Em nossa penúltima postagem na série comemorativa dos 500 anos de Camões, um verbete de enciclopédia, mais especificamente a tradução da primeira versão do verbete destinada à Enciclopédia Britânica, conforme lemos na “Nota bibliográfica” presente no primeiro volume de Trinta anos de Camões (1980). O texto propriamente dito consiste em mais uma prova da habilidade escrita de Sena, capaz de discorrer sobre o autor de Os Lusíadas por centenas de páginas a fio, ao mesmo tempo em que consegue sumarizar informações biobibliográficas para caber no contido espaço de uma enciclopédia. O verbete, portanto, é uma ótima porta de entrada para quem deseja conhecer um pouco da personalidade literária Camões, assim como de sua obra, enquanto é uma eficiente ferramenta de consulta para estudiosos já experientes.
Camões, Luís Vaz de (1525?-1580) – O maior poeta em Português, em cuja língua nos dois lados do Atlântico teve um impacto permanente e sem par, não apenas como o autor do poema épico Os Lusíadas (1572), mas também pela sua poesia lírica postumamente publicada. Foi ele um dos raros escritores portugueses que transcendeu a barreira da língua e da moderna confusão de Portugal com a Espanha, e a ter uma vasta influência na literatura Ocidental, numa extensão não ainda adequadamente citada ou avaliada em fontes monográficas. O que se conhece do homem, num sentido estritamente biográfico, é muito pouco e deve ser separado em três categorias: a) declarações do seu primeiro biógrafo do século XVII; b) alguns documentos descobertos no século XIX e alguma investigação sobre a sua família desde então; c) alusões muito abstractas (algumas incertas cronologicamente) à sua vida e obras. Sobre estas frágeis informações, montanhas de irrelevante erudição ou romanesca imaginação têm sido acumuladas, durante quatro séculos, para preencher o vazio. O caso de Camões é, como grande e internacional figura, o reverso do de Shakespeare. Muito se sabe da vida de Shakespeare, em comparação, mas ninguém aceita que ele não tivesse sido um mínimo de génio «romântico» na sua vida privada; quase nada se sabe ao certo sobre Camões e tudo aponta para que tenha sido um homem bem pouco comum (no entanto em acordo com a sua posição na vida social do seu tempo e na sua era de aventuras imperiais), que, ao contrário de Shakespeare, nunca casou ou foi pai de sabidos filhos (apesar da sua ostentação de casos amorosos, ardente erotismo e até adolescente gabarolice nas suas obras – ou talvez demasiado de tudo isto). Os eruditos têm discutido largamente as ideias de Shakespeare, que ele encerra nas declarações teatrais feitas pelas suas personagens em situações dramáticas; das ideias de Camões, dos seus sentimentos, esperanças e tristezas, estejam como estiverem disfarçadas sob os modos e tonalidades da sua época (e também por causa dos perigosamente repressivos tempos em que vivia), tudo sabemos, já que não muitos grandes poetas, no mundo da literatura, escreveram tanto acerca de si mesmos como ele fez obsessivamente, até no seu poema épico. A crítica sobre as suas obras (especialmente a épica) tem sido imensamente enganada pelo orgulho e preconceito políticos ou religiosos portugueses, que pondo em relevo o carácter nacional do poema épico, reduziram a mais larga visão do pensamento de Camões.
Supõe-se que nasceu em Lisboa (outras cidades o reclamam) cerca de 1524 ou 1525, quando a expansão portuguesa no Oriente estava no auge. Recentes pesquisas, alargando as declarações dos primeiros biógrafos e ligando-o com genealogias aristocráticas, mostram-no como sendo, embora membro de uma empobrecida aristocracia, bastante bem aparentado com os grandes de Portugal e de Espanha e não burguês promovido ou cavaleiro pícaro. Os Camões, de origem galega, tinham vindo para Portugal com Vasco Pérez de Camões, emigrados por razões políticas no último quartel do século XIV, e que, ele mesmo poeta cujas obras se perderam, foi o tetra-avô de Luís Vaz. Não há qualquer prova de que Luís Vaz tenha estudado na Universidade de Coimbra, ou sequer que tenha seguido quaisquer estudos regulares, contudo, não muitos poetas europeus do seu tempo atingiram um tão vasto conhecimento de cultura clássica e moderna, assim como de filosofia. Crê-se que, na juventude, tenha estado nos territórios portugueses de Marrocos ou exilado, ou apenas porque era onde os jovens aristocratas portugueses iniciavam uma carreira militar que os qualificasse para os favores reais, devidos à sua nobre origem. Pensa-se que a sua juventude, em Lisboa, teve pouco de ordenada, e há prova de que D. João III lhe perdoou (1553), quando ele estava preso por uma malfadada briga de rua em Lisboa, na qual, com outros, assaltou um servidor real. O perdão sugere que Camões iria servir o rei, na Índia. Nada do que por lá fez por cerca de dezassete anos está documentado. Com certeza que esteve lá, a julgar por referências nas suas obras, em que mostra um conhecimento íntimo das condições sociais da área. Ao contrário de outros, é evidente que não fez lá fortuna, uma vez que se queixa muitas vezes da sua má sorte ou das injustiças que enfrentou. Quando voltou a Portugal, o documento que lhe concede (Julho de 1572) a tença real, fá-lo pelos serviços prestados na Índia (e não apenas para o compensar da publicação dos Lusíadas, como comummente se diz). Enquanto no Oriente, tomou parte em uma ou duas expedições naval-militares e, como alude na épica, naufragou no delta do Mekong. Os seus dezassete anos no Oriente é de presumir que tenham sido, como os de milhares de portugueses espalhados ao tempo, desde a África ao Japão, cuja sobrevivência e sorte, como ele diz, sempre dependiam do fio frágil da Divina Providência. Diogo do Couto, o grande historiador do Oriente, português do século XVI, que jamais o menciona entre os nobres que enumera tão cuidadosamente em todos os combates, diz-nos (8.ª Década da Ásia, 1673) que encontrou «este grande poeta e meu velho amigo (1569) encalhado em Moçambique, e o ajudou a pagar a viagem de volta para Lisboa, onde Camões deve ter chegado em 1570. Os Lusíadas apareceram em 1572, provavelmente nos primeiros meses desse ano (nenhum colofon diz a data da publicação, nem a licença do censor está datada, mas Camões recebeu a tença em Julho). Tem-se discutido se a tença era suficiente para uma reforma decente, e parece que não era má de todo – contudo, segundo os seus primeiros biógrafos, Camões foi sempre dado a gastar tudo quanto tinha. A mãe, viúva, sobreviveu-lhe e teve a tença renovada no nome dela. Os documentos relacionados com os pagamentos e a renovação são conhecidos, e por eles pode a sua morte ser estabelecida – 10 de Junho de 1580. Não é seguro que tenha morrido de mais do que envelhecimento prematuro, provocado por doenças e dificuldades, e relacionar a sua morte com a perda da independência portuguesa em 1580, quando as coroas portuguesa e castelhana se uniram por sessenta anos, é uma crença patriótica, como a lenda do seu fiel escravo javanês pedindo esmola para ele. Alguns comentadores salientam a injustiça de que ele não tenha sido nomeado como um dos poetas que, em 1578, foram para o Norte de África, para cantar os louvores do Rei D. Sebastião (a quem Camões tinha prometido, quando lhe dedicou o poema épico, outro poema para os seus feitos marroquinos). Mas talvez estivesse demasiado doente nesse tempo, e foi, por essa razão, poupado ao terrível destino de todos os outros, que foram apanhados no desastre militar em que muita da alta aristocracia e o próprio rei, perderam as vidas. A modesta pedra tumular na Igreja de Sant’Ana em Lisboa desapareceu no terramoto de 1755. Os ossos transferidos com pompa e circunstância nacionais e internacionais para um túmulo gloriosamente gótico-revivalístico no Mosteiro dos Jerónimos em Lisboa (ordenado pelo rei D. Manuel no lugar de onde Vasco da Gama partira em 1497 para a viagem para a Índia que Camões tomou como centro da narrativa, na sua época) por ocasião do 3.º centenário da sua morte (1880) não são evidentemente os dele – um comentário irónico do famoso verso em que Camões diz ter deixado a sua vida «em pedaços pelo mundo repartida». Durante a vida não publicou nenhuma das obras não épicas excepto três obras de elogio: uma ode recomendando Colóquio dos Simples e Drogas Medicinais da Índia, Goa, 1563, de Garcia de Orta ao Vice-Rei da Índia, e impressa nesta obra notável para a história da ciência (e Garcia de Orta é um cripto-judeu cujos ossos foram queimados após a sua morte); e um soneto e uma epístola em terza-rima oferecendo a História da Província Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil, Lisboa, 1576, a um herói do Oriente cuja família parece ter estado ligada a Camões por várias vias, tendo sido este o primeiro livro impresso no Brasil. Duas peças de teatro que lhe foram atribuídas foram publicadas em Lisboa, 1577, em Primeira Parte dos Autos e Comédias Portuguesas, feitas por António Prestes e por Luís de Camões, etc. Os seus poemas inéditos foram primeiro coligidos em 1595 (Lisboa) quando alguns deles tinham já aparecido em traduções espanholas, e duas versões diferentes de Os Lusíadas tinham sido publicadas em Espanha, no ano da sua morte. Uma aumentada nova edição das Rimas correspondeu, em 1598, ao que parece ter sido um sucesso literário, como a épica tinha sido. Estas duas primeiras edições incluíam já vários poemas que não eram dele, e o processo continuou até ao fim do século XIX, com quase todos os poetas de algum valor em Portugal e na Espanha, desde o começo do século XVI até ao meio do seguinte, contribuindo para o corpus crescente. Uma Segunda Parte das Rimas (1616), uma peça mais em 1645, a Terceira Parte (1668), a imensa edição da poesia lírica com comentários de Manuel de Faria e Sousa (1685-88), foram marcos da piedosa loucura que salvou para a posteridade muitos poemas mas atingiu o auge no fim do século passado (quando um par de manuscritos de cancioneiros dos séculos XVI e XVII foram saqueados para esse fim) na edição do Visconde de Juromenha (1860-69) e outras preparadas pelo historiador literário Teófilo Braga. Entretanto, todos os apócrifos eram usados para dar substância às, cada vez mais eruditas, «biografias». Wilhelm Storck (tradutor alemão das obras «completas»), em 1880, e Carolina Michaelis de Vasconcelos foram os primeiros a reagir criticamente contra tal método, mas só em 1930 é que as edições «completas» começaram a dar relevo a esta crítica de autoria, nunca desenvolvida metodicamente senão nos anos mais recentes, para não falar das leituras de muitos versos que nunca foram corrigidos de acordo com as primeiras edições ou dos existentes manuscritos. Até hoje, nenhum autógrafo foi descoberto, nem jamais os primeiros editores declararam ter visto mais do que cópias, como as que hoje possuímos, nos manuscritos das colecções dos séculos XVI e XVII (Cancioneiros Luís Franco Correia, Cristóvão Borges, Fernandes Tomás, Cecília de Portugal, Real Academia de História de Madrid, Escorial, etc.), nem todos devidamente estudados e publicados. Há que dizer, no entanto, que centenas dos melhores e mais graciosos poemas, assim como as três peças de teatro e algumas das cartas em prosa que lhe foram atribuídas, jamais foram objecto de qualquer sugestão de autoria duvidosa, mesmo quando a autenticidade de algumas dessas obras é apenas consubstanciada pelo facto de nenhuma outra atribuição ter surgido, desde que primeiro foram atribuídas a Camões. E é interessante registar que pesquisas recentes substancialmente reduzem a já magra produção espanhola. Os Lusíadas não põem o mesmo problema textual, apesar das «duas» primeiras edições diferentes, que se tem pensado serem uma «autêntica» e a outra edição-pirata – a verdade é que há algumas pequenas diferenças entre as cópias de cada uma, o que nos indica apenas que os livros foram produzidos mais como o Primeiro Fólio shakespeareano, com as folhas compostas e revistas de acordo com a procura. Como se vê, a obra e vida de Camões (com excepção da épica e as acima citadas três obras) são um complicado e fascinante processo. Não muitas grandes glórias nacionais põem tantos problemas básicos como Camões, mesmo se os problemas resultam do culto de que tem sido objecto, por séculos. Muitos dos seus ilustres contemporâneos têm sido criticados por biógrafos e críticos, por o não mencionarem nas suas obras. O facto é que Camões partiu para o Oriente quando era apenas um jovem poeta entre muitos; tendo estado ausente de Portugal durante dezassete anos, ficou cortado de uma vida literária que, pelos padrões do tempo, dependia de uma rede de fechados círculos, na Europa; e que, quando ele voltou, muitos dos seus grandes contemporâneos tinham morrido, e, a então prevalecente orientação da Contra-Reforma, já não estava de acordo com o aberto paganismo de Camões, que os seus primeiros biógrafos e críticos claramente tentam defender. No entanto, há referências de alguns dos seus contemporâneos (que por certo datam dos seus últimos anos de Lisboa), que o tinham na mais elevada consideração (André Falcão de Resende, Gaspar Frutuoso, Pero de Magalhães Gandavo, etc.) e, até a licença censória para a sua épica, denota uma tolerância que aponta para uma forte corrente a seu favor. O soneto que lhe dedica Torquato Tasso, ou a citação admirativa de Baltasar Gracian na Agudeza y Arte de Ingenio (1648) são exemplos da sua fama, que conta entre os admiradores Lope de Vega, Góngora, Milton, Goethe, os românticos alemães, Byron, os Brownings, etc., e, finalmente, mas não menos importante, Herman Melville. Muita da sua celebridade foi, por muito tempo, mais pela épica que pela poesia lírica, que, muito admirada por séculos, só nos últimos quarenta anos começou a ser entendida como a grande realização intelectual que o seu tempo e o século XVII viram que era. No século XIX Camões foi considerado o poeta e o homem da Renascença «par excellence», após ter sido, para os românticos europeus, o paradigma do génio aventureiro, infeliz no amor, morrendo mísero, ignorado pela sociedade. Hoje, o âmbito da Renascença encolheu, e já não cobre, com os seus lendários céus luminosos, as angústias de Camões, herdeiro da Alta Renascença europeia, mas o grande Maneirista frustrado por um tempo «em desconcerto» (como lhe chamou antecipando Shakespeare). E também não cobre a sua concepção da alma do homem, dividida entre opostos e sempre lutando para os superar numa síntese tão feita de contrários como os eram os anteriores, ou a sua ânsia por uma liberdade última que só uma ordem estética lhe podia dar, quer na criação de elegantes e profundamente comoventes poemas líricos, quer na majestosa corrente de Os Lusíadas, em que as tradições cristãs e judaicas, paganismo e cristianismo, platonismo e empirismo, intelectualismo e sensualismo, realismo e fantasia, história e imaginação literária, patriotismo e um amor humanista universal, tristes frustrações e eufóricas epifanias, a terra com as suas variadas civilizações e o seu eterno mar primevo, estão harmoniosamente fundidos para celebrar, muito mais do que a viagem do Gama ou a História Portuguesa, o sonho impossível.
Os dez cantos de Os Lusíadas são em oitava rima (1102 estâncias). Após uma proposição introdutória, uma invocação às ninfas do Tejo, e uma dedicatória ao rei D. Sebastião, a acção começa, simultaneamente, aos níveis histórico e mitológico. As naus do Gama estão já no Oceano Índico, navegando para a costa Oriental da África, e os deuses do Olimpo juntam-se para discutir o destino da expedição (favorecida por Vénus e atacada por Baco). Os dois primeiros cantos, narrados pelo poeta, dizem respeito à viagem até Melinde (parte do actual Quénia), onde os barcos são bem recebidos pelos chefes locais, que perguntam ao Gama quem são os portugueses. Os dois cantos seguintes são narrados pelo almirante e tratam da história portuguesa, desde as suas lendárias origens (os Lusíadas ou Portugueses descendem de Luso, um ascendente de Baco), até à partida da frota de Lisboa (1497); e termina com a bela descrição da saída deles para o mar. No canto V, Gama descreve ao rei a viagem de Lisboa a Melinde, trazendo a História e a Viagem juntas, no espaço e no tempo, ao momento em que o discurso termina. Os deuses pagãos dos dois primeiros cantos estão todos ausentes da narrativa do almirante. Com a partida de Melinde encerra-se o primeiro ciclo do poema. No canto VI, o poeta aparece para descrever o cruzar do Oceano Índico. Um segundo concílio dos deuses (os deuses marítimos para quem Baco desta vez apela), reúne-se no começo deste segundo ciclo e é arrastado pela argumentação de Baco contra a presença dos portugueses no Oriente. Com a ajuda de Vénus, os navegantes sobrevivem uma terrível tempestade e atingem a costa da Índia. Os Cantos VII e VIII tratam dos contactos de Gama com a Índia, onde Baco tenta, em vão, as últimas artimanhas. Atingido o objectivo, os descobridores regressam a Portugal. No canto IX, Vénus premeia-os com a Ilha dos Amores, um paraíso terrestre, onde os heróis mergulham em prazeres eróticos com as ninfas, chefiadas por Téthys, a deusa dos mares, que se entrega ao Gama. No canto X, uma ninfa e Téthys dizem-lhes em profecia alguns feitos dos portugueses no Oriente (até cerca de 1560), e Téthys mostra-lhes a estrutura do Universo. Os dois últimos cantos são uma portentosa epifania, na qual a História, a Viagem e a Mitologia se fundem, numa gloriosa conclusão.
Ao longo de Os Lusíadas Camões desenvolve esplêndidos episódios que animam a narrativa: o assassinato de Inês de Castro, que se torna um símbolo da morte por amor (canto III); uma impressionante condenação do espírito de aventura feita por um velho quando os barcos partem de Portugal (o episódio do Velho do Restelo – canto IV); Adamastor, o gigante de linhagem clássica que, no Cabo da Boa Esperança, diz ao Gama que estará à espera para destruir a flotilha quando esta vier da Índia (canto V); a história de cavalaria dos Doze de Inglaterra (canto VI), etc. Mas descrições de tempestades, fenómenos naturais, batalhas, encontros sensuais, também combinam com passos realísticos e vida experimentada para transcender toda a orquestração das alusões clássicas inseridas na essência de toda a estrutura, o que tudo contribuiu para o elevado tom e todavia fluente estilo do poema. Os Lusíadas, assim como a massa dos poemas líricos (que vão desde as canções petrarquistas, fluídas elegias em terza-rima, belos sonetos, até graciosas líricas nos modelos tradicionais ibéricos da redondilha maior, nas quais, todavia, Camões escreveu o que é, de certo modo, o seu testamento poético, a paráfrase do salmo Super flumina Babylonis, que é um dos mais amargurados e ao mesmo tempo filosóficos poemas da literatura mundial), três peças de teatro (que nos dão a transição técnica entre o Gil Vicente dos autos e a comedia espanhola do século XVII), cartas em prosa (no estilo de divertidas memórias da vida baixa), dão-nos, através de um inigualável comando da linguagem, em diferentes níveis linguísticos e tonalidades estilísticas, e uma espantosa variedade de ritmos subtis, um fascinante retrato de um extraordinário homem e poeta, que se sentiu destinado pelos Fados a falar da história europeia até ao encontro com o Oriente (Os Lusíadas são muito menos uma imitação de Vergílio do que um poema que pretende ser, para o Ocidente, o que A Eneida foi para Roma), e dar corpo à derradeira perda de todas as aspirações humanas. Um neo-platónico que acredita em Deus como a ideia suprema do amor, e nos deuses pagãos como figuras para comunicação espiritual com essa ideia silenciosa; um homem obcecado com as tensões eróticas que evoca, sem sentido de pecado, todos os escusos lados do sexo; um moralista em busca da honestidade e da dignidade humanas, que desculparia uma licença total no amor sensual; um cristão que viu a religião como tolerância e caridade, e considerou que o homem era predestinado neste mundo, mas para ser salvo no outro, de qualquer maneira, nem que fosse vagueando numa espécie de paraíso pagão sob o olhar de Deus; uma mentalidade esotérica decidida a construir a sua épica em cálculos cabalísticos e cristiano-pitagóricos, e os seus poemas líricos na amargura redimida pela contemplação do real processo da inteligência humana consumindo-se em infindáveis dialécticas; um homem orgulhoso que não podia oferecer o seu grande poema a ninguém senão ao próprio rei D. Sebastião em pessoa, e, jamais se curvando a ninguém, na sua obra, pôs muitos dos seus familiares ou relações de amizade na sua épica, como heróis da história portuguesa do Império do Oriente (sendo ele mesmo e o seu naufrágio a última exposição da lista); um aventureiro no modelo de uma sociedade aristocrática sem saída senão aquele império; um espírito tão intelectualizado que as suas necessidades espirituais recusam soluções místicas; e uma poderosa personalidade composta de razões lúcidas e emoções apaixonadas, analisando inflexivelmente na busca do seu tempo perdido, capaz sempre de olhar ironicamente para as suas próprias meditações e totalmente consciente de que ninguém seguiria (nos tempos decadentes e destroçados por lutas que ele media pelos seus ideais de cavalaria) a sua proposta da conquista do Oriente como Paraíso reconquistado – Camões é tudo isto. Um dos seus primeiros biógrafos dá-nos dele uma ideia física (e existem alguns retratos mais ou menos autênticos): «de meã estatura, grosso e cheio de rosto, e tinha o nariz comprido, levantado no meio» (com traço judaico?) e grosso na ponta: teve o cabelo louro, que tirava a açafroado; ainda que não era gracioso na aparência era na conversação muito fácil, alegre e dizidor (…) antes de perder o olho direito (…) posto que já sobre a idade deu algum tanto em melancólico» (Severim de Faria). Qualquer mínima reconstituição da vida de Camões está no que ele autenticamente escreveu; em algumas das notas que Manuel Correia escreveu, na sua anotada edição de Os Lusíadas (Lisboa, 1613), sendo que M. Correia foi o padre da paróquia de Camões nos seus últimos anos em Lisboa; na primeira biografia escrita pelo ensaísta Pedro de Mariz, que editou os manuscritos de M. Correia e os publicou no volume; na segunda biografia, em Discursos Vários Políticos (Lisboa, 1624) de Manuel Severim de Faria, onde o método de usar a poesia de Camões para descobrir algo da sua vida começou, com uma cautela que posteriores biógrafos não praticaram; na terceira biografia do poeta e crítico Manuel de Faria e Sousa, na sua monumental edição comentada da épica (Madrid, 1639), até hoje a mais importante obra erudita sobre Camões, mesmo descontando o seu método Barroco; na quarta biografia, do mesmo autor, uma descrição do anterior à luz de alguns documentos que cita, mas nunca se encontraram (sendo estes ainda os documentos para a base de supor Camões nascido em 1524 ou 1525), que foi impressa na sua edição póstuma dos poemas líricos de Camões (Lisboa, 1685-88); nos documentos descobertos pelo Visconde de Juromenha e publicados na sua edição da obra mais que completa (Lisboa, 1860-69), e em alguns dados sobre a família de Camões descobertos nos anos recentes. Tudo o mais é imaginação, extrapolação ou mera invenção, como sugerir-se a Princesa D. Maria, filha do rei D. Manuel e uma solteirona famosa entre os ricos europeus e o seu círculo de sábias damas, como a grande dama que seria a razão dos exílios do poeta. Tudo isto é ficção barata, e a sua base real apenas interpretação errada dos clichés petrarquistas e neo-platónicos para o não retribuído amor, à maneira cortês. Com certeza Camões amou muitas mulheres, para além destes modos convencionais, mas as suas cartas em prosa e algumas das suas obras graciosas, mencionam apenas prostitutas ou damas muito acessíveis e não as altamente colocadas, que deveriam receber as suas metrificadas homenagens pelo que eram ou não eram, já que o Amor, para ele, era também uma metáfora para alguns graus de saber espiritual. A este respeito biográfico, a mais monumental biografia moderna é a de Wilhelm Storck (Paderborn, 1890) em que tudo e todos na vida portuguesa durante o século XVI entra no panorama, excepto o próprio Camões (há uma tradução portuguesa anotada por C. Michaelis de Vasconcelos, Lisboa, 1897); a mais prudente história da sua vida, embora não actualizada, continua a ser a de Aubrey F. G. Bell (Oxford, 1923) e o melhor desfazer dos mitos biográficos é o de António Salgado Júnior, na introdução à sua excessivamente eclética edição das obras completas (Rio de Janeiro, 1963).
