De Mécia de Sena, em ‘Flashes’

Em 16 de março de 2015, Mécia de Sena completa 95 anos. Quando se cumpria um ano sobre a morte de seu marido, como forma de catarse para a dor sem remédio de perdê-lo, inicia a escrita de um originalíssimo diário, sob o bem escolhido título de Flashes. Nele evoca momentos de sua convivência com Jorge, elegendo-o constantemente como interlocutor privilegiado, como se também de um diálogo se tratasse. Desse work in progress, que deve andar à volta das 600 páginas, selecionamos alguns excertos já editados*, não só para aqui trazer olhar tão particular e próximo sobre o nosso autor, e tudo aquilo que o rodeava, mas também para homenagear, em data tão significativa, a mulher prodigiosa, de inegáveis qualidades na escrita.   

 

Mécia de Sena em Santa Barbara, 1993 (foto de Gilda Santos)
Mécia de Sena em Santa Barbara, 1993 (foto de Gilda Santos)

 

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Penso que foi na última vez que estive em Lisboa antes de ter mudado para lá, com vista a casar-me. Estava no Areeiro, como de costume. Iria embora no dia seguinte.

Despedimo-nos longamente, no patamar da escada. O Jorge começou a descer o lanço, que terminava noutro patamar, antes do lanço seguinte. Quando me debrucei para o acompanhar com a vista, a minha travessa caiu do cabelo, tlic-tlic-tlic, pela escada abaixo. Pensei, um pouco aflita: «Vai pensar que fiz de propósito» O Jorge estacara, olhou para mim fixamente. Tenho a certeza de que pensava: «Foi de propósito?» Baixou-se, apanhou a travessa, subiu a escada… e despedimo-nos de novo, longamente!

 

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Uma das qualidades que eu mais apreciava no Jorge era a sua capacidade de admirar: um verso, uma paisagem, um torneado, uma luz, um rosto ou um corpo, uma passagem musical, um doce, uma palavra em qualquer língua… tudo podia ser «belo» ou «tinha» ou «era» de «uma beleza» «extraordinária» ou «rara» ou mesmo só «alguma».

Impossível exemplificar… para a admiração justificada tinhas uma disponibilidade total.

 

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Muitas vezes, a partir de um verso, de um nome, de uma obra, o Jorge se esquecia do tempo falando e lendo os mais variados poemas que me ia traduzindo, se em língua que eu não dominava. Não tenho memória de que alguma vez incluísse leitura de poemas seus, ou que deles me tivesse feito sessão especial, para lá de mos ler após escritos, ou num especial a-propósito.

Comentava isso ontem com o Jack Schmidt – era sempre da poesia dos outros que falavas, era sempre a poesia dos outros que fazias estimar, com que criavas o gosto de lê-la. E, pelo contrário, sempre te vi relutante em ler o que fosse teu, mesmo a insistente pedido.

Uma vez te perguntei a razão de tantos rodeios e explicações quando acedias à leitura (visto que nada teu jamais soubeste de cor) – era como despir em público, me respondeste.

Era bem tua essa espécie de pudor de tudo quanto é íntimo, daquilo de que se pode escrever mas se não pode falar.

 

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Naquele dia o Casais Monteiro chegara ao café espumante em fúria. O Carlos Passos, do Porto, conhecido pela sua azeda e rebuscada prosa, atacara-o num jornal. Mas não era o ataque que o enfurecia, dizia o Casais, mas tê-lo feito ir ao dicionário ver uma palavra que lhe chamava e ele não sabia o que significava: «enxovedo».

 

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 António Pedro… Tinha um minúsculo carro de sport. Contava que um dia quesilara na estrada. O outro automobilista saira do carro com ar de pedir meças. Mas quando ele começara a avultar para fora do carro o outro exclamara: «assim não vale» é, à gargalhada, ambos haviam voltado aos seus respectivos carros e seguido os seus caminhos.

 

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Manuela Porto acedera por amizade para com o Jorge a dizer poemas do Fernando Pessoa na conferência que ele faria no Ateneu Comercial do Porto, em 12 de Dezembro de 1946. Foi um éxito. Estou a ouvi-la: «Onda-que-enrola-da-tor-nas…

 

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 Houvera uma esparsa correspondência antes. Um dia o Padre Manuel Antunes anunciou que estava em Lisboa. Combinou-se que viria a nossa casa, no Restelo, pelas 11 da manhã. O Jorge estava um pouco nervoso – sabia quem enfrentava e não lhe seria fácil.

O Padre Antunes chegou: débil, tímido, falas mansas e claras, bem articuladas. Houve um tempo de dificuldade. Pela uma hora perguntei-lhe se queria almoçar conosco. Almoçou, debicando o que havia e podia comer dentro de sua rigorosa e frugal dieta. Tomou chá pela tarde. Jantou. Pelas onze da noite perguntou se não poderia retirar-se para outro compartimento para meditar as vésperas…

Saiu tarde, discretamente, sorridente.

Ficamos amigos para sempre – baptizou-nos três filhos; velou-te quando foste operado. Foi nosso hóspede, em Santa Bárbara.

Mandou-me um telegrama: «Surpresa dolorosa sentimento fraterno.»

 

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Leio num diário teu: «Escrevi, até as 4 da manhã, um conto: ‘Super Flumina…’ que não esperava.» Ficaras «escrevendo pela noite adiante», tal como o terminas.

Que aconteceu depois quando te deitaste? Adormeceste com o livro aberto sobre o peito e eu to fechei, tirei-te os óculos e antes de apagar a luz te ouvi um «obrigado» pouco mais que ciciado? Ou não adormeceste e nos possuímos como se tivéssemos acabado de sofrer todas as dores do mundo?

Ou apenas ajustamos os nossos corpos em ansiosa ternura, numa oferta de repouso mútuo?

 

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Uma noite em que o Jorge não se deitara comigo, acordei deveriam ser umas três da manhã. Não o vendo ao meu lado, levantei-me e dirigi-me para o escritório. Quando comecei a descer as escadas, vi-o ao fundo no pequeno hall entre as escadas e a porta do guarda-vento. Na semipenumbra, estava parado, imóvel, estático, em frente à clarabóia que existia na parede.

Quando me sentiu, voltou-se para mim um pouco como quem acorda e à minha pergunta respondeu que estava bem, não me preocupasse, «vai-te deitar».

Nunca fui capaz de entender se fora dos meus olhos ou se havia no ar, parado e em surdina, algo de encanto que apenas um leve estremeção de ver-me quebrara ou tão-só interrompera.

Ainda vi que em passo lento se encaminhava, na contraluz, para a secretária.

 

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O Jorge sabia tudo – mais, tinha sempre um livro para ilustrar o seu conhecimento. Um dia, em Araraquara, os pequenos entraram de roldão mostrando-me uma coisinha que, agitada, fazia um barulhinho como de matraca. Foi uma excitação e decidimos que «desta vez, o papá não vai descobrir o que é» – entrámos pelo escritório sorridentes e ansiosos exibindo eu a «coisinha» que lhe cheguei a cara, antegozando a ignorância. Perguntei: «O que é? Levantou os olhos do papel e displicentemente, sem a menor hesitação, respondeu: «É a ponta do rabo de uma cobra cascavel.» Ficamos varados – era. Desisti de o pôr a prova!

 

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Uma vez conversava-se amenamente em grupo. Contávamos de dificuldades e também deste álbum que compráramos daquela vez que fôramos não sei onde… Um dos interlocutores (americano, é bem de ver) comentou, numa pausa: «Mas como é que vocês, com tantas dificuldades, podiam fazer isso? ‘Prontamente lhe respondi: «Porque, graças a Deus, somos loucos!» A estrondosa gargalhada do Joaquim ainda hoje me soa nos ouvidos.

 

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Chegáramos a Roma, e, apesar da preocupação com a saúde convalescente, o Jorge começou a fazer projectos de mostrar-me mil coisas, que fui refreando. Fez, contudo, questão de mostrar-me a Villa Borghese.

Disse-lhe que não queria ir porque já sabia que não deixaria de percorrer tudo comigo e eu ficava aflita. Prometeu-me que não, ficaria sentado na entrada, quietinho, à minha espera. E lá fomos.

Quando entrámos, olhei, no átrio em frente à enorme escadaria de pedra, a ver se haveria onde ele se sentasse. Mas já ele me dava o braço sorrindo, e começava a subir lentamente. Quando passou o último degrau, olhou-me radiante: «Viste, não aconteceu nada!»

Parecias um menino que tivesse feito uma inocente e bem sucedida partida – estavas triunfante.

Mas tê-la-ias feito? Ou apenas não resistiras ao sempre sedento desejo de ver ou rever comigo tudo, a despeito da sinceridade da promessa e das precárias forças que já não chegaram para dar volta aos famosos jardins?

 

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Ia entrar no escritório e vi que o Jorge escrevia um poema. Já não entrei e fiquei à espera que me chamasse para mo ler, como sempre fazia. Não chamou, e daí a pedaço voltei. O poema estava em cima da secretária. Li: “Aviso a cardíacos…”  Comentei que era terrível, e “tu sabes que profundamente injusto para mim e para todos”  — Olhou-me com uma tristeza infinita, e, com voz magoada, tão magoada!, respondeu-me: “Eu sei… eu sei, mas é o que eu sinto”.

Entardecia. Estávamos em pé, no corredor, em frente à porta para o páteo. Sentíamo-nos ambos angustiados — e nem sequer sabíamos de que tínhamos de ter medo. A terrível notícia só veio onze dias depois.

 

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Mal sairam as memórias de Frieda Weekley Lawrence, Jorge leu-as absorvidamente. Quando acabou disse-me: «Lê, são lindíssimas, gostaria imenso que alguém escrevesse de mim assim um dia. Não que ela não diga coisas até cruéis, mas o amor com que as diz!» Pensei: «para longe vá o agouro». E de cada vez que pensava em tê-las, não conseguia sequer pegar no volume da estante.

Com o tempo tornou-se-me até muito mais difícil à medida que se me ia formando a identidade da imagem dela comigo, não pelo talento, mas na ternura e compreensão dos gigantes que nos encheram a vida.

 

(* nas coletâneas Jorge de Sena, o homem que sempre foi e Quaderni Portoghesi, 13-14)

 

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