Um belo desconhecido entre dois tempos: O físico prodigioso e as aventuras cavaleirescas

Prosseguindo na celebração dos 50 anos da novela O Físico Prodigioso, aqui trazemos estudo de Orlando Amorim, que enfatiza a medievalidade presente em suas páginas. 

 

Este estudo trata, mais uma vez, da “Idade Média ou algo de semelhante, fantástica”, em que Jorge de Sena situou a sua novela O físico prodigioso, composta em 1964, no Brasil, publicada pela primeira vez em 1966, nas Novas andanças do demónio, e depois reeditada isoladamente em 1977. Segundo o escritor, na nota introdutória à reedição, essa Idade Média deu-lhe uma “distância pseudo-histórica” e permitiu-lhe uma “liberdade de imaginação em que o fantástico […] podia ser usado para tudo.” (Sena, 1979: 12)

Importantes estudos dedicados à novela, como os de Gilda Santos (1989) e de Harvey L. Sharrer (1990), já demonstraram a veracidade do caráter “pseudo-histórico” dessa Idade Média, pois o neomedievalismo de Jorge de Sena está alicerçado em um conhecimento profundo do imaginário medieval e em uma percepção certeira do que há de histórico nos temas e motivos medievais tão variados e tão harmoniosamente concertados na e pela narrativa.

O intuito deste trabalho é demonstrar como essa captura do imaginário medieval também se dá em outro nível, o da construção da estrutura simbólica da obra. Isso porque Sena reescreve, de certo modo, as formas narrativas cultivadas no período medieval a partir do século XII – o lai narrativo e o romance cortês. A novela é, na sua unidade estrutural, uma recomposição do mundo mítico dos romances bretões, em dois sentidos: recupera-o ao dar-lhe uma nova forma, e também concilia esse modo de viver e de ver o mundo, aparentemente tão distante no tempo, com o nosso mundo contemporâneo.

Nesse sentido, O físico prodigioso assume e transforma não apenas o conteúdo dessa tradição, mas também o seu modo de ver a realidade, a sua visão figural. Segundo Erich Auerbach, para o homem medieval, “um acontecimento terreno significa, sem prejuízo da sua força real concreta aqui e agora, não somente a si próprio, mas também um outro acontecimento, que repete preanunciadora ou confirmativamente” (Auerbach, 1971: 487). Portanto, a interpretação figural

 

estabelece uma conexão entre dois acontecimentos ou duas pessoas, em que o primeiro significa não apenas a si mesmo mas também ao segundo, enquanto o segundo abrange ou preenche o primeiro. Os dois pólos da figura estão separados no tempo, mas ambos, sendo acontecimentos ou figuras reais, estão dentro do tempo, dentro da corrente da vida histórica. (Auerbach, 1997: 46)

 

Tentarei mostrar, comparativamente, como isso se dá n’O físico prodigioso.

A “origem” da história da novela já é bastante conhecida, o próprio Sena incumbiu-se de dizer que ela “é desenvolvimento muito ampliado e […] muito deturpado de dois ‘exemplos’ do Orto do esposo, o belo livro moralístico-religioso da literatura portuguesa da primeira metade do século XV.” (Sena, 1979: 145)

O primeiro exemplo que serviu de inspiração a Jorge de Sena está no Capítulo I do Livro III: é a história de um homem que chega a um castelo onde cura a senhora doente com o poder do seu sangue e ressuscita mortos. A sua interpretação figural, no contexto medieval do tratado, foi dada por Mário Martins: “Este castelo simboliza a Igreja. As três donzelas chamam-se Fé, Esperança e Caridade. Choram por causa da humanidade, a castelã doente pelo pecado e a ponto de morrer. Veio por fim Jesus. As três virtudes (Fé, Esperança e Caridade) meteram-no na Igreja, para curar a todos no banho do sangue do seu coração trespassado.” (Martins, 1980: 221-22).

Mas esse exemplo também é, nas palavras de Luciano Rossi, “a pequena novela arturiana do Orto do esposo” (Rossi, 1979: 40), cuja fonte está, segundo o editor do tratado, Bertil Maler, em um episódio da Quêste del saint Graal (Sharrer, 1990: 95) que também se encontra, modificado, na Demanda do santo Graal portuguesa (Nunes, 1995: 300-01). Apesar da distância temporal, a interpretação do episódio das versões da Demanda é praticamente a mesma que se pode fazer do exemplo do tratado quatrocentista: Galaaz, o cavaleiro eleito, protagonista do episódio, é explicitamente uma figura de Cristo, e o físico prodigioso identifica-se com ele devido à sua formosura “que maravilha é”, e como Galaaz, o físico também “sempre será tam fresco como agora é e tam fremoso. E esto é gram cousa por que o homem deve muito de amar” (Nunes, 1995: 52)

Um aspecto relevante do exemplo do Orto do esposo é o fato de que retoma a estrutura básica de uma narrativa folclórica – chamada geralmente de melusina – que serviu de substrato a muitas narrativas arturianas: um caminhante encontra donzelas que o conduzem a um castelo, onde seu amor salvará uma dama; a continuação dessa estrutura (que o exemplo não traz) é que um erro leva esse caminhante a perder a mulher amada. Uma dessas narrativas, que podemos usar para estabelecer um paralelo com a novela de Jorge de Sena, é o Lai de Lanval, de Maria de França, que remonta ao final do século XII.

Lanval é um conto de fadas, variante de uma história mais antiga, e apresenta semelhanças com outros lais medievais (Graelent e Guingamor). As três versões tratam do encontro entre um cavaleiro e uma fada: em Graelent, o herói segue uma corça branca e encontra a fada banhando-se numa fonte (ele pensa surpreendê-la, mas foi ela que magicamente o atraiu); em Guingamor, o cavaleiro persegue um javali na floresta, que o leva para junto de uma misteriosa donzela. (Cf. Ménard, 1997: 40 e ss.)

No lai de Maria de França, o cavaleiro Lanval vive na corte de Artur (ou seja, em um tempo mítico, o dos cavaleiros da Távola Redonda), mas é injustamente esquecido pela generosidade do rei: é um excluído do mundo dos homens, destinado a encontrar a felicidade em outro lugar; por isso, afasta-se da corte e isola-se, o que favorece a intervenção do maravilhoso, que é um encontro com duas donzelas às margens de um rio, as quais o conduzem a uma fada que o ama. A união do herói com a fada repara a injustiça dos homens, e estabelece a comunicação entre dois mundos, o real e o mágico; mas a união deve ser mantida em segredo, porque os mundos devem permanecer impermeáveis um ao outro. O herói quebra a promessa, revela o segredo e sofre com o desaparecimento da fada, enquanto é julgado por um tribunal de barões por ter ofendido a rainha; a fada só reaparece no fim do processo, para socorrê-lo. Ele então parte com ela para a Ilha de Avalon. O mundo das fadas onde Lanval viverá uma felicidade eterna é também o mundo dos mortos, único refúgio dos amores proibidos pelos homens. Lanval e sua amada encontram a felicidade em um outro mundo, como os amantes reunidos na morte de outras lendas (Tristão e Isolda, por exemplo).

O exemplo do Orto do esposo é uma retomada da primeira parte desta estrutura narrativa; O físico prodigioso, por sua vez, recupera essa estrutura através do exemplo e atribui-lhe um novo significado. Isso pode ser observado, por exemplo, na seqüência do encontro do cavaleiro com aquelas que irão conduzi-lo à senhora, a começar pelo lai de Lanval:

 

[…] O cavaleiro de que vos falo, que tão bem servira ao rei, montou um dia seu cavalo e retirou-se para passear. Deixou a cidade, só, e veio dar em uma campina, e apeou à beira de um rio. Mas seu cavalo tremeu violentamente; ele livrou-o das rédeas e deixou-o vagar livremente pela campina. Dobrou seu manto e colocou-o sob a cabeça para deitar-se. Aflito com sua tristeza, ele não via em torno de si nenhuma razão de esperança. Assim reclinado, olhou para baixo, na direção do rio, e viu que vinham duas donzelas, as mais belas que ele jamais vira. Elas estavam suntuosamente vestidas com vestidos de púrpura escura que se ajustavam estreitamente a seus corpos, e suas faces eram de uma beleza maravilhosa. A mais velha trazia duas bacias de ouro puro, maravilhosamente trabalhadas, e a outra uma toalha.

Elas dirigem-se sem hesitação para onde está o cavaleiro estendido no chão. Lanval, como homem cortês que é, levanta-se para recebê-las. Elas saúdam-no e depois transmitem-lhe a mensagem que trazem: “Senhor Lanval, a senhora a quem servimos, que é mui cortês e mui bela, envia-nos até vós: segui-nos então! Nós o levaremos até ela sem demora: vede, seu pavilhão está bem próximo!” O cavaleiro segue-as sem se preocupar com seu cavalo, que defronte pasta o capim do prado. Elas levam-no até a tenda, tão formosa que maravilha era. […] (Marie de France, 1994: 146-49. A tradução é minha)

 

No lai de Lanval, o herói está só, à beira do rio, o que é fundamental nesse tipo de narrativa: ele está numa situação de espera e disponibilidade; abandonado por aqueles em quem confiava, sem perspectiva, encontra-se pronto para uma nova experiência, uma nova aventura. Sem os precedentes arturianos, é basicamente a mesma situação em que surge o protagonista d’O físico prodigioso no começo da narrativa. Trata-se aqui de um início in media res, de apenas um cavaleiro andante cujo destino ele mesmo parece ignorar:

 

Balanceando o erecto corpo ao passo do cavalo, vinha descendo a encosta. […] Foram para [o rio] descendo, o cavaleiro, na mesma distracção absorta, sofreando o passo, que se apressava agora, do sedento cavalo, cujas narinas se dilatavam. […] Respirou fundo, no antegosto do banho prolongado e do repouso à sombra. Depois cearia e dormiria até de madrugada, quando as aves e o frio do alvorecer o acordariam para continuar o caminho. Para onde? E um sorriso de amarga displicência lhe estava estampado nas comissuras dos lábios, quando já o cavalo parava e baixava a cabeça para beber. (Sena, 1979: 19-20)

 

O cavaleiro aqui não o é no sentido arturiano, de membro da cavalaria; é apenas aquele que anda a cavalo. Mas esse cavaleiro andante encontra-se na mesma situação de errância de Lanval: a displicência do seu sorriso é a marca da sua disponibilidade para a aventura, para o encontro.

No lai, o cavalo de Lanval estremece de forma violenta, o que simbolicamente é indício da proximidade da magia. Na Idade Média, a identificação cavalo-cavaleiro é baseada no papel que o homem desempenha em sociedade, o cavalo é figura do status social do cavaleiro. Por isso, se por um lado o animal é o ser que pressente, antes do homem, o contato entre o mundo real e o mundo mágico, por outro é uma espécie de duplo, de alter ego do cavaleiro, pelo seu aspecto social.

Na novela de Jorge de Sena, essa identificação é não só acentuada, como torna-se tão somente física, sensorial: a “mole imensa e caminhante de cavalo e cavaleiro” surge como um conjunto único, o calor que o cavaleiro sentia era sentido também pelo “sedento cavalo cujas narinas se dilatavam” (Sena, 1979: 19). Os elementos sensoriais que identificam cavalo e cavaleiro insistem no prazer físico do banho que o herói quer tomar; neste ponto, uma variação da narrativa medieval: não é o cavalo que estremece, mas o próprio cavaleiro, pois a identificação é muito mais íntima: “A água estava muito fria, […] e deu-lhe um arrepio que todo o percorreu. Mas tão transparente, tomaria nela um banho rápido, para refrescar-se, lavar-se apenas.” (Sena, 1979: 20)

Na seqüência do lai, Lanval deita-se na relva e, reclinado, vê aproximarem-se duas donzelas. A posição assumida pelo herói, deitada, é mais um indício da intervenção mágica: afinal, ele está acordado ou dormindo? E as donzelas, são um sonho? Esse elemento da narrativa é retomado n’O físico prodigioso de forma singular: depois de banhar-se, o cavaleiro “sentiu que tinha fome. Foi ao cavalo e tirou dos alforjes um pedaço de pão e outro de toucinho, e uma maçã, que veio comer sentado à beira de água […]. Mas a tarde já declinava e esfriava, e ele mudou-se para uma aberta de sol, onde, acabando de comer, se deitou.” (Sena, 1979: 22) A continuação da história depois da barcarola, o primeiro dos poemas inseridos na narrativa, se faz com uma narrativa feita em duas colunas: a aproximação de três donzelas (texto da coluna da esquerda) surge lado a lado com a chegada de três deusas (texto da coluna da direita).

A narração paralela estabelece uma relação especular, as narrativas refletem-se, mas de forma distorcida, como num espelho côncavo ou convexo. Tanto é assim que não há simetria entre as colunas: se há quatro parágrafos em cada uma, eles não têm o mesmo tamanho, e apresentam tipos gráficos diferentes (normal/itálico). Funcionalmente os quatro parágrafos de cada coluna complementam-se ao aproximarem e afastarem sonho e vigília, mundo mágico e mundo real, e portanto abrirem brechas para o ambíguo. As donzelas pudicamente vestidas que se acercam com fascínio não serão as mesmas deusas nuas, risonhas, que avançam literalmente sobre o cavaleiro? São e não são. Se esse paralelismo das colunas engloba tanto a idéia de simultaneidade quanto a de reflexividade, e estabelece a identificação das donzelas e das deusas, sabemos que essas mulheres são a encarnação provisória do feminino perseguido pelo protagonista da novela e que será encontrado integralmente em D. Urraca, a senhora do castelo ao qual ele será conduzido. Elas são assim, tanto as deusas quanto essas donzelas e as outras todas do castelo, desdobramento de uma mesma e única personagem, a senhora do castelo. Espelhos do Eterno Feminino. (Cf. Santos, 1994)

Mas o paralelismo das colunas é também reflexo do paralelismo estrutural da barcarola que é cantada antes que elas apareçam:

Ao rio perguntei por meu amigo
aquele que há tanto é partido,
e por quem morro, ai!

Ao rio perguntei por meu amado
e u será que ele se há banhado,
e por quem morro, ai!

Aquele que há tanto é partido
u lavou triste seu corpo velido,
e por quem morro, ai!

Aquele que há tanto é ’longado
e u será que se foi lavado,
e por quem morro, ai!

Ao rio perguntei por meu amigo
e u se lavou de dormir comigo,
e por quem morro, ai!

Ao rio perguntei por meu amado
e u se lavou de nosso pecado,
e por quem morro, ai!

E u se lavou de dormir comigo
e seu retrato foi nas águas vivo,
e por quem morro, ai!

E u se lavou de nosso pecado,
aquele que há tanto é ’longado,
e por quem morro, ai! (Sena, 1979: 22-23)

Um aspecto importante do poema é o papel estrutural desempenhado por ele na narrativa: o leitor só sabe que a barcarola é cantada pelas donzelas depois do seu fim, ela surge na seqüência do banho do físico e antes do narrador informar, através do recurso à narração paralela, a presença das mulheres (na ribeira do rio) e das deusas (no sonho do físico). Sendo assim, e pelo seu conteúdo, a cantiga estabelece uma rede de relações com outros elementos da narrativa: o eu-poético (que nada no poema indica ser feminino) pergunta ao rio pelo amigo/amado que partiu e está longe, e procura saber pelo rio “u se lavou de dormir comigo”. Ora, o protagonista acabara de se banhar no rio, e havia sido antes assediado pelo diabo – um diabo apaixonado que, como era o costume, “se desespe[rava] invisível sobre o seu corpo” (Sena, 1979: 21). Indiferente, o físico espera que o diabo acabe por “descontentado contentar-se”; estando o diabo saciado, sente o físico a necessidade de se lavar. Dessa forma, pode-se ler a cantiga como o lamento do diabo apaixonado, já que o “amigo” se lava do “pecado” no rio; ela se remete, assim, à cena anterior. Mas é justamente a referência ao banhar-se que faz do poema um repositório de imagens dispersas ao longo da narrativa e que reforça seu caráter figural: se há um primeiro banho, do físico, há também um outro, agora de D. Urraca no sangue do físico (cap. II). O banho tem uma significação amorosa, uma conotação erótica intensamente explorada pelo texto: não é apenas o mergulho no sangue do físico, mas o seu amor que salva D. Urraca (os banhos referidos prenunciam portanto a relação do casal).

Dessa perspectiva, a barcarola é uma espécie de prolepse ou mise en abyme, antecipação de acontecimentos futuros, já que reflete, como numa redução especular, fatos da narrativa. Na história, o físico surge pela primeira vez junto ao rio, segue para o castelo onde vive um idílio amoroso com a castelã e, em seguida, é preso pela inquisição e afastado incondicionalmente da mulher; na cantiga, o eu-poético apaixonado pergunta ao rio do paradeiro do amigo que “há tanto é ‘longado” (v. 10), ao rio onde ele se lavou do pecado de ambos. A cantiga pode, assim, constituir-se também em lamento de D. Urraca, separada do amado, e que procura recuperar a felicidade vivida com ele através do diálogo com o rio que conhece, tanto quanto ela, a beleza física do amigo e o amor que ambos viveram. Dessa forma, o sentido do refrão, convencional e metafórico na cantiga de amigo tradicional, torna-se literal: ela morrerá por ele. Por outro lado, o poema assume um papel fundamental na vida da personagem: é uma forma de reaver aquilo que foi conquistado e perdido (e que será conquistado e perdido continuamente ao longo do texto), a fúria alegre do amor realizado. Mas o poder do poema é também o poder que o físico possui: dar a vida, revitalizar aqueles que sofrem por não importa qual motivo. E este poder (do físico) se realiza através de um banho, que é a matéria da cantiga.

O motivo do banho também é elemento essencial do lai de Lanval, como se vê pelo ambiente aquático proporcionado pelo rio e principalmente pelas bacias de ouro e a toalha que as donzelas trazem nas mãos. Mas a presença da água e seu simbolismo são bastante velados no lai, e pode-se mesmo dizer que os símbolos de que se vale o narrador (bacias de ouro, toalha) são altamente “civilizados”. A novela explicita o valor erótico da água e do banho: há um primeiro banho, do físico, e há também um outro, de D. Urraca no sangue do físico; mas não é apenas o mergulho no sangue que salva D. Urraca, é principalmente o amor do herói, a relação sexual do casal.

É bastante conhecido o caráter purificador e regenerador do banho: ele é usado nos mais variados rituais, profanos ou sagrados, em épocas e lugares bastante distintos. O banho é universalmente o primeiro dos ritos que sancionam as grandes etapas da vida; ou seja, está simbolicamente associado ao nascimento: é assim um ressurgimento, uma volta à matriz original, um retorno à fonte da vida. Para o herói, a necessidade do banho é também uma necessidade ritualística: a de resgatar a inocência anterior, a pureza virginal do corpo; a água do rio lava a “sujeira” do amor venal, e recupera a alegria de brincar, a felicidade infantil anterior ao pacto demoníaco.

Este poder regenerador das águas do rio, o físico também o possui, e este se faz da mesma forma: ele cura as enfermidades das pessoas que encontra pelo caminho através de um banho, feito com seu próprio sangue. Ou seja, a narrativa transforma um elemento simbólico, ou de leitura simbólica, em um elemento concreto, parte dos dados da efabulação. O ritual de cura do físico envolve um elemento mágico: graças ao gorro que o acompanha, ele é capaz de ficar invisível, e esperar assim que o processo se cumpra sem ser visto. A atividade, ou profissão do físico é ao mesmo tempo a de um médico e a de um feiticeiro, dotado de poderes mágicos: é, como já foi dito, um dos significados da palavra físico, mesclando medicina e magia; o banho do seu sangue devolve às pessoas a força vital, recupera-lhes a saúde, enfim, oferece-lhes, de novo, a vida que haviam perdido por vários motivos. De uma perspectiva cristã, o banho que o batismo é purifica, e essa pureza prepara uma vida nova e fecunda; o estado obtido é puramente vida, sem mistura com o princípio da morte que é o pecado. Assim, ao caráter regenerador do banho associa-se, na atividade do físico, um outro, tão importante quanto este: o caráter fertilizante, a capacidade de dar a vida. Os traços purificadores, regeneradores e fertilizantes do banho são, na verdade, do domínio da água: as águas do rio realizam, para o físico, aquilo que ele mesmo faz pelos outros, e fará pela senhora do castelo.

Identificada a fecundidade relacionada ao banho, um outro dado muito importante precisa ser referido ainda: a arquetipal associação entre a água e a sensualidade feminina. É interessante notar que, além de purificador e regenerador, o que está de acordo não só com a inocência do protagonista mas também com o começo de uma nova fase na sua vida, espécie de preparação para uma nova experiência (o banho é um ritual iniciático), não podemos esquecer que, na literatura medieval européia, o banho estava íntima e simbolicamente associado ao encontro amoroso, à realização erótica dos amantes. É imediatamente após o banho do físico que surge o primeiro poema inserido na narrativa, a barcarola (ou seja, um poema com água como tema); e é também imediatamente após seu banho que o físico sonha com as deusas: e este sonho erótico vem associado evidentemente ao fogo (“olhos brilhando como fogo”, “cálido tremor”, “ardência” – Sena, 1979: 19-20), mas também à água: “As deusas sucediam-se num turbilhão por sobre ele […], e era uma noite ardente que humidamente o cobria e em que ele se enterrava.” (Sena, 1979: 20-21). Temos aqui então um banho nupcial, um “ritual simbólico da expectativa núbil” (Macedo, 1996: 67), e a nova experiência preparada por ele será amorosa, erótica.

Dos significados do motivo do banho, a narrativa do Orto do esposo que serviu de fonte aos primeiros seis capítulos d’O físico prodigioso conserva apenas o de caráter religioso:

 

[…] Um homem passava por acerca de um edifício mui fremoso, em no qual eram todalas cousas que pertenciam pera deleitação, e achou três donzelas estar chorando acerca dos rios que saíam daquele castelo, porque a senhora do castelo estava tão enferma que era chegada à morte. E disse-lhe aquele homem caminheiro: Há esperança de vida em vossa senhora? E as donzelas responderam: Os físicos desesperaram da sua vida, mas ela espera continuadamente um [filho] de um rei que há em si três condições mui nobres, ele é mui fremoso e grande físico e é virgem. E disse-lhe o mancebo: Eu sou esse que ela espera, que hei todas essas coisas mui cumpridamente. E então levaram aquelas donzelas aquele mancebo ao castelo mui cortêsmente. E a senhora do castelo o recebeu mui bem e com grande reverença. E ele começou a fazer a sua cura e suas mezinhas à senhora do castelo, e fez um banho de sangue do seu próprio braço dextro, que fez sair, e pôs-se a senhora em aquele banho. E tanta foi a virtude daquele sangue mui casto, que com a quentura do sangue foi tornada àquela senhora a quentura natural, em guisa que saiu sã e curada daquele banho, depois que foi banhada em ele sete vezes. […] (Apud Sena, 1979: 147-48)

 

Em comparação ao lai de Lanval, o exemplo narrado no Orto do esposo retoma a estrutura básica da narrativa folclórica que é substrato do lai: um caminhante que encontra donzelas que o conduzem a um castelo, onde seu amor salvará uma dama. Mas os elementos mágicos estão ausentes, o físico andante não aparece associado ao rio, praticamente não há descrições (a não ser a do castelo). Jorge de Sena reinterpreta e parodia a alegoria do exemplo, substituindo o seu sentido figural religioso por um sentido figural amoroso, traduzindo o amor divino para termos totalmente eróticos.

Outra subversão da estrutura narrativa do lai que a novela faz é transferir para o cavaleiro os poderes mágicos: se no lai de Lanval, ele é o humano e a mulher que encontra uma fada, n’O físico prodigioso o único poder da senhora do castelo é o do amor que sente pelo herói, que o impulsiona a descobrir os infinitos poderes que possui. Em ambas as histórias há uma plenitude amorosa depois do primeiro encontro: assim que Lanval se declara à jovem fada, ela “entrega a ele seu coração e seu amor. Eis Lanval no caminho da felicidade! Ela lhe faz em seguida um dom: ele obterá tudo o que quiser, segundo sua vontade; que ele dê e despenda largamente, ela lhe fornecerá o que for necessário. Ei-lo bem provido! Quanto mais se mostrar generoso, mais ouro e prata terá.” (Marie de France, 1994: 150-51). À realização amorosa sucede-se a recompensa social: a fada repara a injustiça sofrida por Lanval na corte do rei Artur.

Na novela seniana, a recompensa fica restrita ao campo erótico. O amor do físico repara os males de D. Urraca, e o que se sucede é a orgia do físico com todas as donzelas do castelo, a ressurreição dos cavaleiros mortos por elas e o estabelecimento de uma espécie de camoniana ilha dos amores, em que o amor impera:

 

Os dias corriam festivos no castelo. Eram jogos, banquetes, passeios, caçadas, com aquelas centenas de homens, esquecidos de suas condições, e igualados nos mesmos prazeres e na mesma obediência, gozando as suas damas sem rivalidades, e eram bem uns dez para cada uma. A tudo ele presidia com Dona Urraca, venerado como um deus. E a multidão de homens e mulheres não se cansava de vê-lo aparecer e reaparecer nos braços dela, o que saudava com aclamações delirantes. (Sena, 1979: 81)

 

Essa modificação é das mais importantes para a interpretação figural da novela. A corte do rei Artur, nos romances corteses medievais, é sempre o símbolo de um Estado feudal ideal, “representado como garantia de uma ordem humana perfeita e proposto como tal” (Köhler, 1974: 26); a aventura dos cavaleiros deve conduzi-los seja a uma integração a essa ordem – tal como acontece com o Belo Desconhecido, no romance do século XIII de Renaut de Beaujeu (1991), que deve abrir mão do seu amor por uma fada para casar-se com uma rica princesa –, seja a um banimento total – tal como acontece com Lanval, que ao fim deixa definitivamente o mundo dos homens pelo mundo feérico.

No episódio referido do lai, a felicidade de Lanval só tem razão de ser se fizer parte da ordem perfeita da corte arturiana, o que é impossível. Na novela, a felicidade dos habitantes do castelo não tem relação com nenhuma ordem predeterminada, ela é, ela própria, a fundação de uma nova ordem: poderíamos dizer que ela é a figura de uma sociedade alternativa, de amor livre (O físico prodigioso é dos anos 60), vista de forma muito suspeita por um contexto regido por princípios de tradição, família e propriedade (O físico prodigioso foi escrito no Brasil)…

Seja como for, a felicidade é apenas um hiato na vida dos heróis: Lanval é julgado por um tribunal de barões feudais, o físico é denunciado à Inquisição. Neste ponto, a alteração realizada pela novela é das mais significativas. No lai, depois que rompe o pacto feito com a amada e age com soberba, Lanval será julgado pela corte do rei Artur; é sempre no mundo mítico da lenda que se dão os acontecimentos (a perspectiva é de uma alegorização completa). Na novela, ao contrário, quando, no início do capítulo VII, o narrador passa a falar do Santo Ofício, é uma instituição historicamente datada que se faz presente. E o tribunal do Santo Ofício – criado no século XIII, pelo papa Gregório IX, mais precisamente em 1231, mesma época em que era elaborada a Post-Vulgata da matéria de Bretanha, cuja terceira e última parte foi preservada justamente pela Demanda do santo Graal portuguesa – e seus procedimentos “jurídicos” são concretíssimos, não têm nada de mítico: souberam-no os muitos que foram liquidados “com suma piedade e sem efusão de sangue”.

O tribunal do Santo Ofício, mesmo sendo uma realidade concreta, não deixa de ser também a figura dos diversos organismos opressivos que marcaram a vida do homem do século XX, sendo o mais evidente deles, para o contexto português, o Conselho de Ministros chefiado por Salazar. E por isso O físico prodigioso pode ser lido como alegoria do dilema que Jorge de Sena identifica como sendo o do mundo moderno: como o homem poderá assumir socialmente sua liberdade, no momento em que as capacidades para realizá-la são inegáveis? E como vencer o medo que as oprime?

No seu ensaio sobre O Capital de Marx, Sena conclui que “chegaram os tempos dolorosos e difíceis, mas gloriosos também, de o Homem ser obrigado a fazer, ainda que o não queira, a experiência da sua liberdade” (1991: 140) É essa experiência que o físico realiza, em um embate com uma ordem que resiste violentamente às transformações históricas, mas que acaba por ser subjugada; e o que ela figura “não é já uma figura de retórica, mas uma realidade inescapável, aquela alternativa das revoluções do século passado: Liberdade ou Morte.” (1991: 140)

Na atualização do mundo medieval promovida por Jorge de Sena, não há lugar para a intervenção mágica externa: não existe um mundo das fadas. O único mundo possível é aquele em que vivemos, e a única magia possível é a transfiguração que o amor e a liberdade provocam no homem. Ao nível da fábula, o amor é motivo para a metamorfose da morte: do túmulo dos amantes nasce uma roseira, de flores enormes, rosadas, de um perfume entontecedor. Sabemos que o “cheiro acre” é elemento caracterizador tanto do físico quanto de D. Urraca – o amor deles é físico e tem no cheiro um dos seus componentes fundamentais; aqui, esse mesmo cheiro é a permanência daquele amor. Tanto é assim, que Frei Antão (o último inquisidor vivo) tenta arrancar a planta, num último gesto destrutivo. Do galho quebrado escorrem dois fios líqüidos, uma resina esbranquiçada e uma seiva vermelha. É, ainda e mais uma vez, o princípio da fertilidade: sêmen e sangue são os elementos vitais na perpetuação da vida. No entanto, o que esses líqüidos representam já não existe mais, o seu tempo já passou, e as rosas não podem dar a vida: a mão de Frei Antão mirra, e é também inútil a peregrinação que um bando de pestíferos fazem à roseira. O amor e a liberdade não tem transcendência, só têm razão de ser para quem os vive.

Se as rosas são férteis, alimentam a revolta popular que destrói a cidade e o palácio dos inquisidores, dando lugar a uma ordem social – talvez fosse melhor dizer desordem – que repete a do castelo de D. Urraca (“a população vivia num delírio de prazeres” – Sena, 1979: 135), elas não são a resposta definitiva da liberdade, que precisa ser (re)descoberta pelos rebeldes. E não seriam essas rosas, afinal, como já se lembrou de referir Gilda Santos (1989: 72-73), figura preanunciadora daquela liberdade, que também era vermelha – “Qual a cor da liberdade?/ É verde, verde e vermelha.” (Sena, 1989: 160) –, que no entanto não veio em forma de rosas, mas de cravos, 10 anos depois d’O físico prodigioso ter surgido?

 

 REFERÊNCIAS:

AUERBACH, E. Figura. Trad. de D. Machado. São Paulo: Ática, 1997.

–––––––––––––. Mimesis; a representação da realidade na literatura ocidental. Trad. de G. B. Sperber. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1971.

MACEDO, H. “Uma cantiga de Dom Dinis”. In: RECKERT, S.; MACEDO, H. Do cancioneiro de amigo. 3ª ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 1996, p. 59-70.

MARIE DE FRANCE. Lais. Éd. bilingue. Prés., trad. et notes par A. Micha. Paris: Flammarion, 1994 (Coll. GF-Flammarion, 759).

MARTINS, M. Alegorias, símbolos e exemplos morais da Literatura Medieval Portuguesa. 2ª ed. Lisboa: Edições Brotéria, 1980.

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Orlando Nunes de Amorim é professor da UNESP – IBILCE – São José do Rio Preto (SP), autor do livro O Físico Prodigioso, a novela poética de Jorge de Sena. Araraquara, SP: Centro de Estudos Portugueses Jorge de Sena, 1996.