Sinais de fogo e a encenação da história  

praiaA pesquisadora Márcia Valéria Zamboni Gobbi, da UNESP/Araraquara (onde Jorge de Sena lecionou…), relê Sinais de Fogo como “romance histórico” e como “romance de transição”.

 

 

Sinais de fogo é um romance desafiador, embora sua narrativa, organicamente estruturada, cative o leitor, de fato, por configurar exemplarmente o modelo do gênero romanesco; numa das inúmeras digressões metaficcionais que permeiam o texto, o narrador metaforiza esse modelo ao referir-se a um personagem como “mais uma pessoa embrulhada na trama que alastrava […] [e que] havia sido como aqueles tecidos que se pegam, quando a gente passa, e que arrastamos connosco na passagem” (SENA, 1981, p. 218). Trama, tecido, séries paralelas de acontecimentos que se entrecruzam, ainda que momentânea e provisoriamente, ordenados retrospectivamente por um narrador/ator que patina sobre este solo instável, lançando-se à aventura do conhecimento de si, do outro, do mundo: estas metáforas constituem uma “perfeita tradução” da forma romanesca, realizada exemplarmente pela narrativa de Jorge de Sena.

Sabe-se que Sinais de fogo constitui uma parte – a única efetivamente realizada – de um ambicioso projeto literário concebido por Sena, que tinha o objetivo, reiteradamente declarado pelo escritor, de “cobrir, através das experiências de um narrador, a vida portuguesa desde 1936 a 1959” (SARAIVA, 1968, p. 424). Esse projeto não se consolidou completamente, mas o que restou daquilo que se poderia considerar o plano geral de uma épica portuguesa da modernidade (ou de uma épica deslocada, em “tom menor” e em perfeita consonância com o tempo de sua escrita, como mais adequadamente parece ser possível qualificar Sinais de fogo) jamais se poderia avaliar como um “romance falhado”: não só porque, formalmente, como acima foi exposto, Sinais de fogo é um romance modelar como porque semelhante perigo (o de um romance falhar como romance), esclarece Lukács (196[-], p. 78), “só pode ser vencido se for estabelecido como realidade final, em plena consciência e de maneira perfeitamente adequada, aquilo que este mundo tem de frágil e de inacabado, o que nele remete para outra coisa que o excede”.

Esse “vencimento” é explícito em Sinais de fogo: a consciência da fragilidade, da imperfeição e da impostura do mundo, e do homem no mundo, avulta no romance de Sena como sua marca indelével, como seu leitmotiv. Ao lado dela, a própria marca do inacabamento está também explicitamente formalizada no romance, já que, além de não possuir a continuidade prevista no projeto original do autor, Sinais de fogo, publicado postumamente, ficou sem revisão final – e suas páginas de encerramento de fato sugerem mais uma suspensão da escrita do que um “fechamento”. Curiosamente, a fatalidade da morte do autor parece ter deixado impressa no romance a marca da sua grandeza, paradoxalmente realizada como falha, como imperfeição – características que nos parecem permitir qualificar Sinais de fogo como um romance de transição. Isto porque, por um lado, como vimos afirmando, a narrativa vincula-se à forma clássica do romance e, mais ainda, do romance histórico, já que nele se dá, também de maneira modelar, a intersecção do plano existencial da vida individual com o plano histórico e transindividual, “que é, ao menos em parte, o da relação do indivíduo com seus contemporâneos, bem como com as gerações anteriores e também, pode-se presumir, com as posteriores” (JAMESON, 2007, p. 186). Além disso, como lembra Anderson (2007, p.186), em sua revisitação do modelo lukácsiano do romance histórico, este gênero caracteriza-se por ser

 

[…] uma épica que descreve a transformação da vida popular através de um conjunto de tipos humanos característicos, cujas vidas são remodeladas pelo vagalhão das forças sociais. […] A narrativa será centrada em personagens de estatura mediana, de pouca distinção, cuja função é oferecer um foco individual à colisão dramática dos extremos entre os quais se situam ou, mais freqüentemente, oscilam.

 

É possível reconhecer esses princípios na narrativa de Sinais de fogo, e é por esse motivo que, dentre inúmeras possibilidades de leitura, esta procura destacar a que privilegia a presença da história no romance (presença que é constante, sistemática, quase onipresente no romance português pós-74, do qual Sinais de fogo seria, portanto, um ilustre precursor, já que, embora publicado em 1978, acompanhou grande parte da trajetória literária de seu autor, ainda que sua escrita tenha sido mais de uma vez interrompida). E é precursor também porque o que o qualifica como de transição, como acima propusemos, e que constitui o contraponto da argumentação aqui apresentada, situa-se justamente no fato de que, embora ancorado nos princípios que regem o gênero em que se inscreve, pautando-se também, por isso, pela fidelidade à verossimilhança e a uma estrutura narrativa cronologicamente ordenada, Sinais de fogo tem como pano de fundo um acontecimento que, junto com outras catástrofes que imediatamente o sucederam, redesenharam, literalmente, a “cara” do mundo e nos colocaram frente a mudanças que hoje avaliamos como aquelas que esboçaram a face de uma “nova era” que, não sem grandes polêmicas, vem sendo tratada como a pós-modernidade.

É evidente que, se estamos argumentando no sentido de que há uma vinculação entre a ficção e a história, um novo desenho no modo de entender aquilo que nos cerca provoca um novo desenho no modo de dizê-lo – e vice-versa, já que esta relação jamais pode ser pensada como uma via de mão única. E, neste sentido, parece que o efeito mais devastador deste novo tempo sobre o modo de o homem pensar seu estar no mundo foi aquele que destronou a possibilidade de crença numa verdade, em todos os níveis – incluindo aí o do conhecimento histórico. Daí que aquela intersecção entre a série de acontecimentos no âmbito da história e os destinos individuais nos quais eles se refletem tenha tomado, a partir de então, novas direções no que diz respeito à sua representação pela narrativa ficcional, provocando uma revisão dos princípios lukácsianos que definiam, em termos genéricos, as “regulagens” desta relação. Em termos de construção narrativa, estas novas direções parecem ter convergido para a eleição privilegiada de uma determinada estratégia: o ponto de vista determina a verdade; mudado ele, muda ela. Portanto, legitimam-se as diferentes versões de um mesmo fato e avulta a importância de uma “história da vida privada” que acentua a fragmentação da percepção do real e institui a ironia como o procedimento narrativo por excelência, pelas ambiguidades e (dis)simulações que ela estrategicamente favorece.

Pois é exatamente neste trânsito que Sinais de fogo se realiza: retoma um acontecimento histórico de fundamental importância, situado no limiar de uma nova ordem mundial, e o revê sob um ponto de vista muito particular, ancorado no ponto exato em que este acontecimento cruza a vida do protagonista – também em trânsito para a idade adulta -, o que acaba por determinar seu posicionamento diante do real, marcado pelo descrédito nas grandes e absolutas verdades e, por isso, pelo afloramento de uma visão crítica da realidade. Portanto, no âmbito da análise textual que aqui se propõe, a hipótese que se lança é a de que a relação entre fato e ficção vem mediada pela ironia como modo de estruturação do discurso ficcional.

O mote que faz irromper a história em Sinais de fogo é a eclosão da Guerra Civil Espanhola. Instalado na Figueira da Foz no verão de 1936, Jorge, o protagonista do romance, imerge, quase “sem querer”, nas tensões latentes que o reduto (português) de turistas (espanhóis) acaba por manifestar, microcosmicamente, como réplica aos desarranjos que, no país vizinho, revelavam os seus diversos e conflitantes “nacionalismos” – e que, na avaliação infelizmente equivocada do tio Justino, personagem do romance, não deveriam (tais conflitos) durar mais que dois ou três dias.

Sinais de fogo, sob uma perspectiva mais estritamente histórica, reinstala a discussão em torno de um acontecimento que surpreendeu, apaixonou e mobilizou não só os seus contemporâneos, e não só na Espanha e adjacências, mas que continua a fascinar e a desafiar muitos daqueles que ainda hoje querem compreender esta “guerra entre guerras”, marcada pela dramática imposição do franquismo e pela decorrente delimitação coercitiva de um Estado sobre as diferenças culturais e regionais, e romanticamente tomada, com frequência, como a “última grande causa” do mundo europeu e que, de fato, constituiu o resultado dramático e indesejável das grandes contradições da história da Espanha, até hoje mal resolvidas. Neste sentido, talvez fosse importante destacar o que afirma Martin Blinkhorn a respeito do que poderíamos chamar de “espanholização” ou “desespanholização” do conflito – ou seja, a escolha (contraditória) entre um entendimento amplo das motivações da guerra que canaliza, em direção a ela, o sentido e o movimento de uma (nova) cruzada contra todos os males que agitavam a Europa na década de 30, concentrados e superdimensionados quer no fascismo, quer no comunismo, conforme as prerrogativas ideológicas de cada grupo envolvido diretamente no combate e, de outro lado, o entendimento, acima referido, da guerra como produto de contingências muito específicas e concernentes exclusivamente à ambiência interna da Espanha no período:

 

É fácil compreender que os contemporâneos, quaisquer que fossem suas simpatias, tenham visto a Guerra Civil Espanhola em perspectiva tão ampla. Embora a confrontação entre a República espanhola e seus opositores de direita possa ter diferido em alguns aspectos importantes dos acontecimentos relacionados com a morte da democracia na Itália, na Alemanha e na Áustria, por exemplo – afinal, na Espanha houve uma guerra civil durante três anos – os pontos de semelhança subjacentes eram bem reais. Devemos reconhecer contudo que o conflito não foi, num sentido sério, o produto de forças estranhas à Espanha. Em sua origem e essência, a Guerra Civil Espanhola foi precisamente isso: uma guerra civil provocada pelas condições do país; a despeito das contribuições estrangeiras, foi um conflito que opôs, fundamentalmente, espanhóis contra espanhóis. (BLINKHORN, 1994, p. 14)

 

Ainda no âmbito histórico, é evidente em Sinais de fogo a intencional justaposição da crise na Espanha, já manifesta pelo “estado de guerra”, e a crise portuguesa, interdita, calada ou desconfiada e desafiadoramente murmurada, cujas manifestações mais visíveis, naquele momento, e em sentidos completamente opostos, os quais darão a medida exata das tensões que ainda se prolongariam, em Portugal, por quatro décadas, serão o “Comício do Campo Pequeno”, com seu estudado ritual, simulacro degradado e, por isso, risível, mas ainda assim assustador, do fascismo que se avizinhava, e a revolta violentamente frustrada dos marinheiros do “Dão” e do “Afonso de Albuquerque” – uma “intentona”, como esclarece o narrador, recuperando uma memória de infância que lhe falava de outras revoluções falhadas – com que o romance se encerra. É por isso que podemos considerar Sinais de fogo, sob a perspectiva histórica que até agora tem fundamentado estas reflexões, não como um “romance sobre a Guerra Civil Espanhola” – ou não só como isso -, mas como um romance que, tomando tais acontecimentos e suas motivações como a interface de uma radical crise histórica, põe em evidência o ser português, ainda que tomado em escala reduzida – o grupo de amigos da Figueira, metonímia que reproduz a grande guerra na guerra de cada um:

 

O mundo em que eu vivia estalara. Ou estalara a fachada dele. O tumulto da Espanha abrira fundas ravinas nas nossas vidas, a princípio apenas como um terramoto as abre longe do seu epicentro. Mas, agora, mesmo que as armas não fossem brandidas, mesmo que a política não se definisse, não era já um terramoto distante, mas uma guerra civil que fendera de alto a baixo aquele mundo tão falsamente calmo como a tarde que me rodeava. Estaríamos todos ou de um lado ou do outro, e mesmo os nossos problemas particulares, as nossas amarguras, as nossas traições, tudo deixava de ter sentido, o estrito sentido que teria antes, para só significar em função disso. (SENA, 1981, p. 375)

 

É o mesmo Jameson que volta a dar respaldo a esta análise na medida em que considera, no artigo citado, em que avalia a possibilidade da existência do “genuíno” romance histórico (nos termos lukácsianos) em nossos tempos, que é a forma narrativa desse evento primordial ou axial que deve estar presente, ou ser recriada, no romance histórico, para que ele se torne histórico no sentido genérico. Além disso, e argumentando sempre a favor desta intersecção entre o plano do vivido individualmente e o plano da esfera pública dos acontecimentos historicamente motivados em que aquela existência se situa como a configuração que especifica o romance como histórico, afirma Jameson (2007, p. 195) que,

 

[…] dadas as restrições e os limites da representação narrativa, esse evento terá de figurar […] na qualidade de uma irrupção coletiva […]: deve, de algum modo, estar presente em carne e osso, e pela multiplicidade mesma de seus participantes representar alegoricamente aquilo que transcende a existência individual.
O romance histórico não deve mostrar nem existências individuais nem acontecimentos históricos, mas a interseção de ambos: o evento precisa trespassar e transfixar de um só golpe o tempo existencial dos indivíduos e seus destinos.

 

O “evento axial” de Sinais de fogo é evidente e significativo: a guerra instala a suspensão dos sentidos, o afloramento das incertezas, das desconfianças e das contradições; põe em evidência a crise dos valores, e tudo isso se reflete em crise individual, como a trajetória de Jorge exemplarmente configura. É a partir da ideia de uma crise instalada irremediavelmente, portanto, que se estabelece uma ponte entre a perspectiva histórica de significação do romance e aquela que configura a sua especificidade estética – o modo próprio de o romance (de cada romance) apropriar-se das injunções contextuais que lhe servem de tema. Daí que o conceito de crise pareça também merecer uma especial atenção: Ortega y Gassett (apud KUJAWSKI, 1991, p. 69) propõe um entendimento de crise histórica que se assemelha, em nosso entendimento, ao que vem manifesto pelo narrador de Sinais de fogo. Diz o filósofo que há crise histórica quando, ao sistema de convicções revogado, nenhum outro se sucede, ficando a nova geração desprovida de mundo, sem nenhum sistema de referências firme em que se apoiar. O homem volta a não saber o que fazer, porque já não sabe o que pensar do mundo. A mudança se superlativa em crise, e assume caráter catastrófico. A crise, assim, poria em xeque o processo histórico, exigindo uma tomada de consciência que poderia revelar a ambiguidade das convicções, o jogo do ser e do parecer manifestos pela ordem instituída, as simulações ideológicas.

Sinais de fogo parece fundado nesses pressupostos, (re)conhecidos a partir de uma perspectiva de crise individual, humana, que metaforiza outra, mais ampla, coletiva, institucional, histórica; nele se registra o rito de passagem da adolescência à vida adulta, com o comprometimento, mais ou menos motivado, com o mundo, que de agora em diante haverá de se efetivar, e que dessa iniciação decorre; a tomada de consciência daquilo que trama acontecimentos que se revelam, inesperadamente, desprovidos da ingenuidade que insiste ainda em revesti-los; a descoberta das sinuosidades, dos abismos, das simulações do homem, sempre confrontando o dito e o interdito – isso, e muito mais, se revela a Jorge nessas certamente irrepetíveis férias de verão, já que elas deixam vir à tona uma significativa etapa do processo de formação do protagonista nas três dimensões que determinarão o seu “ser no mundo” daí em diante: a dimensão afetiva, a política e a literária.

De fato, é o “jogo da vida” que aí se representa, em todos os seus lances, em todas as suas intersecções, mais ou menos surpreendentes. Há, aliás, uma cena no romance que parece emblemática desse jogo, por evidenciar justamente o seu caráter (dis)simulador: revela e omite, afirma e interroga, ignora sem negar, num “faz-de-conta” que se dissemina por toda a narrativa, revelando o caráter ambíguo das relações que se estabelecem entre os personagens e entre eles e o contexto histórico específico (e conturbado) em que se situam e que os afeta diretamente. Embora longa, parece-nos importante transcrevê-la:

 

Entrei em casa e encontrei a minha tia na cozinha, conversando com uma das criadas. Fiquei perplexo, apenas respondi que já tinha almoçado, e subi à biblioteca, onde meu tio e os dois espanhóis estavam sentados à mesa de paninho verde, de cartas em punho.
– A criada está lá embaixo, a falar com a tia – anunciei eu.
Meu tio, de olhos fitos na jogada, fez-me sinal que me calasse, dobrou a parada, os outros mostraram as cartas. Quando arrebanhava os feijões, meu tio levantou os olhos para mim, com um sorriso, e explicou: – Pois está. Ela veio ver se nós já tínhamos voltado, e nós já tínhamos voltado.
– E agora?

Os dois espanhóis encolheram os ombros, com um ar de resignação. Meu tio respondeu: – Agora, eu já falei com ela, e disse-lhe que ela, se não falar, ganha uma parte do contrabando, quando conseguirmos fazê-lo passar.
[…]
Com um ar de desânimo, estudando as suas cartas, o velho Don Juan suspirou: – Nós outros, agora, somos contrabandistas.
– Eu falei com o Ramos.
Nenhum mostrou interesse. Eu repeti: – Já falei com o Ramos.
Meu tio dignou-se a perguntar: – E ele?
Eu senti uma frustração terrível. De certo modo, toda a minha vida estava envolvida naquilo, e eles pareciam tencionar passar a deles ali, jogando as cartas. Respondi secamente: – Na altura, ele avisa.
– Tornou a falar em dinheiro? – perguntou o meu tio, e não ouviu a minha resposta negativa, porque, com uma exclamação triunfante, mostrava as suas cartas aos outros, e arrebanhava vitoriosamente os feijões.
 (SENA, 1981, p. 166-7)

 

É claro o “arranjo” que a cena registra: ao dar abrigo a dois refugiados espanhóis, amigos antigos da família, o tio de Jorge, Justino, arrisca-se e não pode, portanto, deixar que a empregada perceba a situação, já que todas as desconfianças parecem, em condições como esta, justificadas. Por isso, simula primeiramente uma viagem, dispensando-a do serviço; ela, porém, percebendo movimentação na casa, retorna, e vem a necessidade de criar nova simulação – desta vez, com o disfarce do contrabando e com o argumento de que ele seria vantajoso também para ela, se mantivesse a discrição sobre o que ocorria ali dentro. Jorge, que tinha sob sua responsabilidade tentar fazer contato com agentes que, clandestinamente, transportariam por mar os espanhóis de volta a seu país, surpreende-se com o jogo de simulações com que se depara ao voltar para casa – jogo que está figurativizado na própria partida disputada pelo tio e seus amigos, fazendo com que a narrativa, assim, dobre-se sobre si mesma no que diz respeito ao sentido duplicado que a cena do jogo então assume relativamente à configuração do “todo” textual. Assim, militantes anti-franquistas “passam” por contrabandistas; feijões, por dinheiro; a dispensa das criadas justifica-se por uma viagem (não feita) em função de uma doença (inexistente); gravidade e gratuidade, verdade e mentira, o político e o privado mesclam-se nas entrelinhas, nas meias-palavras, nos acordos tácitos de uma cena de “faz-de-conta”.

O pacto ficcional funciona da mesma forma. Por isso, parece-nos que, ao criar o seu “pequeno mundo real”, o romance amplia e reduplica o faz-de-conta em direção também ao histórico, instituindo o domínio do que poderia ter sido. Afinal, no âmbito do privado, esta história ainda não foi contada. E se o foi, nada impede que a ela outra versão seja dada, já que o plano da existência daqueles personagens em tudo se “encaixa” no plano dos eventos históricos em que a narrativa se ancora; o romance cria, portanto, a sua própria verdade.

É nesse sentido, ainda, que a ironia se apresenta como o elemento controlador do processo de narrar em Sinais de fogo: não só porque põe em causa verdades estabelecidas, quer no plano pessoal, quer relativamente ao contexto de que o romance se apropria, revelando o outro lado de que qualquer história é feita (seja ela a de uma Nação ou a de um indivíduo), mas também porque, ao revelar tais ambiguidades, o romance instrumentaliza um questionamento do mundo sem comprometer o seu ser estético, revelando-se justamente como uma outra coisa, como um faz-de-conta que, por isso mesmo, pode levar o leitor a desconfiar de outras imposturas – estas, com o aval da “verdade” e, portanto, muito mais perigosas:

 

O jornal era de Lisboa e da véspera. Cheio de grandes parangonas sobre vitórias “nacionalistas” na Espanha, e vários retratos de heróis e de supostas vítimas ilustres do terror “vermelho”, tinha uma notícia do Porto, muito pequena, dizendo que, das prisões da polícia, tinham fugido, em condições que faziam crer numa grande conspiração comunista, alguns presos que lá estavam para averiguações, entre eles dois espanhóis suspeitos de serem agentes, em Portugal, do Komintern […]. Meu tio pegou no jornal, passou os olhos na notícia e disse: – Ou será que toda a gente foi jogada numa “provocação” que o governo queria que acontecesse? Ou que decidiu tirar partido do que era realmente uma provocação? […]
– Será que eles passam e chegam à Espanha, a lugar seguro? – perguntei.
– Depende, por esta notícia que só foi publicada porque a censura deixou, ou porque a mandaram publicar… depende do efeito que o governo quiser tirar da coisa. Ou os caçam, para fazê-los confessar e armar um escândalo político; ou os deixam chegar lá, o que será maior prova da interferência que procuram demonstrar.
– De qualquer maneira, conseguem o efeito desejado.
– Quem consegue? – perguntou ironicamente o meu tio.
 (SENA, 1981, p. 355-6)

 

Parece desnecessário parafrasear a cena transcrita, já que, mais uma vez, ela explicita a mesma desconfiança em relação aos tantos mitos ideológicos – e suas verdades impostas – que uma situação de crise extrema, como é a da guerra, faz avultar. Por isso, pode-se dizer de Sinais de fogo que é um romance engajado: profundamente engajado a um humanismo a toda prova, porque seu protagonista manifesta, sistematicamente, as suas dúvidas, a sua impotência, a sua recusa, como a pedir ao outro que compartilha, pela leitura, as suas perplexidades, que as lance, também, ao sem sentido do mundo e que busque, com ele, o lugar deste sentido.

Em contrapartida, o romance se realiza também como um exemplo de engajamento estético, se assim é possível nomear a sua ânsia por criar, pela palavra, um mundo pleno em que todas as intersecções entre os planos narrativos que o compõem são significativas – incluindo aquela que remete indelevelmente a este outro mundo, precário, sempre “por um triz”, em que vivemos. A tentativa de “reconciliação” do eu com o mundo se dá em Sinais de fogo, portanto, por meio da palavra poética, o que justifica que um dos planos que constituem o romance seja justamente aquele em que Jorge se “descobre” poeta, fazendo com que, também por esta via, a narrativa se dobre sobre si mesma, colocando em cena a própria construção da escrita, a sua própria fatura.

Por isso é que voltamos ao início para reafirmar que Sinais de fogo nos parece um romance modelar, dentro do gênero em que se inscreve, na sua opção por fazer-se histórico. E, nesse sentido, mais uma vez se pode dialogar com o texto de Jameson (2007, p. 201-2), para finalizar esta leitura:

 

O romance histórico, portanto, não será a descrição dos costumes e valores de um povo em um determinado momento de sua história (como pensava Manzoni); não será a representação de eventos históricos grandiosos (como quer a visão popular); tampouco será a história das vidas de indivíduos comuns em situações de crises extremas (a visão de Sartre sobre a literatura por via de regra); e seguramente não será a história privada das grandes figuras históricas (que Tolstói discutia com veemência e contra o que argumentava com muita propriedade).
Ele pode incluir todos esses aspectos, mas tão-somente sob a condição de que eles tenham sido organizados em uma oposição entre um plano público ou histórico (definido seja por costumes, eventos, crises ou líderes) e um plano existencial ou individual representado por aquela categoria narrativa que chamamos de personagens. Seu centro de gravidade, no entanto, não será constituído por tais personagens, ou por sua psicologia, suas vivências, suas observações, suas alegrias ou seus sofrimentos. Esse plano existencial pode incluir todos ou qualquer um desses aspectos, e o modo de ver do personagem pode variar do convencional ao disperso e pós-estrutural, do individualismo burguês ao descentramento esquizofrênico, do antropomórfico ao mais puramente actancial. A arte do romance histórico não consiste na vívida representação de nenhum desses aspectos em um ou em outro plano, mas antes na habilidade e engenhosidade com que a sua interseção é configurada e exprimida; e isso não é uma técnica nem uma forma, mas uma invenção singular, que precisa ser produzida de modo novo e inesperado em cada caso e
 que no mais das vezes não é passível de ser repetida.

 

Esta análise tencionou mostrar, ainda que em linhas gerais, o modo pelo qual, em Sinais de fogo, se concretiza esta “engenhosidade” que trama o plano do indivíduo (seus desejos, descobertas, frustrações, medos – tudo isso possível de ser visto em Jorge) com o das injunções contextuais de seu próprio tempo; que trama, assim, os planos do sujeito e do “mundo”, da História e do homem nela, mobilizados na composição de uma narrativa que se edifica como uma “invenção singular” que merece ser sempre revisitada pela crítica, pelo muito que ainda lhe pode oferecer.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANDERSON, P. Trajetos de uma forma literária. Trad. Milton Ohata. Novos Estudos CEBRAP, n. 77, p. 205-220, março 2007.
BLINKHORN, M. A guerra civil espanhola. Trad. Sérgio Bath. São Paulo: Ática, 1994.
JAMESON, F. O romance histórico ainda é possível? Trad. Hugo Mader. Novos Estudos CEBRAP, n. 77, março 2007, p. 185- 203.
KUJAWSKI, G. M. A crise do século XX. 2. ed. São Paulo: Ática, 1991.
LUKÁCS, G. Le roman historique. Trad. Robert Sailley. Paris: Payot, 1965.
LUKÁCS, G. Teoria do romance. Trad. Alfredo Margarido. Lisboa: Presença, [196-]
SARAIVA, A. Falando com Jorge de Sena [entrevista]. O tempo e o modo. Lisboa, n. 59, 1968, p. 409-430.
SENA, J. de. Sinais de fogo. 2. ed. Lisboa: Edições 70, 1981.

 

* GOBBI, M.V.Z. A ficcionalização da história: mito e paródia na narrativa portuguesa contemporânea. São Paulo: Editora Unesp, 2011. p. 203-215.