Armando Baptista-Bastos sobre Jorge de Sena

Ao trazermos aqui o testemunho sobre Jorge de Sena do premiado jornalista e ficcionista Baptista-Bastos (Lisboa,1933-2017), tomamos como elo de suas quatro crônicas as menções ao “Discurso da Guarda“, a que assistiu pessoalmente em 1977 e que comumente referencia, recomendando-o aos portugueses como leitura obrigatória.

Baptista-Bastos dizia-se um “admirador sem condições” do autor de “Sinais do Fogo” (em sua opinião, “um dos maiores romances da literatura portuguesa de sempre”). Acreditava que “Portugal deve muito a Jorge de Sena. Jorge de Sena nada deve a Portugal. Durante os quarenta e oito anos de sequestro da pátria ele foi um dos que não admitiu a curva da cumplicidade e do silêncio. Representou o País com textos imprescindíveis, escreveu o que tinha a escrever e, também, porque Mécia o incitava, o estimulava.”

Efetivamente, Baptista-Bastos nunca deixou de destacar o trabalho de Mécia junto ao marido: “Ocasionalmente, ela manteve-se na sombra; mas nunca esteve por detrás dele: esteve sempre a seu lado, como a escora de uma casa que precisa de existir.”

 

 

05 de Fevereiro de 2008

Memória de Jorge de Sena
Por Baptista-Bastos

A REVISTA LITERÁRIA Relâmpago vai editar um número dedicado a Jorge de Sena. Mais do que justo. Sena é um dos maiores intelectuais portugueses do nosso tempo, um extraordinário romancista, um prefaciador incomum pelas pistas de leitura que propõe, um ensaísta fora de série – e um dos três maiores poetas que Portugal produziu no século XX. Quando, em 1977, nas cerimónias do 10 de Junho, Guarda, proferiu o discurso inaugural, a convite do Presidente da República, Ramalho Eanes, o autor de Metamorfoses e Peregrinatio ad Loca Infecta advertiu, grave e veemente, dos perigos que corria a democracia, caso desistíssemos de ser cidadãos. É um documento impressionante, pela previsão crítica e pela luminosa lucidez. Tempos antes, numa entrevista que lhe fiz para o Diário Popular, afirmou que “estavam a repetir- -se os vícios do Estado Novo”.
Como era de hábito, as declarações de Jorge Sena fizeram estremecer as bem-pensâncias. Nunca moera as palavras no vácuo. Nunca fizera conversa mole, e sempre dissera o que entendia dever dizer, doesse a quem doesse. O País padreca, de literatos menores, de cabisbaixos campeões da convivência, não perdoava a este homem livre e, ainda por cima, de alto coturno intelectual, a grandeza que se não burilava com frases de pequeno conceito.
Fomos amigos, carteámo-nos dividindo sarcasmos e alguns desprezos. A correspondência afectuosa tem continuado com sua mulher, Mécia de Sena, também ela uma escritora de belíssimo registo. A dimensão do romancista de Sinais de Fogo (raramente citado, embora seja um dos grandes textos ficcionais da literatura portuguesa) era e é demasiada para o mesquinho na mesquinhez de uma pátria na qual o desnecessário recebe o contentamento, e a mediania ascende às primeiras páginas dos suplementos “culturais”. O processo de amnésia histórica possui bases ideológicas, e os acasos da fortuna são convertidos em evidências da razão. A revista Relâmpago corrige uma omissão, emenda um deliberado esquecimento e sentencia às sombras da afronta a ignorância atrevida de um jornalismo traquinas. Tudo o que Jorge de Sena pressagiou, no discurso da Guarda, e na entrevista (com outra) ao Diário Popular, se tem confirmado. A democracia portuguesa está deformada. Os partidos estão desacreditados e os políticos são desacreditantes. Portugal sobrevive num sonambulismo onde o desacerto se tornou coisa aprazível e a mediocridade a medida de todas as coisas.
Recordo o meu amigo inesquecível. E, também, o desassombro intelectual e a braveza moral de um homem que, no momento dado, não hesitou em participar numa revolução armada, antecedente do 25 de Abril, e conhecida pela Revolta da Sé.
Pátria madrasta, País padrasto.

(Fonte: blog Sorumbático)

 

26 de junho de 2009

Mécia e Jorge
Por Baptista-Bastos

O espólio de Jorge de Sena foi entregue pela viúva, Mécia, à Biblioteca Nacional. Será bom que o País saiba agradecer este acervo, certamente notável, de documentos, manuscritos, cartas e livros que fizeram parte da vida do grande escritor. Da vida dele e de Mécia, a mulher que recusou ser o lugar de espera para ser a activa companheira de uma singularíssima aventura intelectual e moral.

Mécia de Sena, a D. Mécia como é comummente tratada, proporcionou ao marido tudo quanto ele necessitava para produzir uma obra absolutamente invulgar. Cuidou do silêncio numa casa cheia de filhos; defendeu a privacidade de um escritor que sabia, como poucos, conversar com a eternidade das coisas; organizou a economia doméstica de um lar onde a abundância nunca fora sobejo; evitou o atrito, as mortificantes quezílias quotidianas; andou com ele de um para outro lado, sofrendo as vicissitudes de uma vida invulgarmente desafiadora. Mécia de Sena foi, sempre; e esteve, sempre.

É imperioso que se fale desta mulher extraordinária, com admirável talento para a escrita (conheço alguns textos de sua autoria, que, há tempos me ofereceu), que viveu e vive para defender a obra e a memória do marido. Conheci-a em 1977, durante as comemorações do 10 de Junho, que tiveram outro cariz devido à influência do Presidente Ramalho Eanes. Nessa oportunidade, Jorge de Sena, convidado oficial do Presidente, proferiu o famoso Discurso da Guarda, um poderoso documento cuja leitura deveria ser constante objecto de afeição e de estudo.

Eu fora à cidade alta enviado do jornal onde então trabalhava, o “Diário Popular”, e, antes das cerimónias falara um pouco com Sena. Pareceu-me um pouco fatigado, sem nunca perder o fulgor da palavra e a veemência do gesto. Mécia de Sena lá estava, junto a ele, observando-o com os olhos do coração e a ternura de quem não sabe o que é a desistência. Saberia, já, que o marido se encontrava gravemente doente? Se o sabia, não o demonstrou. A fibra desta mulher não permitia o mínimo sinal de fraqueza. (Sena nasceu em Lisboa a 2 de Novembro de 1919, e faleceu a 4 de Junho de 1978, com um tumor na cabeça).

Dois anos antes, numa entrevista que me deu, afirmou ver “os velhos hábitos do Estado Novo”? a serem reconstruídos. A declaração caiu mal, mas a verdade dos factos ia-se lentamente confirmando. O grande autor de “Metamorfoses” e de “O Físico Prodigioso” trazia Portugal na alma e, na verdade, não o convidavam para coisa alguma, tendo sido, inclusive, recusado para professor da Faculdade de Letras. Sabia muitíssimo mais, era muitíssimo mais culto, diligente e activo do que a maioria dos lentes. Talvez por isso mesmo o haviam recusado. No meio disto, uma história tenebrosa, cuja responsabilidade cabe, inteira, a um catedrático em vigília de inveja.

O abanão não derrubou o ânimo de Mécia de Sena, demasiadamente combativa e digna para a desistência. Escorou o desgosto de Jorge com os incitamentos necessários à continuidade de uma obra formidável. “Sinais de Fogo”, um dos maiores romances da literatura portuguesa de sempre, foi editado postumamente, entre outros livros, devido à constância e à persistência de Mécia de Sena.

Há dias, vi-a na televisão. Cheguei atrasado ao programa. Nem sequer sabia que o documentário iria ser exibido. A RTP gasta tempo e paciência em colaborar na imbecilização dos telespectadores, com o contrato do Cristiano Ronaldo, anunciando, vezes sem conta, o que o futebolista irá dizer. Quanto a falar, neste caso, de um filme sobre Jorge de Sena e Mécia, nem pensar. Foi o acaso do ‘zapping’ que me conduziu a uma parte do documentário, que me pareceu muito digno e didáctico. Como disse Manuel Viqueira, professor universitário, “a posteridade irá resgatar” o grande autor, imerso num oceano de silêncio e de ignorância, que seria muito maior não foram os esforços, os trabalhos, a grandeza e o amor de Mécia.

Portugal deve muito a Jorge de Sena. Jorge de Sena nada deve a Portugal. Durante os quarenta e oito anos de sequestro da pátria ele foi um dos que não admitiu a curva da cumplicidade e do silêncio. Representou o País com textos imprescindíveis, escreveu o que tinha a escrever e, também, porque Mécia o incitava, o estimulava. Ocasionalmente, ela manteve-se na sombra; mas nunca esteve por detrás dele: esteve sempre a seu lado, como a escora de uma casa que precisa de existir.

Há anos que nos carteamos. Agora, estou-lhe em falta: um pequeno acidente físico tem–me impedido de com ela falar. Mas Mécia de Sena sabe muito bem quanto a estimo e admiro. E essa grandeza eleva-se-lhe ao ponto de entregar a Portugal um espólio sem preço. Saiba, agora, o País corresponder, honrando a memória de Sena e beijando as mãos e Mécia.

(Fonte: Jornal de Negócios)

 

12 de Outubro de 2011

Resistir é combater
Por Baptista-Bastos

DE VEZ EM QUANDO regresso aos poetas. Há tempos revisitei Pedro Tamen, cuja ironia dissimula a dor, “a dor que deveras sente”, e esse impulso cego de uma procura muito próxima do desespero português. Agora, Estar é um daqueles livros onde a metáfora convoca para a esperança com reservas. E nos faz pensar na impossibilidade das possibilidades mais evidentes. Em Portugal, tudo é relativo e ambíguo. Tudo é adiado, e o que o não é transforma-se num atabalhoamento. Como o que se verifica agora. Não se sabe para aonde caminhamos, se é que caminhamos para um aonde.

“Que Portugal se espera em Portugal?”, perguntava outro maior, Jorge de Sena, cujo discurso, pronunciado na Guarda, em 1977, por ocasião do 10 de Junho, deveria ser leitura, não direi obrigatória (detesto este tipo de obrigações), mas sim incentivada por quem sabe do mundo e das coisas. O texto de Sena era premonitório. E ele leu-o com a veemência própria de quem conhece as flebilidades da pátria. Falámos um pouco, nessa oportunidade. Sena não acreditava no liberalismo, que começava a ter os seus propagandistas a soldo. Dizia: o liberalismo pode permitir e até incentivar a produção; mas não reparte nem o trabalho nem os rendimentos. O aviso era claro. Mas o País vivia, ainda, a euforia da queda do fascismo, e não pensava nessas minudências.

Eu próprio, confesso-o, achava que o meu amigo exagerava na dose. Ignorava o que Sena preconizava, por conhecimento e estudo: faltava, a esses novos donos do mundo, transcendência, cultura e humanidade. A Escola de Chicago retomava uma influência nefasta, com dois Nobel, Milton Friedman e George Stigler, a defender a competitividade como norma e a solidariedade como excepção. Se relermos o admirável texto de Jorge de Sena notamos que não perdeu actualidade.

Mas o pior não é, somente, o facto de estes novos senhores lerem pouco e mal. O pior, realmente, consiste em que eles ignoram os limites das suas competências e fizeram recuar os princípios mais elementares da decência e da dignidade humanas.

Quatro em cinco portugueses (li, há dias) sofrem de problemas mentais, em maior ou menor expoente de gravidade. O desemprego, a doença, as pressões sociais, a ameaça da destruição da assistência, da saúde, da educação pública são assinalados como promotores desta desgraça, que não pára de se acentuar.

Agora, Estar, dizia Pedro Tamen. Afinal, estar é uma maneira de resistir. E sabe-se que resistir é uma forma de combater. Mas não há combate sem sofrimento. Claro que existe um projecto de destruição do chamado “velho mundo” [Alain Badiou], mantendo a aparência de democracia, cujos mecanismos só subsistem na superfície. A razão do Estado económico é antagonista da razão ética do Estado. Precisamos de ter este aviso sempre em conta.

(Fonte: blog Sorumbatico)

 

14 de junho de 2013

… E os velhos combatentes?
por Baptista-Bastos

Não me parece que as comemorações do 10 de Junho possuam algum significado emocional e popular. No fascismo era o Dia da Raça. As figuras do regime apresentavam-se, festivas e graves, num palanque montado a sul do Terreiro do Paço, desfilava a tropa, e os próceres colocavam piedosas medalhas no peito ou nas lapelas dos casacos das mães, dos pais, das mulheres ou das noivas cujos filhos, maridos ou noivos tinham morrido nas frentes da Guerra Colonial.

Era uma cena pungente assistir às reportagens que a RTP (ainda não havia outra) transmitia. Os familiares dos mortos, vestidos com os fatos domingueiros, a amargura nos rostos, amarfanhados, ausentes e funestos eram condecorados por Salazar, depois por Caetano, Tomás e elevadas patentes da tropa; soavam a Portuguesa e toques de clarim tristes; depois, iam todos para casa.

A democracia trouxe outras normas. Escrevi, para o “Diário Popular”, a crónica de alguns desses acontecimentos. O mais importante deles, o de 1977, na Guarda, era Eanes Presidente da República, fez-nos amigos, e de mim para ele um admirador sem condições. Na ocasião, Jorge de Sena, o grande Jorge de Sena, proferiu um discurso memorável e empolgante. Eu viajara para a cidade alta com o meu camarada José Antunes, repórter-fotográfico dos maiores deste País, e com Rocha Pato, grande jornalista, correspondente do “Popular” em Coimbra. A homenagem à diáspora portuguesa foi um momento alto da grande festa. Vale a pena, ainda hoje, ler o reler o texto que Jorge de Sena escreveu e leu com uma emoção e uma veemência inigualáveis.

As coisas, nessa altura, possuíam um cunho de genuinidade e de grandeza que se perdeu para sempre. Hoje, o 10 de Junho é uma comemoração pífia, com gente pífia, medíocre e insalubre. Nesse período, telefonava, à tarde, para casa a fim de saber da Isaura e dos miúdos. Ela disse-me: “O teu pai foi internado. Está mal. Mas disse para fazeres o teu trabalho.” Quando acabei o meu trabalho, regressei a Lisboa: o meu Velho morreria nesse dia. “Ele estava à tua espera”, disse a Isaura. E estava.

O 10 de Junho, em 1977, na Guarda, é um episódio que me fez redescobrir a mim próprio sem mal-entendidos; a perceber a natureza grata de muitas coisas e a respeitar as características de uma profissão que permanentemente refaz o processo das nossas emoções mais fundas. E, aqui, o agora Velho Bastos recorda o outro Velho Bastos, também ele construtor de jornais.

O 10 de Junho de hoje é mais fútil, desprovido de qualquer sentido de elevação e de nobreza. Camões merecia muitíssimo mais do que este desfile tosco e tolo, esta parada de vaidades de uma gente que nada tem a ver com ele – e nem sequer o lê, como provadamente o atestou o triste e fatal dr. Cavaco.

Devo dizer aos meus Dilectos que apreciei imenso assistir à marcha dos velhos combatentes das Guerras Coloniais, com suas boinas das companhias a que pertenceram e suas condecorações orgulhosas e merecidas. Estes homens têm sido miseravelmente esquecidos, e atirados para o limbo das realidades a ignorar. A Direita utiliza-os com sórdida velhacaria. Recordo as declarações patrioteiras de Paulo Portas, agora afectado por outros chamamentos. Enquanto a Direita faz o que faz, e é péssimo, mal menor não será o desdém e a desatenção da Esquerda por estes homens que os acasos da História transformaram em heróis do desespero. O desfilar daqueles homens comoveu-me e acordou-me para as responsabilidades de todos aqueles que, como eu, vivem em voz alta, e têm negligenciado os aspectos mais relevantes da nossa História. Uma história que, feitas as contas, pertence a todos nós, sem omissões ou exclusões. Que vivam eles para honra da nossa memória colectiva!

(Fonte: Jornal de Negócios)