pode adquirir uma dimensão especial, porque nela se realiza um tipo de diálogo em que dois autores, dois estilos
se confrontam e, com frequência, são discutidos problemas diretamente ligados à criação literária. (Angelides 2001:13)

Não se trata apenas de um exílio político e geográfico, mas de uma autobiografia oblíqua[2] que mostra outros planos para a condição de exilado. Daí a correspondência ser uma importante maneira de promover uma compreensão sobre o escritor e os diversos planos que constituem as relações entre ficção e realidade. Posicionar‐se como intelectual significa possuir um ângulo de visão marcado pela pluralidade de pensamentos que compõem a sociedade ao redor do escritor. Jorge de Sena e Vergílio Ferreira, em sua troca de correspondências, pluralizam seus posicionamentos sobre uma sociedade marcada pela violência do Salazarismo e, no caso do Brasil e segundo Jorge de Sena, de uma repulsa a um intelectual que não possui uma formação em Letras — Jorge de Sena formou‐se em engenharia — ainda que este seja um dos escritores mais representativos de sua geração e colabore com os principais meios de divulgação da cultura e literatura portuguesa.[3]

A literatura de Jorge de Sena define‐se, portanto, como um processo testemunhal[4] cheio de representações cruzadas sobre as várias formas de opressão e expatriação. Não é por acaso que a literatura de exílio possui uma aproximação com a historicidade, pois oferece novas perspectivas sobre uma memória coletiva manipulada por regimes totalitários.

São palavras de Jorge de Sena:

O testemunho é, na sua expectação, na sua discrição, na sua vigilância, a mais alta forma de transformação do mundo, porque nele, com ele, e através dele, que é antes de mais linguagem, se processa a remodelação dos esquemas feitos, das idéias aceites, dos hábitos sociais convencionalmente aferidos.[5]

Tal testemunho pode levantar questionamentos sobre a dimensão cultural dos escritores envolvidos, mas pode também trazer informações preciosas sobre seus projetos estéticos. É muito frequente a apreciação de Jorge de Sena ou de Vergílio Ferreira sobre suas produções — em andamento ou publicadas ― em que a troca de informações, textos e obras faz com que um arcabouço crítico seja construído via correspondência. Em carta de 4 de setembro de 1964, Vergílio Ferreira inicia uma discussão sobre as relações entre fotografia e literatura para explicitar seu entendimento sobre o Neorealismo português. Nesse momento Jorge de Sena está escrevendo uma obra de caráter “experimental”, segundo ele, por conter uma “sequência de contos” que interligam literatura e política a partir das várias representações do mundo militar por meio de personagens num mundo de barbárie e violência.

Particularmente é no século XX que as reflexões sobre a condição dos desterrados ganham maior força representativa por conta de guerras, regimes totalitários, fundamentalismos, revoluções, que constituem, pelo ponto de vista e vozes dos exilados, uma sociedade à margem, com características sociais e psicológicas em torno de um discurso de construção da memória — individual e coletiva — em contraposição à barbárie. Essa tensão entre nações, como a Primeira e a Segunda Grande Guerra, ou as lutas contra ideologias totalizadoras — nazismo, salazarismo, fascismo, franquismo, entre outras ─ formaram regimes de exceção que promoveram uma legião de exilados e, por conseguinte, uma redefinição do papel do intelectual no mundo moderno.

Nesse sentido, a obra de Jorge de Sena e Vergílio Ferreira propõem caminhos diversos para a representação da realidade. Um segue por um caminho mais simbólico, como é o caso de Aparição, outro mais objetivo, caso de Os grão‐capitães. Essas obras são frequentemente comentadas por ambos os escritores em diversas cartas para mostrar os diversos ângulos do Neo‐realismo, resultantes da experiência e da auto‐reflexão sobre a arte.

Assim sendo, além de discutir a produção cultural de sua época, revelar as dificuldades do exílio ou tecer considerações sobre uma época de grandes tensões políticas e ideológicas, Jorge de Sena e Vergílio Ferreira erigem comentários e análises sobre suas obras. Como leitores bem particulares, ambos constroem um ambiente intelectual em que ficção e realidade são temas que se cruzam com muita frequência. As cartas também mostram as relações privadas (profissionais, familiares, pessoais) dos escritores e seus cruzamentos com questões públicas, como a organização editorial e de ensino da época. Jorge de Sena, por exemplo, trabalhou nas unidades da UNESP em Assis e em Araraquara, antes de ir para os Estados Unidos, além de ter participado com muita ênfase do II Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária, realizado entre os dias 24 a 30 de julho de 1961, em Assis.

Demonstra‐se, assim, o caráter plural da condição do exílio que pode pressupor um “movimento para fora”, mas também pode ser uma condição de banimento ou de expatriação. Demonstra‐se o cruzamento de (in)compatibilidades no processo de representação de uma condição que relativiza os espaços, o tempo, a experiência — coletiva ou individual — na passagem de uma condição para outra, ou, em outras palavras, o narrar refaz o trânsito de um plano para outro e também de um conto para outro, substituindo a ingenuidade, via resgate da memória, pela experiência do exílio.

De certa forma, a correspondência entre intelectuais ilumina outras percepções que formam as relações entre o literário e o extraliterário num trânsito de valores que faz com que os interlocutores criem um espaço de reflexões que perpassam o literário, o político, o pessoal e o cultural. Segundo Douek (2003:38), “O estudo de lugares de memória tem assim, em sua origem, um questionamento da história atual e a consciência do fim da memória tradicional”. A memória torna‐se um importante meio de organizar a existência no momento de barbárie.

Correspondência entre o real e o imaginário

Assim, repensar a produção de Jorge de Sena, em especial, significa construir a memória do exílio de um escritor que escreveu sua obra como professor da UNESP/Assis e, portanto, como um importante intelectual que refaz a memória coletiva e individual por meio do exílio. É na condição de exilado que a obra de Jorge de Sena dialoga com um momento coletivo marcado pela ditadura salazarista em Portugal e por um momento individual em que o escritor refaz suas memórias na construção de uma biografia oblíqua sobre seu papel como intelectual permeando os contextos sociais e estéticos por meio de um registro da memória marcado pelas histórias de Os grão-capitães, por exemplo, que delineiam experiência solitárias de heróis frágeis frente um mundo de massificação via violência e barbárie. Essa ideia pode ser representada pelo início do conto “Homenagem ao papagaio verde”:

No começo das minhas memórias de infância, o Papagaio Verde era um animal fabuloso que me recebia aos gritos, enquanto dava voltas no poleiro, trocando os pés, e me olhava de alto com um olho superciliar, e de bico entreaberto. Quando comecei a vê‐lo, via‐o muito pouco, já que ele vivia na “varanda da cozinha” que me era proibida por causa das torneiras, como a cozinha o era por causa do lume. Ficávamos, quando eu conseguia iludir as vigilâncias, ou subornar o cordão sanitário, os dois numa contemplação embebida: eu, de mãos nos bolsos do bibe de quadradinhos azuis e brancos (que era o uniforme do meu presídio), e ele, com a gaiola pendurada alta, entreabrindo as asas para um voo um tanto ameaçador, com a cabeça de banda, e soltando uma espécie de grunhido que culminava num arrepio que o eriçava todo. Que era brasileiro e fora trazido do Brasil, eu sabia. Mas, antes de ser posto naquela varanda, onde parecia, numa casa triste e soturna, uma nódoa insólita, obscenamente garrida, viajara muito. Vivera a bordo de navios, cheirara longamente o mar, não a maresia ribeirinha, mas os ventos do largo, prenhes de fina espuma e de um ardor de andanças. (Sena 1978:25)

Dessa forma, a representação da relação entre o papagaio verde e a criança do conto, cujo narrador é um homem adulto, marca a reconstrução da memória a partir de uma situação de exílio a partir de uma perspectiva em que a linguagem age como uma instância de reflexão e ação que subverte o apagamento da identidade e das memórias frente a espaços de solidão ou angústia, essa pesquisa reflete, por meio de uma linguagem ora centrada pelo simbólico ora pelo compromisso com a realidade, os impasses de intelectuais que procuram compreender um mundo fragmentado, delineado pela violência do salazarismo e pela condição de exílio. Não é por acaso que essa obra está citada em grande parte da correspondência entre Jorge de Sena e Vergílio Ferreira, que por meio da confissão e das relações com espaços públicos e o cotidiano, os intelectuais fazem um contraponto entre sua condição e os processos de representação da realidade num mosaico de ideias que ganham um contorno maior a partir de testemunhos que se transformam em biografias oblíquas. Tal recuperação da memória, a partir de dois contrapontos ― Jorge de Sena no Brasil e depois nos Estados Unidos e Vergílio Ferreira em Portugal ― oscilarão entre alguns temas preferenciais: a condição do intelectual em tempos de ditadura, a posição do escritor e a estética do Neo‐realismo e a condição do exílio, serão temas entre abordados de maneira mais aprofundada pelos dois escritores porque compõem grande parte das preocupações, tanto estéticas quanto sociais e individuais, de ambos os escritores.

Nesse sentido, existe na obra de Jorge de Sena uma espécie de contaminação entre os diversos gêneros ― poesia, romance, correspondência, contos ― entre o real e a perspectiva estética. Isso é demonstrável a partir da análise das diversas cartas que Jorge de Sena troca com Vergílio Ferreira que, em muitas situações, são páginas de teoria literária sobre as relações entre literatura e sociedade. Essas mesmas relações também aparecem em prefácios para obras como Os grão‐capitães e Sinais de fogo, romance publicado postumamente em 1979, mas escrito em 1964 e 1965 com algumas revisões feitas em 1970, que representam essa contaminação de percepções da realidade e suas relações com a ficção. No prefácio de Sinais de fogo, Jorge de Sena assim define sua obra:

Hesitei longamente, não em contar essa história, mas em como contá‐la. O que há nela de estranho e de complexo (ou o que de estranho e complexo lhe introduziram as imaginações de alguns atores dela, que conheci, ou cujas impressões e opiniões vieram ter comigo), isso não me faria hesitar. Tanta coisa estranha e complexa tem sido contada, e tem depois recebido o aplauso da curiosidade humana ou do gosto pelo mistério, que, de mais uma, não viria mal ao mundo, e talvez alguma vantagem eu acolhesse. (Sena 1979:17)

A hesitação em como contar, conforme definição de Jorge de Sena, será uma das grandes questões que aparecerão em todas as suas correspondências, seja com Vergílio Ferreira seja com outros escritores e intelectuais como Dante Moreira Leite, Sophia de Mello, José Saramago, entre outros. Esse vínculo entre o equacionamento entre o real e o imaginário demonstra a constante situação do escritor em situação de exílio: construir uma obra de qualidade artística, mas sem negar os impasses de uma condição de sofrimento e abandono. Como bem define Orlando Nunes de Amorim:

Jorge de Sena aproveitou sua experiência de vida e vários acontecimentos da sua própria juventude para escrever o romance; mas ao fazê‐lo, operou uma série de combinações, amalgamas, mutações e transmutações que são responsáveis pela ficcionalização da matéria biográfica; Sinais de fogo, como autêntica ficção, traça antes de mais nada o retrato de um modo de vida particular, de uma vivência afetiva, social, política e histórica, artisticamente estruturada. (Amorim 2005:3)

Tal experiência pode ser alinhada à correspondência porque o narrador de Sinais de Fogo chama‐se Jorge e no final do prefácio, que pode ser lido como uma carta de leitura da obra para definir ao leitor as relações entre ficção e realidade, o escritor afirma: “Tudo o que conto, porém, o conto à fé do que li e ouvi, ou do que eu próprio vi e senti. O mais ― que não é o ponto de fé ― cabe à imaginação: à minha, à dos outros, à do leitor também.” (Sena 1979:21)

Demonstra‐se claramente a intenção de Jorge de Sena em filiar-se a uma espécie de Realismo que combina o real e o imaginário por meio da construção da memória coletiva via o olhar de um narrador/escritor que constrói sua biografia de forma obliqua e, que por sua vez, reconstrói uma história perdida e não oficial, mas que é revista e recontada pelos que vivem na condição de exílio. Daí decorre a luta do intelectual contra todos os regimes totalitários que, por meio da violência e da barbárie, tentam apagar as individualidades em nome de uma história única. Os relatos do narrador, no entanto, se baseiam não apenas nas suas observações ou experiências, mas também nas percepções e experiências ouvidas de outrem. Essa tensão gera uma variedade de exilados que se unificam suas vozes num narrador único que pluraliza a realidade, dando‐lhe diversas perspectivas frente os regimes de exclusão.

Para Jorge de Sena, portanto, a correspondência com Vergílio Ferreira é um importante laboratório de percepções e acompanhamento de um país ―uma vez que Vergílio Ferreira situa-se em Portugal ― que vive um apagamento do indivíduo. Tal posicionamento pode ser ilustrado pela afirmação de Vergílio Ferreira, em carta de 26 de fevereiro de 1964: “Mas é possível que a grande arte se gere sempre numa invisível (às vezes) zona de amargura.” (Sena 1987:77). Essa zona de amargura será o espaço da inexistência que é preenchido pelo intelectual ao compor uma obra de múltiplas perspectivas. Pois, como bem define Paul Ricoeur:

Graças a essa transferência analógica, somos autorizados a empregar a primeira pessoa na forma plural e a atribuir a um nós ― independentemente de seu titular ― todas as prerrogativas da memória: minhadade, continuidade, polaridade passado‐futuro. Nessa hipótese, que transfere à intersubjetividade todo o peso da constituição das entidades coletivas, importa jamais esquecer que é por analogia apenas, e em relação à consciência individual e à sua memória, que se considera memória coletiva como uma coletânea dos rastros deixados pelos acontecimentos que afetaram o curso da história dos grupos envolvidos, e que se lhe reconhece o poder de encenar essas lembranças comuns por ocasiões de festas, ritos, celebrações públicas. (Ricoeur 2007:129)

Essa capacidade de transpor o singular para o plural, conforme descreve Paul Ricoeur está presente na obra de Jorge de Sena de maneira total ao se pensar as várias formas de escrita da perspectiva seniana. A correspondência seria, numa analise mais aproximada, uma forma de reunião dessas várias perspectivas que intensificam o papel do intelectual não como um observador da realidade mas, por outro lado, como aquele que é responsável pela pluralização das ideias e pelo resgate de histórias[6] que refletem a condição de exilamento daqueles que vivenciam a barbárie. Intelectual combativo e consciente de seu papel como homem das letras mas também como interlocutor de uma geração, Jorge de Sena representa um importante elo para a compreensão da inserção do escritor num contexto de tentativas de apagamento da memória por meio de regimes totalitários que evidenciam a proposta de nivelamento de percepções da realidade em detrimento aos princípios de liberdade e democracia. De certa forma, sentir‐se como exilado representa uma importante tensão que transformará a obra de Jorge de Sena num mosaico de reflexões e busca por um retrato da realidade ora distorcido ora muito seco.

As correspondências de Jorge de Sena dão o tom de suas preocupações e iluminam a memória coletiva por meio de experiências individuais, no entanto, não apagam as dores da condição do exílio.

Referência bibliográfica

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NOTAS

1 Doutor em Letras pela UNESP (Campus Assis) e Pós-doutorado em Literatura pela UNESP (campus Araraquara), é
professor do Departamento de Literatura da UNESP (campus de Assis).

2 No prefácio de Os Grão-capitães, Jorge de Sena corrobora essa ideia de testemunhos que formam uma autobiografia oblíqua: “Na verdade o papagaio verde foi meu, e não apenas do narrador…fui eu quem assistiu àquelas cenas portuenses, onde perpassa um choro de criança…eu quem desembarcou na Grã-Canária. Tudo aconteceu, ou terá acontecido, quase assim. Neste quase, porém, está toda a distância que vai das memórias à ficção — razão pela qual ninguém pode reconhecer-se, como eu também não, nos acontecimentos e nos personagens”.Se a matéria de Os Grão-capitães é direta ou indiretamente autobiográfica — com que amargura às vezes —, a estrutura que lhe é dada é inteiramente ficção.

3 Jorge de Sena era colaborador do jornal O Estado de S. Paulo, onde assinava a coluna “Letras Portuguesas”, e também colaborava com diversas revistas portuguesas, entre as quais a Seara Nova.

4 SENA, Jorge. 1961. Poesia I. Lisboa: Ed. 70, p. 11-12.

5 SENA, Jorge. 1961. Poesia I. Lisboa: Ed. 70, p. 1.

6 Jorge de Sena foi colaborador de vários jornais e revistas, o que demonstra sua vinculação com uma literatura engajada em temas relacionados não apenas relacionados à condição do seu exílio individual mas também a uma busca constante por desmascarar de forma pública, como se pode ver nas suas obras publicadas, ou de forma pessoal, como demonstrado em suas cartas com vários intelectuais e escritores do Brasil e Portugal.

FONTE: PEREIRA, Marcio Roberto. “As representações do intelectual na correspondência entre Jorge de Sena e Vergílio Ferreira ― (1950‐1975)”. In: Investigações, v. 26, n. 1, p. 1-16, 2013