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Jorge de Sena e alguns colegas da Faculdade de Engenharia. João António Ferreira Lamas é o primeiro à esquerda.

Jorge de Sena quando estudante de Engenharia visto por um colega

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O engenheiro João António Ferreira Lamas seria mais tarde um pesquisador fascinado pelo oriente e publicaria um livro sobre A Culinária dos Macaenses, mas durante os primeiros anos da década de 40 era apenas um estudante de engenharia na Universidade do Porto, como Jorge de Sena.  Seu depoimento sobre o antigo colega, que reproduzimos a seguir, foi originalmente publicado no “Dossier Jorge de Sena”, organizado por Luis Adriano Carlos para o Jornal Letras & Letras, em 1988.

 

Convivi com o Jorge de Sena, como colega de estudos, de 1938 a 1943, mais de perto nos últimos 3 anos daquele período, no primeiro dos quais fomos companheiros de quarto no Porto, quando alunos da Faculdade de Engenharia, para onde ele seguiu por lhe terem arrancado a sua verdadeira vocação, como ele próprio escreveu, excluindo-o da admissão à Escola Naval.

Quem com ele conviveu então, pelos seus 20 anos, podia aperceber-se da sua timidez, do receio de riscos, da falta de confiança nas capacidades físicas, de uma certa aparência de pouca virilidade.

Não se pode ter tudo, e o Jorge de Sena não tinha, sem dúvida, grande desembaraço físico.

Grande propensão para actividades políticas, não as tinha também então ele, fossem de que quadrante fossem, o mesmo acontecendo com todos os que foram no mesmo ano lectivo de Lisboa para a Faculdade de Engenharia do Porto.

Quanto à Guerra de Espanha, que entretanto já tinha acabado, a atitude era de condenação dos morticínios fraticidas de parte a parte e de discordância passiva para com o regime que se instaurou em seguida no país vizinho.

Quanto à II Guerra Mundial, a posição era a favor dos Aliados, mas sem extremismos de ideologias.

Relativamente à situação em Portugal, tinha uma posição crítica sem uma oposição frontal e, muito menos, qualquer tipo de actuação concreta. Não havia, por assim dizer, uma preocupação com a coisa política, o que constituía então o caso normal, ou médio, uma vez que se vivia nessa altura com a preocupação da guerra, que todos queriam afastada do nosso País e que, apesar de cá não ter chegado, nos ameaçava e nos atingiu fortemente, embora de forma indirecta.

Em termos de religiosidade ou de fé, o Jorge de Sena, não sendo de todo ateu, ou agnóstico, nem sequer descrente, vivia naquilo a que se poderia chamar uma situação de religiosidade angustiada. Numa ânsia de encontrar Deus como o veado a água viva, para usar uma expressão bíblica. Mas não era o Deus que os outros lhe mostravam, nem um Deus que fosse como ele quisesse fabricá-lo, como muitos há que pretendem. Ele ansiava por uma revelação de Deus directamente a ele, sem a mediação nem a presença de ninguém nem de mais nada. Leiam-se os quatro poemas criados nessa altura e publicados em Perseguição: «Declaração», «Unidade», «Purificação da Unidade» e «Caverna».

Espiritualmente, Jorge de Sena era irrequieto, inconformado, insatisfeito, sentia-se irrealizado, ou pelo menos não completamente realizado, e não compreendido nem capaz de se fazer compreender completamente.

Não era humilde, apesar das grandes dificuldades financeiras, nem soberbo ou arrogante, mas orgulhoso do valor que reconhecia ter. Não se mostrava assim para nós, colegas, como bom camarada que era, embora pouco comunicativo.

Possuía uma cultura geral invulgar para a sua idade e uma cultura literária excepcional e actualizada, tanto de língua portuguesa como francesa ou inglesa.

Era espantosa a sua capacidade de apreensão e de correlacionação das coisas, dos factos, das ideias e dos sentimentos, no espaço e no tempo, e a consequente lucubração e elaboração analítica e crítica.

Demonstrava nitidamente uma autêntica vocação para a criação literária, com todos os atributos que ela pode encerrar em si: inclinação, tendência, chamamento, predestinação, talento, apesar de ter que estar empenhado nas ciências da engenharia, que não deixaram contudo de contribuir, tal como se veio a verificar mais tarde, para a sua valorização integral como estudioso e como escritor, dando-lhe uma visão global mais alargada e uma soma de conhecimentos que pôde e soube utilizar e que, de outra forma, lhe seriam mais difíceis de adquirir.

Nota: O Eng.° João Lamas publicou na Revista da Ordem dos Engenheiros, Ingenium (Fevereiro de 1988), de que saiu Suplemento, o texto «O Sena que eu Conheci — Jorge de Sena, Estudante de Engenharia», transposição de duas conferências proferidas em Lisboa e no Porto, respectivamente em 2/11/87 e em 8/1/88.