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Eduardo Lourenço discursando na cerimônia de trasladação do corpo de Jorge de Sena

O Regresso do (In)Desejado

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Ratificando bem-vinda parceria, enquanto o blog “Ler Eduardo Lourenço” destaca hoje uma esquecida evocação-necrológio publicada poucos dias depois do prematuro falecimento do poeta, o “Ler Jorge de Sena” foi autorizado a reproduzir aqui o discurso proferido pelo mesmo Mestre na Basílica da Estrela, durante a cerimônia que devolveu Sena a sua terra, por ele simultaneamente amada e odiada.

 

«A música é só música, eu sei.
Não há outros termos em que falar dela
a não ser que ela mesma seja menos que si mesma.
»
Jorge de Sena, Arte de Música – “Bach: Variações Goldberg”
Muitas vezes, Jorge de Sena, Poeta único de si mesmo e do mundo convulsivo e ardente que foi o do seu tempo e o nosso, glosou em verso e prosa o seu nascimento para a Poesia que lhe foi destino tão glorioso como amargura assumida e sublimada. Jorge de Sena nasceu da música, num certo dia e para sempre, como os deuses ou as deusas antigas nasciam miticamente da espuma do mar. Esse momento está recriado pelo poeta num poema da sua maturidade que abre Arte de Música, audaciosa evocação e recriação da aventura musical do Ocidente, sem paralelo na nossa língua e, talvez, em qualquer outra. Na sua adolescência, ainda em busca de si mesmo, a ocasional audição, no rádio, da “Catedral submersa” de Debussy, teria sido – foi – para ele a “madeleine” de onde subiu à tona da sua vida solitária como a do seu mais famoso conto, “O Papagaio Verde”, menos o passado que mal tinha que o sonho da Obra futura complexa e prodigiosa que leva o seu nome. Que é o seu nome. Obra singular na sua aparência heteróclita, pela diversidade dos seus interesses e a sua ambição prometaica, unida do interior não apenas pelos dons do poeta, do ficcionista, do grande ensaísta e pensador que também foi, mas por uma vontade de lucidez e um desafio altivo e sem concessões ao estatuto conformista e inconformado da sua época. Esse desafio “urbi et orbi” do poeta e do homem dirigiu-se menos aos “desconcertos do mundo” que fazem parte dele, do que à indiferença aos seus males sem cura, à cobardia universal de quem não os sente, nem os combate.

Neste momento em que o autor de O Indesejado – mais “desejado” do que se supunha nos seus exílios fecundos – regressa à beira do rio da sua infância, à pátria camonianamente exaltada, por vezes amorosamente insultada ou verberada, por não estar à altura de si mesma ou da exigência de amor e violência com que a vida se vivia nele, só a música, sua pátria realmente celeste, voz da terra e dos céus sem dissonância, o podia recolher nos seus braços, para ele, enfim, maternos. Como duas asas de anjo assimétricas, enquadram esta cerimónia de acolhimento ao filho-prodígio e pródigo da sua geração, dois trechos de Bach e Fauré. Um e outro lhe foram companhia familiar. A Bach invocou-o ele, menos como um deus da música que como ao divino, na sua versão barroca, por quem Jorge de Sena, paradoxal filho do modernismo, sentiu tanto fascínio, antecipando, por sua conta, uma original passagem para a pós-modernidade.

Na verdade, com eles, está a memória da música como absoluta memória de si mesmo. Podia ser também o “ritorno d’ Ulisse in patria” de Monteverdi, para quem tão peregrino foi nos mares do tempo e da vida. Ou então e, sobretudo, com total sintonia com a pulsão conquistadora e veemente da sua poética e da sua imaginação, a Primeira Sinfonia de Beethoven, hino à aventura humana como vontade de afirmação que Jorge de Sena glosou num soneto memorável. Em suma, qualquer coisa digna do imprecador-mor da nossa cultura, do natural herdeiro da revolução modernista que subverteu, duradouramente, a poesia e o imaginário lusíadas. Mas, acima de tudo, à altura do poeta de Metamorfoses. Aí, Jorge de Sena, como um Job paradoxal e irónico, resistindo à tentação de amaldiçoar o “dia do seu nascimento”, ousou exorcizar o fantasma mesmo da Morte ou a Morte como fantasma-mor da Vida, retirando-lhe a máscara implacável de Medusa, escrevendo com uma inconsciência ou temeridade sublimes, o famoso poema que abre com o verso:

De morte natural nunca ninguém morreu

… E continuando, como quem entra pelo seu próprio pé, num espaço-outro, o espaço-tempo da nossa verdadeira essência, o da esperança numa vida sem fim, da nossa existência sem morte:

Não foi para morrer que nós nascemos.
Não foi para morrer que falamos,
que descobrimos a ternura e o fogo,
e a pintura, a escrita, a doce música.

Consagrado à “Morte, o Espaço e a Eternidade” da mesma constelação que os mais celebrados dos seus poemas, é não só um dos grandes poemas do seu século, como a mais dilacerada e profunda meditação sobre o mistério dos mistérios, onde ecleticamente se cruzam e dialogam as sombras de Espinosa, de Nietzsche e de São Paulo. É, à sua maneira uma versão heterodoxa da apóstrofe pauliniana: «Morte onde está a tua vitória?». Não por acaso, datada de “Assis, sábado de aleluia”.

Baudelaire, que teve a paixão do mar como Jorge de Sena, marinheiro ferido no seu sonho juvenil, evocou a morte como um “velho capitão”. A vida real do autor do Indesejado não lhe deu o comando de nenhum barco. A sua barca real, o lugar do seu repouso sem repouso é a sua Obra. Aí navega, insone ouvindo todas as músicas que em vida lhe foram paraíso e promessa de uma vida sem fim. Está nela encerrado no seu sonho de eternização e Eternidade. Não a “pavorosa” de um dos nossos mais célebres poetas. Mas a luminosa, natural, de Rimbaud, poeta de sua evocação particular:

Elle est retrouvée.
Quoi? l’Eternité.
C’est la mer allée au soleil.

Lisboa, 11 de Setembro de 2009