Sobre encontros e desencontros: Manuel Bandeira, Jorge de Sena e André Malraux*

 

Ao pesquisar sobre as relações entre intelectuais portugueses e brasileiros, onde se alternam enlaces e desenlaces sem conta, não são raros os episódios curiosos ou registros surpreendentes com que nos deparamos.  Fragmentos laterais a uma reflexão mais densa, por que não divulgá-los?  Dentre estes, ocorreu-me evocar aqui uns pouco conhecidos encontros e desencontros entre Manuel Bandeira, Jorge de Sena e André Malraux, que tiveram como palco o Rio de Janeiro.

 

1º ato: MANUEL BANDEIRA  E  JORGE DE SENA

Jorge de Sena declara ter convivido com a Literatura Brasileira moderna desde os anos 30, ainda na casa de seus pais, e destaca a grande importância dela na formação do leitor português da época:

 

Nesses anos 30 e nos 40, a literatura brasileira moderna, e muito especial a poesia, teve para os poetas portugueses uma importância enorme, e poetas como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Murilo Mendes, Jorge de Lima, Ribeiro Couto, etc. eram a imagem complementar de uma modernidade que, em Portugal, se manifestara quase só em Pessoa, Sá-Carneiro e Almada-Negreiros, cujas obras, até aos fins dos anos 30 e princípios de 40 eram mais mitológicas e menos acessíveis do que as daqueles poetas brasileiros[1].

Dentre esses nomes, o de Manuel Bandeira sempre lhe mereceu atenção especial.  Tanto que dedicou ao volume português que Adolfo Casais Monteiro organizara sobre a obra do poeta brasileiro (estudo e antologia), uma de suas primeiras resenhas, publicada em 1944, aonde o jovem Sena (de 25 anos) o enaltecia ao máximo.  Pouco tempo depois, começou a troca de correspondência entre os dois poetas, estreitando uma amizade que o tempo só veio a fortalecer.  Pelo menos da parte de Jorge de Sena essa amizade não pode ser posta em dúvida, visto que há fortes evidências documentadas.

Se observarmos a coletânea de Estudos de Cultura e Literatura Brasileira assinados por Sena, é a Manuel Bandeira que está consagrado espaço maior do que a qualquer outro autor brasileiro ali mencionado, em numerosas páginas que oscilam do crítico ao memorialístico, mas sempre com declarado apreço.  A par disso, Jorge de Sena cantou o amigo em alguns poemas, de diferentes formas.  São conhecidos os títulos “Nos setenta anos do poeta Manuel Bandeira“[2], “Nos setenta e cinco anos do poeta”[3], “Morte de Manuel Bandeira”[4] e “Poema desentranhado de um poema de Manuel Bandeira”[5].  Há ainda a dedicatória do poema “Meditação em King’s Road”[6], compartilhada com Dame Edith Sitwell, “em lembrança de uma tarde de Londres”.

Esse memorável encontro em Londres, em 1957, em que Sena ciceroneou Manuel Bandeira, mereceu também alguns parágrafos na crônica que Bandeira intitulou de “Vi a Rainha”[7]:

Dias depois de minha chegada à Inglaterra, tive o raro prazer de estreitar nos braços, comovidamente, o Jorge de Sena.

Claro que de nome já o conhecia bem, desde uma nota crítica escrita por ele para a revista Inquérito a propósito do estudo que Casais Monteiro fez de minha poesia.  Depois veio a oportunidade de admirar o dramaturgo de O Indesejado, o poeta de As Evidências, para só citar duas obras-primas de sua bagagem de escritor.

Esse engenheiro-poeta é um homem que tem a paixão da história…  Mas de que é que ele não tem paixão?  Música, artes plásticas, de tudo ele entende, tudo ele estuda, e como tem uma memória de anjo, a sua conversa é repleta de sabedoria e informação.

Que sorte tê-lo por cicerone em duas ocasiões: visitando a National Portrait Gallery e a abadia de Westminster.

O dia de Westminster foi um dos que mais me impressionaram em Londres.  Parar junto ao túmulo de Elizabeth, reparar (graças à advertência de Jorge de Sena) no anel que a rainha deu ao seu favorito Essex, depois parar junto ao túmulo de Maria Stuart, olhar de longe o túmulo de Chaucer…  Não nomeemos mais ninguém.  Sena disse excelentemente: Westminster é como um Convento da Batalha que tivesse dentro um Cemitério dos Prazeres.

Ter Jorge de Sena deixado de lado suas múltiplas tarefas para guiar Manuel Bandeira em sua visita a Londres dá bem conta da vontade de um convívio maior com o poeta que ele tanto admirava.  E em 1959, quando se transferiu, auto-exilado, para o Brasil, foi Manuel Bandeira uma das primeiras pessoas a quem visitou no Rio.

 

2º ato:  JORGE DE SENA  E  ANDRÉ MALRAUX

Jorge de Sena foi tradutor de A Condição Humana para o português e autor de um prefácio para essa tradução, publicada em Lisboa em 1958, pela Ed. Livros do Brasil.  Na coletânea de ensaios Maquiavel, Marx e outros estudos, primeiramente publicada no Porto no marcante ano de 1974, Jorge de Sena incluiu não só esse prefácio mas ainda um artigo, escrito cerca de um ano depois, em que retoma a obra malruciana.

No primeiro texto (Ver texto completo no site), Jorge de Sena abre seu comentário acerca de A Condição Humana deixando logo expresso o alto juízo em que a tem: é sem dúvida um dos grandes livros do nosso tempo, e ouso dizer que uma duradoura obra-prima da literatura universal[8].

Depois, ocupa-se do homem Malraux, apontando suas “posições contraditórias” como “uma natural coerência”[9] É claro que essa trajetória (e ideais que a determinaram) vai tornar Malraux uma figura cara a Jorge de Sena, intelectual que sempre fugiu a alinhamentos automáticos, muito cioso de sua independência.  Mas a entrada de Malraux no cenário político, ligado ao General De Gaulle, vai expor o intelectual francês ao jogo próprio da política, jogo altamente flutuante, tornando o escritor objeto dos consequentemente flutuantes julgamentos de ocasião.  Ainda assim, justapondo o homem de ação ao intelectual, a avaliação de Jorge de Sena continua positiva: Seria, porém, injusto não reconhecer a autenticidade de uma obra muitas vezes incompreendida ou condenada em função das atitudes do seu autor.  De resto, que o tenha sido é por certo um sinal seguro dessa autenticidade dúplice[10].

No final, Jorge de Sena se restringe ao texto de A Condição Humana, reiterando a elevada apreciação que dele faz.  Agora, porém, fundamenta o julgamento pela apresentação das características que lhe permitem acentuar o extraordinário valor da obra: Malraux é magistral em algumas das suas páginas, no sugerir que o homem pode aprender à sua própria custa a “grandeza”.  E conclui destacando a análise magnificente daquilo a que Camões (outro aventureiro, muito contraditório, de um período crítico da história humana) chamou, com evidente conhecimento de causa, “estranha condição”.  Exatamente assim: a estranheza, tão natural e tão grave, de que todos somos feitos[11].

Certamente por partilhar das mesmas convicções de Jorge de Sena, o editorialista do Suplemento Literário d’O Estado de São Paulo, em 22 de agosto, prepara seus leitores com palavras encomiásticas para a recepção à renomada personalidade que pela primeira vez visita o Brasil:

 

Se jamais houve escritor que encarnasse a sua própria época e da maneira mais exemplar, é ele André Malraux.  Por isso mesmo, estamos longe de poder defini-lo e escapar ao fascínio da sua obra e ao prestígio da sua biografia.  Esse homem que não atingiu ainda a idade em que é costume sagrar a glória reconhecida, carrega nos ombros a pesada responsabilidade, não apenas de uma obra literária que exercesse influência sobre a sua e as seguintes gerações, mas de se ter constituído quase como um padrão da atitude do intelectual na Cidade[12].

O segundo texto da mencionada coleção de ensaios senianos, sob o título de “O meu encontro com Malraux”, foi publicado originalmente nesse mesmo Suplemento desse mesmo jornal, mas dois meses depois, mais precisamente a 17 de outubro de 1959.  Jorge de Sena mantinha aí uma coluna, “Letras Portuguesas”, desde antes de vir para o Brasil, mas talvez o supra citado editorial tenha influenciado sua escolha quanto ao local de publicação.  Nesse artigo, Sena volta a situar A Condição Humana no topo da escala avaliativa.  Modestamente, ao considerá-lo um livro extraordinário (mais adiante: obra fundamental) escreve que dispensaria ele sua opinião para ser tido em tão alta conta.  E mais: Ninguém continuaria igual ao que era depois de o ter lido.

Mas o texto de Jorge de Sena, apesar do título, é sobre o seu desencontro com Malraux no Rio de Janeiro.  Como informa em nota, houve a coincidência de a visita oficial de André Malraux ao Brasil acontecer em agosto de 1959, portanto no mesmo mês e ano em que Jorge de Sena se exilara no Brasil, sob a justificativa oficial de vir participar do IV Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, realizado em Salvador, Bahia.  Depois do congresso e antes de se fixar no Estado de São Paulo, passou alguns dias no Rio, de modo que estava na cidade naquele 27 de agosto de 1959, dia em que André Malraux, foi recebido com pompas e agitação dobradas – “a multidão era tanta que não se podia entrar no prédio” – numa entrevista coletiva agendada na ABI – Associação Brasileira de Imprensa: afinal tratava-se do escritor famoso e Ministro de Estado do General De Gaulle.

Jorge de Sena dirigiu-se à ABI para encontrar o pensador e artista que escreveram o livro que traduziu e prefaciou, mas o pensador e o artista não compareceram naquele dia à ABI, substituídos tão somente pelo Sr. Ministro, que saiu pela “porta dos fundos” para fugir dos fãs e de mais perguntas dos jornalistas, enquanto seu carro oficial seguia vazio, despistando o público com a barulhenta escolta.  Cena que reproduzia, para um estarrecido Jorge de Sena, o que Malraux descrevera em A Condição Humana no falhado atentado contra Chiang-Cai-Cheque. (Ver texto completo no site.) Cotejada com o mencionado editorial, seria irônica, se não fosse melancólica, a experiência aqui narrada…

 

3º ato:  MANUEL BANDEIRA,  ANDRÉ MALRAUX  e  JORGE DE SENA

Na mesma 5ª feira da ABI, mas à tarde, a agenda de Malraux previa um encontro, regado a chá, com os “imortais” da ABL-Academia Brasileira de Letras.  A expectativa dos acadêmicos parecia grande, pois as atas das sessões de 30 de julho, 6 e 20 de agosto[13], já registram anúncios – por parte do então Presidente Austregésilo de Athayde – da futura visita e os seus preparativos, que incluem os convites a serem feitos, tanto aos confrades e suas esposas, como às autoridades: o Ministro das Relações Exteriores, o Embaixador e o Conselheiro Cultural da França e o Chefe do Departamento Político e Cultural do Itamaraty.  E, afinal, na ata do dia 27 de agosto lê-se o seguinte:

 

A Academia prestou esta tarde, oferecendo-lhe um chá, justa homenagem ao escritor André Malraux, atualmente Ministro dos Assuntos Culturais da França.  Recebido por membros da Diretoria e vários dos Srs. Acadêmicos, André Malraux percorreu as instalações da Casa, mantendo, em seguida, cordial palestra com os presentes, entre os quais se notavam as excelentíssimas senhoras do Membros Efetivos da Academia e os Srs. Bernard Hardion e Jean Binon, respectivamente, Embaixador e Conselheiro Cultural da França.

Da sessão não há registro divulgado na imprensa[14], a não ser a crônica de Manuel Bandeira, estampada no Jornal do Brasil do dia 30 de agosto.  Crônica esta, que, curiosamente, não figura em qualquer edição das obras do poeta publicadas em volume.

Como adiante se verá, Manuel Bandeira, sem o saber, endossa Jorge de Sena sob o tópico das expectativas frustradas in praesentia de Malraux.  Porém, ao poeta de Pasárgada, resta uma alternativa: vai-se embora para o Real Gabinete Português de Leitura, onde Jorge de Sena, nesse mesmo dia, profere sua primeira conferência no Brasil.  A crônica esquecida de Bandeira, recuperada graças aos arquivos, sempre generosos de Mécia de Sena[15], tudo esclarece. Ver texto completo no site.

 

Referências

*  Versão revista e reduzida de G. Santos, “Uma nótula sobre encontros e desencontros: Manuel Bandeira, Jorge de Sena e André Malraux”. In: B.J.Caniato & E.Miné, org. Abrindo Caminhos – Homenagem a Maria Aparecida Santilli, São Paulo, USP, 2002  p. 138-146

[1] SENA, Jorge de. Estudos de Cultura e Literatura Brasileira.  Lisboa: Ed. 70 [1988] p. 9

[2] SENA, Jorge de. Visão Perpétua.  Lisboa: Ed. 70 [1989]  p. 67

[3] Ibidem.  p. 71

[4] Ibidem.  p. 109

[5] SENA, Jorge de. Sequências.  Lisboa: Moraes [1980]  p. 20

[6] SENA, Jorge de.  Poesia II.  Lisboa: Ed. 70 [1988]  p. 43  O poema pertence ao livro Fidelidade.

[7] BANDEIRA, Manuel. Poesia completa e prosa.  Rio de Janeiro: José Aguilar, 1967  p. 613

[8] SENA, Jorge de. Maquiavel, Marx e outros estudos.  Lisboa: Cotovia, 1991 p. 151

[9] Ibidem. p. 154

[10] ibidem. p. 155

[11] ibidem. p. 155-6

[12] SILVA, Edson Rosa da, org. André Malraux – palavras no Brasil. Rio de Janeiro: Funarte, 1998  p. 14

[13] Agradeço ao Embaixador e Acadêmico Alberto da Costa e Silva a gentileza de me permitir o acesso a estes documentos.

[14] No livro organizado por Edson Rosa da Silva, acima citado, não há qualquer referência a esta sessão na ABL, porque, disse-me ele, nada encontrou a respeito nos periódicos da época que exaustivamente consultou.

[15] Na tese de doutorado A condição crítica de André Malraux no Brasil e na Espanha: recepção crítica das obras La condition humaine, L’espoir e Antimémoires (ver http://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/7605/000549562.pdf?sequence=1), que a pesquisadora Clarissa Laus Pereira Oliveira defendeu em 2006, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, há extenso capítulo (p. 128-148) dedicado a rastrear a “maratona de 5 dias” de Malraux no Brasil, com base no noticiário da imprensa de vários estados, porém esta crônica de Manuel Bandeira também não é aí mencionada.

 

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NOS SETENTA ANOS DO POETA MANUEL BANDEIRA

A tua voz, ó poeta, não pode envelhecer,
se envelhecer é não sentir as graças da linguagem
ou recordar não quanto se recorda mas
quanto de nós é recordar a vida, como se humanos fôramos sozinhos
sem outros que viveram, que sofreram, que
escreveram versos quais os teus resumem.

Porque é de nós esse dizer do mundo
em que não há quem não reviva em verso
a vida que perdeu nos versos que ideou.
Toda a poesia a ti concorre, toda,
e tu, singelo e humilde, sábio e juvenil,
a pegas delicado em teu fervor sem mácula,
e a ressuscitas nova, em português, eterna.

Do poço fundo de silêncio e sombras,
da noite ambígua de monstruosas trevas,
do claro dia que hesitante cai,
da beira-mar tão triste que daí contemplas,
a minha voz sozinha te dirijo,
para que a vejas, a recebas, nessa
alegria de estar vivo e ouvir
a música pensada, a música secreta,
no coração que se abre às vozes e aos sentidos,
a tudo o que de humano passa e fica em ti.

E deixa-me dizer-te, meu Amigo e Mestre,
um obrigado simples, sem pensamento ou forma,
um obrigado apenas, porque existes,
e porque não foste embora p’ra Pasárgada,
e a deste contigo francamente a todos nós.

19/04/1956

 

NOS  SETENTA  E  CINCO  ANOS  DO  POETA

Em teu último poema, tu dizias
Da morte, que não é milagre algum,
E antes o fim de todos os milagres.
Olháva-la nos olhos, com coragem
De quem muito viveu com as palavras.

De um milagre, porém, porque escrevias,
tu te esqueceste, poeta de Pasárgada,
e que a morte nada contra ele pode.
Porque escrever é morte, mas o escrito,
se o foi por ti, Manuel, não morre mais.

15/05/1961

 

MORTE  DE  MANUEL  BANDEIRA

Só hoje, depois de muitas aulas de um curso
sobre a poesia dele, folheando poema seus,
tive, subitamente, consciência da sua morte,
há mais de um ano, longe, apenas notícia.
Não é essa coisa eventual de notar-se, consabido pasmo
(e a frustração do que jamais vai repetir-se)
que não mais torno a vê-lo e à sua humanidade,
à sua gentileza firme de menino egoísta,
e à surdez com que em verdade não ouvia ninguém
senão a vida e a morte. No fim de contas,
há centenares de poetas que  nunca conheci, que admiro,
e que nem sequer estou certo de valer a pena
havê-los conhecido: seriam suportáveis,
humanamente suportáveis, o Dante ou o Camões?
Não: o que de súbito encontro é um vazio
maior. Morreu. Não dirá mais nada,
nada sentirá que nos revele. Os poetas
morrem como toda a gente. A poesia deles
fica, e morrerá mais tarde, como tudo
morre. Mas que um que está connosco
morra inda que velho, e não seja mais
quem escreverá, se ainda escrever: se cale
– e a gente saiba pelas notícias como se calou –
é a morte, a pavorosa, a estúpida, a grosseira.
O fim de todos os milagres, que ele bendisse.
O horror de descobrir-se no que fica
quanto morreu quem fez o que ficou.

22/11/1969

  

POEMA  DESENTRANHADO  DE  UM  POEMA  DE  MANUEL BANDEIRA

Um gatinho faz pipi.
Um pipi faz gatinho.

18/01/1970(?)