Sena hoje: no centenário do nascimento de Jorge de Sena

Breve apresentação da coletânea organizada em homenagem ao centenário de nascimento de Jorge de Sena.

Lucas Laurentino

Em 2019 comemoramos o centenário de nascimento de Jorge de Sena e, como é de costume, a efeméride propiciou uma série de eventos acadêmicos que revisitaram os diferentes aspectos da sua obra. As celebrações foram uma grande oportunidade de reunir pesquisadores experientes e iniciantes para falar do poeta e o colocar em diálogo com outras eminentes figuras literárias luso-brasileiras.

Contudo, a pandemia de Covid-19, que assolou o planeta entre 2020 e 2022, acabou atrasando as publicações que resultaram desses encontros. Assim, algumas das principais coletâneas de ensaios sobre Jorge de Sena saíram de maneira esparsa ao longo dos anos. Tal foi o caso de Sena & Sophia: centenários, organizada por Gilda Santos, Luci Ruas e Teresa Cerdeira, que veio a lume no final de 2020, contando apenas com uma cerimônia virtual de lançamento. Já A crítica de Jorge de Sena, organizada por Joana Matos Frias e Joana Meirim, foi publicada só em 2022. A estas duas importantes recolhas de estudos senianos juntou-se, em novembro de 2023, o volume Sena hoje: no centenário do nascimento de Jorge de Sena, que teve a organização de Ana Ribeiro, Carlos Mendes de Sousa, Isabel Cristina Mateus, Micaela Ramon, Rita Patrício e Sérgio Guimarães de Sousa.

A obra conta com treze ensaios que se debruçam sobre a poesia, a ficção, a crítica e a tradução de Jorge de Sena, com pesquisadores e pesquisadoras provenientes de variadas instituições, alguns dos quais inclusive figuram nas outras coletâneas mencionadas. Dentre eles, destaca-se “Jorge de Sena e o conhecimento científico do texto literário”, última conferência proferida pelo eminente escritor e crítico Vítor Manuel de Aguiar e Silva, falecido em setembro de 2022.

E é precisamente este o texto que abre a coletânea, contando com um fac-símile das primeiras páginas do manuscrito de Aguiar e Silva, em forma de homenagem ao autor. Em relação ao seu conteúdo, o ensaio se propõe a refletir sobre o pensamento crítico-teórico de Jorge de Sena, a partir da sua relação complexa com o ambiente universitário e, mais especificamente, o academismo literário (recordemos que Sena é engenheiro de formação). O texto recorre a cartas, artigos e ensaios senianos para mostrar a sua formação filosófica e como ela impactou a produção crítica do poeta, em particular nos seus estudos sobre Camões.

Em seguida, temos “Jorge de Sena tradutor de ‘L’Infinito’ de Giacomo Leopardi”, de Andréia Guerini. O texto parte da obra do poeta italiano oitocentista, sublinhando a sua importância para a literatura europeia daquele período, e perpassa a sua recepção em Portugal ao longo dos séculos XIX e XX. Daí, ele se volta para a tradução do poema “L’Infinito” por Jorge de Sena, incluído na antologia Poesia de 26 séculos, e analisa a escolhas estéticas e discursivas de Sena, evidenciando as aproximações e distanciamentos entre a versão em língua portuguesa e o original italiano.

Já “Jorge de Sena e o quinteto carioca de Machado de Assis”, de Ariadne Nunes, discorre sobre o ensaio “Machado de Assis e o seu quinteto carioca”. A autora procura investigar a pertinência da tese de Sena, de que os cinco últimos romances machadianos (Memórias póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba, Dom Casmurro, Esaú e Jacó e Memorial de Aires) constituiriam uma “unidade estética”, semelhante ao que foi feito por Lawrence Durrell em Justine, Balthazar, Mountolive e Clea, que compõem o Quarteto de Alexandria. O texto não só evidencia os múltiplos interesses literários de Sena, como também acaba por comentar aspectos interessantes da obra machadiana.

O quarto ensaio da coletânea, “Jorge de Sena: elementos para uma filosofia do cinema”, de Carlos Bizarro Morais, se debruça sobre uma vertente ainda pouco estudada da obra seniana: a crítica de cinema. O livro que serve de corpus é Sobre cinema, publicado postumamente em 1988, que reúne vinte e um ensaios sobre diferentes filmes das décadas de 1940, 1950 e 1960. O autor procura, então, delinear o pensamento estético-filosófico de Sena que embasa as suas críticas e demonstrar como ocorre o processo de leitura de filmes por parte do poeta, desde os aspectos técnicos até as questões mercadológicas, passando pelos temas e ideias veiculados nas obras em destaque.

Da crítica passamos à intervenção política, com “Dos volantes de um políptico: o ‘discurso da guarda’ de Jorge de Sena”, de Gilda Santos. Neste ensaio, a autora revisita um dos mais célebres textos senianos, o discurso proferido no primeiro “Dia de Camões” após o 25 de Abril, na cidade da Guarda, com todas as suas repercussões literárias, políticas e sociais. Gilda Santos reconhece que muito se comenta das circunstâncias do texto, mas pouca atenção foi dada ao próprio discurso. Desse modo, ela oferece uma leitura focada na sua composição, estrutura argumentativa, contexto, objetivos.

“Jorge de Sena: Chartres e a peregrinação europeia de 1968”, de Jorge Fazenda Lourenço, por sua vez, entrelaça poesia e vida ao recuperar o regresso à Europa que o poeta faz no ano de 1968, que gera os poéticos frutos de Peregrinatio ad loca infecta (1969), Exorcismos (1972) e Conheço o sal… e outros poemas (1974). Desses, Peregrinatio é o mais impactado pela viagem, como o próprio título indica. Fazenda Lourenço, dessa forma, analisa as circunstâncias que propiciaram a viagem, as preocupações de Sena à época e o processo de reconciliação, pela via poética, com o continente que deixara nove anos antes, no seu primeiro exílio.

Com “O problema da crítica literária em Jorge de Sena”, de José Cândido de Oliveira Martins, retornamos ao Sena crítico, dessa vez para compreender as reflexões que ocupam a mente do poeta a respeito de crítica e teoria literária. Oliveira Martins chama a atenção para a falta de maiores estudos sobre esta parte da obra seniana, que vem sendo mais focada nos últimos anos, e parte de uma leitura dos volumes Poesia e cultura (2005) e Sobre teoria e crítica literária (2008) para destacar algumas linhas de força do pensamento de Sena. Entre elas estão a oposição ao impressionismo, que o poeta considerava dominante em Portugal à época, e a defesa de uma cientificidade da atividade crítica.

“Cartografia de uma itinerância poética”, de Lígia Bernardino, parece constituir um par ensaístico com o texto de Jorge Fazenda Lourenço, ao privilegiar o aspecto deambulatório da poesia seniana. À luz da geopoética, a autora destaca a importância do espaço na produção de Jorge de Sena, evidenciando as diferentes relações que o poeta estabeleceu pelos lugares onde esteve e por onde passou, além da difícil questão do exílio e do regresso a Europa e a Portugal após anos de afastamento. Também chama atenção para o fato de que Sena, além de Europa e Américas, transitou por países africanos de língua portuguesa, o que motivou alguns dos poemas presentes em Exorcismos (1972) e Conheço o sal… e outros poemas (1974).

Trazendo para o debate a ficção seniana, Marcelo Pacheco Soares se volta para o conto “O comboio das onze”, presente em Andanças do demónio (1960), no ensaio “Em um conto metaficcional, o surrealismo segundo Jorge de Sena”. Nele, o autor destaca a escassez de estudos a respeito do conto e a sua associação, algo apressada, às técnicas e temas do surrealismo. Dessa maneira, ele se propõe a ler o texto seniano na chave da metalinguagem para discutir a sua aproximação ou divergência da estética surrealista.

Retornando mais uma vez à poesia, agora em interlocução, Marcia Arruda Franco, em “‘De passarem aves’ – interlocução poética lusoafrobrasileira em torno de ‘O sol é grande’”, rastreia a presença do poeta quinhentista Sá de Miranda na poesia de língua portuguesa mais recente, demonstrando como a novas releituras carregam o impacto do diálogo crítico-poético empreendido por Jorge de Sena em seus poemas “De passarem aves” I e II. Assim, a autora aborda textos dos escritores portugueses Vasco Graça Moura, Pedro Tamen e António Franco Alexandre, do escritor cabo-verdiano Arménio Vieira, e do escritor brasileiro Sérgio Alcides, todos glosas do soneto mirandino atravessadas pela interpretação seniana.

Saindo um pouco do estritamente literário, Osvaldo Manuel Silvestre, em “Jorge de Sena, brasilianista”, encara a complexa relação entre o poeta e o Brasil, enquanto país, enquanto literatura e enquanto cultura. O autor inicia seu ensaio precisamente com o exílio brasileiro de Sena, ocorrido em 1959, e a sua consequente entrada no meio universitário, pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis. Daí ele passa a discutir a percepção do poeta de certo escamoteio das literatura e cultura portuguesas no pensamento brasileiro a respeito da sua própria constituição. Assim, as questões levantadas se conectam a diversos pontos envolvendo as relações luso-brasileiras, tendo como ponto de articulação o papel de Sena em ambos os países.

Permanecendo na interface Brasil-Portugal, o ensaio “Jorge de Sena e João Cabral. Metamorfose e museu”, de Rafaela Cardeal, propõe um diálogo a um só tempo inusitado e necessário. Inusitado porque, como a autora destaca, João Cabral de Melo Neto não figura entre os “mestres brasileiros” de Sena, Drummond, Bandeira, Cecília Meireles, Murilo Mendes, com quem o poeta português manteve alguma forma de comunicação, por correspondência, textos críticos ou poemas. Necessário porque ambos têm pontos de contato significativos para uma interpretação da poesia de língua portuguesa do século XX, e é a partir daí que a autora pretende desenvolver seu ensaio, relacionando as Metamorfoses senianas (que tinham por título inicial o nome Museu) e o Museu de tudo cabralino.

Encerra a coletânea o ensaio de Sandra Mara Mendes da Silva Bassani, intitulado “O corpo e o olhar como elementos construtivos da identidade e alteridade em O físico prodigioso”. Nele, a autora lê a novela seniana a partir das questões de identidade e alteridade, expressas por meio das relações entre os personagens da narrativa, tendo por foco o corpo e o olhar. Assim, a interpretação toma esses dois elementos como guias para entender a construção do Eu e do Outro ao longo da novela.

Não resta dúvidas sobre a importância deste volume para o estudo da obra de Jorge de Sena, em suas diversas vertentes, e esperamos que ele contribua para que cada vez mais pessoas se interessem pelo autor e reconheçam a sua contemporaneidade.