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De Carlos Drummond de Andrade

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Jorge de Sena e Carlos Drummond de Andrade encontraram-se algumas vezes no Brasil, solidificando uma amizade que se iniciara epistolograficamente. Como prova de inquestionável admiração, também perceptível nos textos críticos que lhe dedicou, o poeta português chegou mesmo a agir, debalde, em prol de uma indicação do poeta mineiro ao Nobel. Com o comedimento que lhe é peculiar, Drummond deixa claro neste necrológio, além de seu grande apreço pelo confrade, um sentido de perda que largamente ultrapassa a esfera das relações pessoais.

 

 JORGE DE SENA, TAMBÉM BRASILEIRO.

«Morreu um dos raros portugueses universais do nosso tempo» — disse em Lisboa o poeta Eugénio de Andrade, ao comentar o falecimento de Jorge de Sena em hospital de Santa Bárbara, na Califórnia. E disse bem, mas poderia chamar-lhe igualmente «um dos raros brasileiros universais do nosso tempo». Porque Jorge de Sena tinha duas nacionalidades. Nascido em Lisboa, e formado culturalmente na Europa, tornou-se cidadão brasileiro por força da áspera condição que a ditadura salazarista impunha aos intelectuais não submissos, e aqui leccionou em cursos universitários. Como certa vez eu o declarasse brasileiro pelo sentimento, corrigiu-me em carta de 1972:

«Olhe que não sou brasileiro apenas pelo sentimento. Sou cidadão brasileiro desde 1963 (naturalização requerida em 1962, e que só saiu em princípios do março de 1965, por se não saber em Brasília, nas confusões da época, parlamentarismo, etc., quem assinava o decreto… que foi ainda o Goulart quem assinou e que está depositado em Araraquara, aonde a recebi), nacionalidade que mantenho, passaporte que possuo. O que no Brasil nunca foi muito público, por não se acreditar na nacionalização brasileira de portugueses que não sejam o padeiro da esquina. Por isso é que sempre me apresento como escritor português, cidadão brasileiro e professor norte-americano. Mas as minhas lealdades não são triplas e sim duplas, no que não vejo incompatibilidade alguma (para lá do respeito que devo às instituições do país que me emprega e onde vivo). No plano cultural e de amor aos países (amor bastante infeliz, porque a luso-brasilidade é uma raça danada), já que no plano político não a devo tecnicamente a Portugal. Este é que me deve a mim.»

Esta situação curiosa, quer civil quer psicológica, mostra como os regimes políticos de excepção podem influir no destino das pessoas jogando-as à mercê dos ventos num mundo gerido por fórmulas burocráticas e incompatibilidades políticas. Jorge de Sena acabou sendo um exilado profissional, buscando aqui e ah elementos de vida e de estudo. Foi fiel à culturalidade portuguesa, e seus ensaios sobre Camões, Fernando Pessoa, a pintura, a música, a filosofia do país natal, comprovam a permanência de suas raízes, entrelaçadas com um pensamento supranacional que justifica o juízo de Eugénio de Andrade: Jorge foi mesmo um espírito universal, completamente livre de pressões e interesses de grupo literário, magisterial, classista ou nacionalista. Seu feitio áspero, polémico, atingindo a agressividade, o terá ajudado no exercício da independência, traço distintivo de sua vida de intelectual rebelde.

Havia muitos «eus» pensantes e sentintes em Jorge de Sena professor, poeta, contista, crítico literário e de artes plásticas, dramaturgo, historiógrafo, ensaísta… homem pulsante, inquieto, brigão, generoso, buscando conciliar pensamento e sensibilidade numa poesia que, ao beirar inicialmente o surrealismo, alcançou a criação verbal destituída de apoio etimológico e semântico, em proveito da livre sugestividade. Isto sem perder de vista as potencialidades de sarcasmo, sátira e revolta do verso. Há composições suas que parecem escritas em estado de fúria, em protesto contra a mediocridade, a burrice, a hipocrisia, a injustiça, mas ainda nelas observo menos um panfletário em verso do que um ser ferido pelos desregramentos do mundo, um ser que não se adapta e sofre com a falta de autenticidade das fórmulas e dos homens.

(Jornal do Brasil,  Caderno B, quinta-feira, 8 de Junho de 1978 - pág. 5) CLIQUE NA IMAGEM PARA AMPLIÁ-LA
(Jornal do Brasil, Caderno B, quinta-feira, 8 de Junho de 1978 – pág. 5) | CLIQUE NA IMAGEM PARA AMPLIÁ-LA

Faltou a Jorge de Sena uma pátria constante e receptiva, que agasalhasse o seu destino de intelectual e erudito a serviço exclusivo do espírito. Teve de procurar outra e mais outra, afirmando-se, porém, mas ao mesmo tempo mutilando-se na aventura de errar pelo mundo, servir-se de bibliotecas alheias, ter um pouso de ocasião em vez da morada estável que é hoje impossível para tantos escritores e sábios. Teve assim a sorte de espanhóis, russos, latino-americanos, inclusive brasileiros, e de muitos outros países, a quem a intolerância mudou ou truncou o programa de vida. Não se deixou vencer, mas pagou alto o direito de amar a liberdade da inteligência, preservando a consciência crítica. Imagino, entretanto, que nenhum «cidadão do mundo» se console realmente de, por uma ou outra razão, lhe haver faltado a consonância por assim dizer musical entre sua vida e sua terra de nascimento. Haverá muitas maneiras de superar o desencontro, mas resta sempre a tristeza de nos haverem roubado alguma coisa de inalienável. Mas Jorge de Sena foi, durante anos, exilado mesmo em Portugal. Esta a vida que lhe tocou viver, mas que ele encheu com as ocupações do magistério errante, de análise e da invenção literária e com o sarcasmo, o ácido penetrante de sua poesia, explodindo em revolta contra as mentiras do nosso tempo.

Não soubemos conservá-lo conosco, nem sequer chegamos a conhecê-lo na plenitude de seu espírito. Foi um professor que passou pelo Brasil, de 1959 a 1965. Mas que sonhou em dar ao Brasil, através da língua portuguesa, uma situação de prestígio na literatura mundial. Se não o conseguiu, não foi por omissão. Merece a nossa lembrança, embora tardia.