Camões em 1972

O ano de 1972 também foi de grandes comemorações camonianas. O motivo então era o quarto centenário de publicação de Os Lusíadas, e Jorge de Sena participou ativamente das celebrações, percorrendo o mundo com palestras e conferências sobre o poeta que mais admirava. Neste artigo, publicado no Diário Popular em junho daquele ano, Sena reafirma alguns dos principais pontos de sua abordagem em relação ao épico e seu autor: a sua universalidade, a sua meditação profunda sobre a condição humana, a sua originalidade e estrutura cuidadosamente arquitetada. E, como era do seu feitio, faz um chamamento para que a cultura portuguesa, então nos estertores do salazarismo, esteja à altura de tão grandioso poeta.

Em diversos lugares do Mundo está a ser celebrado o 4º centenário da publicação de Os Lusíadas: o que, ao contrário do que se suporá em Portugal, tem mais importância para o poeta e para a cultura portuguesa do que as mais magnas celebrações que a Pátria do poeta localmente promova. Na verdade, comemorações nacionais, e sobretudo lá onde o hábito da comemoração histórica criou já – internamente e externamente – certo cepticismo irónico acerca de comemorações, muito dificilmente terão repercussão internacional, a não ser que, por um grande esforço de revisão e de sério trabalho crítico, essas comemorações se materializem em obras e edições que auxiliem a projecção de Camões e da cultura portuguesa no Mundo. Se as celebrações se confinarem às tradicionais retóricas da glória e da grandeza para consumo das vaidades nacionais, por legítimas que estas sejam, Camões e a sua obra continuarão a ser o que, nos últimos cem anos, têm sido – a única coisa que os estrangeiros conhecem que, literariamente, Portugal haja produzido, e, mesmo assim, sempre considerando que o poeta português não pode rivalizar com os Ariostos e os Tassos, os Shakespeares e os Miltons, os Garcilasos e os Lope de Veja, os Ronsards e mesmos os D’Aubignés. Esta é que é a dura verdade que Portugal se obstina em ignorar.

Por outro lado, as comemorações do centenário de Os Lusíadas não podem e não devem mais uma vez servir de pretexto, como sucedeu em 1880 nas celebrações do centenário da morte do poeta, para reiterar dois erros que, na cultura universal de hoje, são crassos: o colocar-se a obra lírica do poeta como secundária em relação à epopeia e o apresentar-se a epopeia como apenas a culminação máxima das glórias heroico-militares nacionais. O lírico em Camões é tão grande como o épico, e sem um profundo conhecimento dele não se entende a própria estrutura de Os Lusíadas, onde a voz do poeta enquanto tal, como as suas frustrações e as suas agonias, é a contrapartida sombria das magnificências aparentes. E, se uma epopeia não tem mais alcance universal que a mera celebração de uma história nacional ou de um imperialismo nacionalmente limitado, por certo que não se pode esperar que ela transcenda culturalmente as fronteiras da cultura que a provocou, sobretudo numa época como a nossa de aberta hostilidade a tais formas de visão de Mundo. Ora, sucede que Os Lusíadas são muito mais do que um poema nacional, não apenas por serem a obra de um poeta de génio, com um domínio incomparável da sua língua e de todos os recursos poéticos, e dotado de uma universal cultura. Na colossal e visionária ambição que preside à concepção de Os Lusíadas, tudo é pretexto, e pretexto de pretexto, para mais altos desígnios. Assim como se pode dizer, e tem sido dito, que a Viagem de Vasco da Gama é, no poema, o pretexto para se celebrarem as glórias portuguesas desde as origens da nacionalidade até à partida das naus para a Índia, e depois para cantar em profecia alguns heróis portugueses do Oriente, até aos anos 1560, em que o tempo do poema se encerra, da mesma forma deve ser reconhecido e investigado a que ponto a própria história de Portugal é, na epopeia, um pretexto também para impor determinados valores religiosos, morais e sociais. Se o destino de Portugal é apresentado como messiânico, no poema; se através dele será possível, na visão poética de Camões, a realização suprema da reconquista do Paraíso perdido (simbolizado na Ilha dos Amores); se a viagem do Gama pode ser interpretada como um êxodo do Povo Eleito para fora da famosa e terrível “austera, apagada e vil tristeza”, a caminho da Terra Prometida do Oriente – isso não sucederá porque está implícito inexoravelmente no destino histórico de Portugal, mas, muito pelo contrário, se e só quando a nação viver num plano superior de virtudes heroicas, propugnadas angustiadamente por Camões, e que façam que esse destino transcendente de unir o Ocidente e o Oriente, e de levar para a Índia o Messias, não seja traído por baixas ambições e cobiças, por intolerâncias e injustiças, por falsas vaidades e mesquinhas presunções. Ao colocar as suas profecias de glória oriental cerca de oitenta anos antes da publicação do seu poema, Camões autorizava-se de uma experiência que não era apenas a sua de viajante pelo império oriental, mas a de todos os que, no País ou com iguais experiências, criticavam e condenavam quanto pudesse marear um destino histórico idealisticamente considerado e desejado. Havia já “Décadas da Ásia” em quantidade temporal suficiente para se saber com tristeza e amargura quantos heróis haviam sido e eram inferiores a si mesmos e ao que aquele destino esperara deles. Assim, Os Lusíadas são menos uma celebração ingénua e orgulhosa do que um aviso trágico e desesperado. Mas, se este aviso é feito à luz de particulares valores de categoria universal, como efectivamente é, daí resulta que ele transcende em muito o âmbito nacional de um destino histórico não cumprido do seu mais alto sentido, para ser, na verdade, um aviso e um apelo que se dirige a toda a humanidade que Portugal, para o efeito, simboliza. O que não seja levado a cabo com espírito de sacrifício, coragem, isenção, tolerância em tudo desde a religião às licenças eróticas, e não seja iluminado por um ideal de supremo e universal amor da Humanidade e do Mundo, não poderá ter o favor dos deuses, e está inexoravelmente fadado ao desastre. Mesmo que tal desastre se não materialize, ele não será menos desastre, porque será sempre a “vil tristeza” da “consciência infeliz”. E disto são Os Lusíadas uma nobre e clara mensagem. Sendo assim, é nosso dever apresentá-los, não como uma obra nacional sublime, com a qual se pode bater à porta da cultura alheia, mas como uma obra em que o nacional serve de imagem e de símbolo do próprio destino da aventura humana à face da terra, e que as culturas alheias têm o dever de não ignorar, porque lhes diz directamente respeito. Assim, se responde, em nome de Camões, às injustiças das outras culturas de hoje em relação à cultura portuguesa.

Tem sido dito que, ao contrário do que as celebrações positivas do século passado fizeram crer, o povo português enquanto tal está ausente de Os Lusíadas, e que o poema é uma celebração aristocrática que deliberadamente diminui a importância e as virtudes do mercantilismo burguês. Por certo que a aristocracia desempenha um papel de grande relevo em Os Lusíadas. Mas não tem sido atentado que raramente é a chamada grande aristocracia, a dos duques e marqueses, que se desenvolvera mais uma legião de condes durante os séculos XV e XVI, a que figura na epopeia. É antes a aristocracia menor a dos descendentes da nobreza da Primeira Dinastia, ou a massa imensa dos filhos segundos de filhos segundos, o que constitui o panteão de Os Lusíadas – e, de um ponto de vista social, não só era esta vasta classe aquela a que o próprio Camões pertencia (independentemente dos seus aparentamentos com os grandes do Mundo), como esta classe, mais do que nenhuma outra, era, nos fins do século XVI, aquela em que assentava, para bem ou para mal, a própria estrutura activa da sociedade portuguesa. Com demasiada facilidade, o pseudo-burguesismo do século XIX fez esquecer que muitos dos liberais oitocentistas (e os escritores grandes do tempo), como muitos dos promotores da República de 1910, ainda a ela pertenciam. Por outro lado, uma concepção maneirista da vida e da sociedade vê a aristocracia como emanação da pessoa única do “príncipe”, numa dialéctica em que o “Príncipe” de Maquiavel e o “Cortesão” de Castiglone se irmanam e completam. E, de resto, a concepção camoniana de aristocracia, claramente exposta em Os Lusíadas, não é de modo algum passiva e garantida: ninguém é nobre só porque os avós o foram, mas porque o confirma e merece pelos seus actos e qualidades. E, quando Camões condena ou ridiculariza as promoções aristocráticas (o que pode parecer reacção da velha nobreza a nobreza nova), muito menos o faz pelo facto em si, do que por achar que essas promoções são mais resultado do arbitrário favor do príncipe para com validos seus que justa recompensa por altos serviços prestados. Quanto ao mercantilismo, seria absurdo afirmar-se, embora o tenha sido, que Camões o condena em bloco – ninguém melhor do que ele sabe ao que foram as naus do Gama. O que ele condena é que os interesses exclusivamente materiais e egoístas obscureçam um sentido messiânico da História. Dir-se-ia que na nossa sociedade burguesa ou proletária do século XX ninguém busca favores ou honrarias por significarem uma relação de raiz aristocrática, ou que é vedado a qualquer alto espírito ter uma superior e isenta visão do destino humano como mais que uma tenda de secos e molhados.

Assim, celebrem-se Os Lusíadas e o seu autor. Mas sem esquecer que eles não são propriedade exclusiva de Portugal. Assim como nos Estados Unidos ninguém pensa que Shakespeare não é “americano”, no Brasil ninguém pensa que Camões não seja “brasileiro”, porque é parte gloriosa da língua portuguesa. Do mesmo modo, tenha-se sempre presente que é o valor universal de Camões e da sua obra o que mais importa celebrar, pôr em relevo e difundir. Mas, repita-se, a obra, de que Os Lusíadas são uma parte sem dúvida extremamente importante, mas não mais importante do que a obra lírica, nem separável dela: o homem que escreveu essa epopeia, e que nela constantemente se intromete, está inteiro, tragicamente inteiro, nas meditações dolorosas da obra lírica. E até nisso é ele exemplar: nenhuma epifania magnífica realmente o é sem a contrapartida das frustrações humanas, de que Camões, como lírico, se fez o paradigma. E o dramaturgo e o prosador não devem também ser obscurecidos pela magnitude da obra maior – tudo isso é “ele”, um poeta que, na sua terrível dignidade e nobreza, é tempo que a cultura portuguesa deixe de adorar e usar, com a mesma sem-cerimônia com que lhe recolheu, para venerações tardias, os incertos ossos num túmulo de duvidoso gosto “manuelino”. E que, portanto, entre os muitos escritos que repetirão à saciedade todos os lugares-comuns do camonismo, se vislumbre algo de uma outra atitude: a consciência de que, exactamente ao contrário do que na ebriedade comemorativa se fingirá, cumpre à cultura portuguesa, nos seus antagonismos estéreis, “merecer Camões”. Se alguma lição há que tirar da ocasião que o centenário de Os Lusíadas oferece, é essa, antes de nenhuma outra – merecer um génio que amou a Pátria sem ilusões e de olhos corajosamente abertos para os outros e para si mesmo. Tudo o mais é uma conversa fiada que dura há quatrocentos anos.

Santa Bárbara, Maio de 1972.