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Poemas para Jorge de Sena

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Celebrando o primeiro aniversário deste site, no dia em que Jorge de Sena completaria 92 anos, apresentamos uma breve seleção de poemas dedicados ao poeta, escritos por amigos, admiradores e herdeiros de sua escrita.  

 

 

A Jorge de Sena, No Chão da Califórnia

É por orgulho que já não sobes
as escadas? Terás adivinhado
que não gostei desse ajuste de contas
que foi a tua agonia?
É só por isso que não vieste
este verão bater-me à porta?
Não sabes já
que entre mim e ti
há só a noite e nunca haverá morte?

Não te faltou orgulho, eu sei;
orgulho de ergueres dia a dia
com mãos trementes
a vida à tua altura
-mas a outra face quem a suspeitou?
Quem amou em ti
o rapazito frágil, inseguro,
a irmã gentil que não tivemos?

Escreveste como o sangue canta:
de-ses-pe-ra-da-men-te.
e mostraste como não é fácil
neste país exíguo ser-se breve.
Talvez o tempo te faltasse
para pesar com mão feliz o ar
onde sobrou
um juvenil ardor até ao fim.

No que nos deixaste há de tudo,
desde o copo de água fresca
ao uivo de lobos acossados.
Há quem prefira ler-te os versos,
outros a prosa, alguns ainda
preferem o que sobre a liberdade
de ser homem
foste deixando por aí
em prosa ou verso, e tangível
brilha
onde antes parecia morta.

Às vezes orgulhavas-te
de ter, em vez de uma, duas pátrias;
pobre de ti: não tiveste nenhuma;
ou tiveste apenas essa
que te roía o coração
fiel às palavras da tribo.

Andaste por muito lado a ver se o mundo
era maior que tu – concluíste que não.
Tiveste mulher e filhos portuguesmente
repartidos pela terra,
e alguns amigos,
entre os quais me conto.
E se conta o vento.

Agosto, 1978
 

Carta(s) a Jorge de Sena

I

Não és navegador mas emigrante
Legítimo português de novecentos
Levaste contigo os teus e levaste
Sonhos fúrias trabalhos e saudade;
Moraste dia por dia a tua ausência
No mais profundo fundo das profundas
Cavernas altas onde o estar se esconde
II

E agora chega a notícia que morreste
E algo se desloca em nossa vida

 

III

Há muito estavas longe
Mas vinham cartas poemas e notícias
E pensávamos que sempre voltarias
Enquanto amigos teus aqui te esperassem –
E assim às vezes chegavas da terra estrangeira
Não como o filho pródigo mas como irmão prudente
E ríamos e falávamos em redor da mesa
E tiniam talheres loiças e vidros
Como se tudo na chegada se alegrasse
Trazias contigo um certo ar de capitão de tempestades
– Grandioso vencedor e tão amargo vencido –
E havia avidez azáfama e pressa
No desejo de suprir anos de distância em horas de conversa
E havia uma veemente emoção em tua grave amizade
E em redor da mesa celebrávamos a festa
Do instante que brilhava entre frutos e rostos

 

IV

E agora chega a notícia que morreste
A morte vem como nenhuma carta

 

in: Ilhas. Lisboa: Caminho, 2004. p. 41-42.

 
Presente-Pretérito: Futuro-Pretérito

Que vida longa e tempo incerto,
O longe perto, o perto longe,
E entre longe e perto, no tempo,
O presente a morrer em cada instante
Até que ressurja no passado
Ou se adie para um futuro esperado
Inseminando o tempo para a geração,
No futuro de um presente que,
A ser nascido logo passa e
Será ou não presença sensível
Do passado: a realidade única
Que alimenta o fluir dos tempos:
O passado que é o fruto das sementes
— instantes que, no passado,
Germinam, crescem e florescem
Para inventar um futuro que mal nasce
Para morrer para o passado.
Oh presente nado-morto
Que não chega para viver ou ser vivido!
«Um barão a menos ou a mais
Que diferença faz? (….)
O que é preciso é assinar papeis.»
N’As Três Irmãs de Tchekov
Ouvi qualquer coisa assim
E lembrei-me demais de mim,
O que suponho terá acontecido
Reflexivamente a todos os si-próprios
Que como eu ouviram e
Barões nem sequer conhecem
Mas têm de assinar papéis…

1988

In: Nova Renascença, Porto, out.1988/ mar.1989, p.373.

 

 

Para o Jorge, à sua maneira

Sobre essa praia tantos amigos teus
fazendo amor de forma intensa e longa
– e nesta, onde tu foste e que deixaste,
outros terás, que já amor não fazem.
Não só porque tu faltas, porque neles
acaso a tua voz, a tua voz irada,
chamou de dentro e os chamou do nada
ao palco evanescente onde o amor fingiram:
mas também porque quem sempre te negou,
por se negar, não sabe dizer sou
além do fingimento do seu amor fingido.

Maio 84
 

 

A Jorge de Sena

É porta aberta com, ao fundo, a casa
a dar para essa luz de transparência
onde animais, com os seus nomes, pastam
a incorruptível chama da tristeza.
E as urzes ardem. E o comércio aclama
a indústria do espírito. Mas, mais que tudo, a empresa
de ir navegando, quando a maré levanta
esse magma de nomes aurindo inteligência.
É porta aberta com, dentro das muralhas,
o exílio subindo a residência.

Paris, Fevereiro de 88

In: Letras & Letras, 1/6/1988.

 

 

Anti-Epitáfio para Jorge de Sena
meço os passos neste quarto
dum hotel com o nome pretensioso dum rei português
lá fora Lisboa é vento e chuva
e a tua ausência
                                 este inverno
tão estranho para mim que chegava sempre em agosto
— eu com o tanto calor de Roma nos olhos tu com as praias
tecnocráticas made In Califórnia — e a tua casa
do Restelo os teus amigos de desvairadas línguas
em camas improvisadas as corridas nocturnas para o telefone
vozes do outro lado do mundo indecifráveis
e os teus filhos: Paulo Zezinha: os tantos filhos teus
todos os anos diferentes e Mécia longe por quem choravas
— esposa mãe amante — Mécia mulher telúrica
por cada amigo sonhada quase mãe impossível

mas vou pensar-te morto? não posso:
procuro um alibi na distância entre Roma
e Santa Barbara: procuro-te
por estas ruas de Lisboa onde uma chuva subtil
me faz voltar a tantos verões que nos julgavam estrangeiros
nessa tua cidade — com surpresa não ouço
a tua voz (tu que sabias tudo) guiando-me
entre palácios igrejas monumentos: a tua impaciente voz
de quem tinha feito arder dia a dia a vida com paixão

não creio que a morte exista: apenas uma fractura
entre o estar aqui e noutro lado: como
poderia perceber então teu pensamento
o prazer da luta num coração permanecido menino
a tua agressividade de tímido sem remédio?

queimo um a um todos os ritos para defender-te
ando pelo teu país como um cego — falo
de ti nas entrevistas faço subtis distinções
sobre a tua poesia entre os que te amaram
e os que diários te matavam com o veneno
terrível do silêncio — conferências sobre ti?
sinistras ironias dum amor (filial quase) — conferências sobre ti?
discursos em memória? que burrice
estás vivo Jorge vivo: ora então salta
aqui para esta plateia de vaidade humana
ri-nos nas trombas conta-nos as histórias mais obscenas
mija no chão e ri-te ri-te ri-te
de toda esta canalha que pensa que estás morto

Lisboa, 8/12/1978
(trad. de Fernando Assis Pacheco, Joaquim Manuel Magalhães e João Miguel Fernandes Jorge)

In: Sema, Lisboa, nº 2, 1979, p.96.

 

A Jorge de Sena

Da terra que se torna nevoeiro
em que a poesia nasce e sobrevive,
dessa escura distância de estrangeiro
que fez de ti escravo de seres livre,

sei que nunca direi quanto queria.
E não da consciência que a ti era
saber que em cada verso há outra vida –
– tão só deste fascínio que me espera

junto ao olhar vazio de que a grandeza
desesperadamente é feita ou faz-se:
pois aprendi contigo que a beleza
do nada dessa angústia é que nos nasce.

Poesia é voz do exílio e só dura
entre a névoa que a terra faz escura.
In: Jorge de Sena em Rotas Entrecruzadas, Lisboa: Cosmos, 1999. p. 9