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“La trahison des images”, René Magritte, 1929

O grande segredo da literatura

Uma leitura instigante do conto "O Grande Segredo", conduzida pela palavra arguta de Teresa Cristina Cerdeira.

Um segredo não pressupõe necessariamente uma impossibilidade de acesso; ele é antes o que aguça a possibilidade do impossível, do impensável, do que se vela como se para melhor exercitar no outro o gozo de uma perversão. Não será difícil fazer transitar essa relação de intermitência do olhar, de jogo de sombra e luz, para o espaço da escritura, para aquilo que Barthes cunhou como “o regime do prazer textual”, aquele que nasce de uma “ciência do gozo da linguagem”. Estamos, pois, em terreno da literatura.


Não que o literário pertença à ordem do desconhecido ou do que não é passível de se conhecer, por uma espécie de desacordo natural que inviabilizasse uma chegada ao sentido. Não que ao literário caiba uma espécie de aura que desloque voluntariamente o sentido para os não-iniciados, como a exigir uma descodificação exigente de algum motivo misterioso – como lembra o Derrida de Passions (1993) – que devesse ser vislumbrado pelo moralista ou pelo psicanalista, esses especialistas “da arte de detectar ou, em outras palavras, de des-mistificar”.[1]


O segredo não é afinal um sentido oculto que exija revelação, porque estaríamos localizando a escritura no domínio do significado pleno quando ela é antes um significante vazio, capaz de gerar significações sempre mutáveis, de certo modo não longe – em ousadíssima proposição – do vazio sartriano, que é a matéria da consciência humana nauseada diante do pleno, do inteiro, do acabado, do per-feito, em nome da falta, da contra-dicção, da con-fusão do heteróclito. Barthes lembrava já em O prazer do texto que a escritura era a reviravolta do velho mito bíblico da perdição de Babel: “a confusão das línguas já não é uma punição, o sujeito acede ao gozo pela co-habitação das linguagens, que trabalham lado a lado: o texto de prazer, Babel feliz”.[2]
 

O segredo em literatura é da ordem do significante, do vazio, do imprevisível, e não da ordem de um significado desvendável. Por isso mesmo diz Derrida que “ele permanece inviolável até quando se acredita tê-lo revelado”(p. 44). E continua: “Não porque se esconda para sempre numa cripta indecifrável, ou atrás de um véu absoluto. Simplesmente excede o jogo do vendar/desvendar: dissimulação/revelação, noite/dia, esquecimento/anamnese, terra/céu, etc”. (p.44). E chegamos ao irredutível derridiano ou ao neutro barthesiano. Daí que não se rompa o segredo, mas se fale dele ao infinito. O segredo é da ordem do imprevisível. O segredo é o lugar da ausência. E nesse sentido, é o lugar da paixão.
 

É aqui que quero começar a falar do conto “O grande segredo”[3] de Jorge de Sena. Na verdade quero antes falar do grande segredo deste conto de Jorge Sena, daquele segredo que vai acordar uma das inumeráveis dimensões de leitura para estas páginas de literatura; corrijo-me, ou antes, vou além, sem desprezar o que foi dito, somando sem excluir: nessas coabitações de linguagens que trabalham lado a lado para a construção da Babel feliz, nesse edifício de significações feito de múltiplas camadas sobrepostas, nessa ousada pretensão – desta feita não punida – de homens criadores, que é, enfim, a escritura deste conto, quero experimentar a opção por um outro paradigma de leitura. O de voluntariamente não ceder ao prazer – mais simples porque mais evidente – dos significados mais ou menos evidentes da história de uma experiência mística de freira enclausurada, para tentar um passo menos certo mas que permitirá fruir o gozo exquis de encontrar nesse mesmo texto, em modos de perversão do contar, um exemplo de estrutura auto-referente, que se conta apenas a si própria. Corrijo-me mais uma vez: não apenas mas suplementarmente a si própria.

Trata-se de um conto breve, quase brevíssimo, como Jorge de Sena, mais ou menos pela mesma altura, em 1961, no seu tempo de produção brasileira, ousou realmente escrever. A meu ver, contudo, com as suas quatro páginas, a exemplaridade desejada para o tal “conto brevíssimo” estará mais plenamente realizada neste outro conto a que ele chamou “O grande segredo”, possivelmente porque a tal estruturação auto-referente a que me referi, e que é explícita e quase transparente no outro (“Conto brevíssimo”[4] ), ganha neste a dimensão suplementar do segredo, mantendo-se como um suplemento da estrutura narrativa que, aqui, afinal não desaparece, como a indicar que literatura e metaliteratura são antes de tudo faces de um mesmo segredo bifronte.

No tal “Conto brevíssimo”, Sena elegera como epígrafe uma blague em inglês: “A tale must be brief”, a que se segue a indicação de uma esdrúxula autoria: “Vários autores”. Mas é em “O grande segredo” que a desejada concisão do conto breve – pensemos no conhecido ensaio de Cortázar (“El cuento breve y sus alrededores”) – é menos economia do que pulsão latejante de sentidos.

A primeira hipótese para o título do conto, por exemplo, poderia estar, quem sabe, na intuição de a estória referir uma quase biografia de Santa Teresa de Ávila: lá está a epígrafe de Juan de la Cruz como a acenar para a temporalidade da estória; lá estão as referências assaz conhecidas da vida da jovem antes do convento, a experiência de uma fisicalidade visceral entre prostitutas, mendigos, leprosos, soldados e bandidos, que – diz o texto e contam as enciclopédias e biografias da santa de Bernini – ela, “na sua pregressa vida, conhecera”(GS, 149); lá estão, mais tarde, no convento, os êxtases místicos na solidão da cela, com o delírio do corpo mesclando brutalidade, desespero, ansiedade, horror, repulsa, sensações que funcionam como sinais da presença do divino, transfigurações do espírito em fisicalidade.

Tudo nela se abria e despedaçava, eram milhares de agulhas que a picavam, facas que a rasgavam, colunas que a enchiam, cataratas que a afogavam, chamas que ardiam sobre águas luminosas, cantantes, e pousavam como fogos-fátuos pelo corpo dela (GS, 151)

Todos os sentidos são aí exercitados em excesso: excesso de luz, excesso de música, excesso de calor e de frio, excesso de águas, excesso de dores.


Como numa breve tragédia em três atos, a esta invasão se segue a outra, que não é simplesmente a de se tornar possuída por um diabólico deus, mas a de transformar-se em espetáculo em que o próprio corpo brutalizado é oferecido às outras freiras e à comunidade, que experimentam perversamente – porque em sentido desviado, passando pelo corpo do outro – o desejo do desejo, o desejo da posse por metonímia.

Quando assim se curvavam para ela, e a levantavam, e carinhosamente a deixavam no catre, e ficavam de joelhos, enchendo a cela e o corredor, rezando com ela, não imaginariam a vergonha imensa que a torturava, ora diversa, ora igual à que sentira quando o emir, no meio da tenda, mandara que a despissem e os soldados, uns apos outros, a possuíssem em público. (GS,151)

O início do terceiro ato deverá levar à catarsis, como convém a esta breve tragédia. E assim acontece: depois do delírio, o retorno à normalidade, que era, no entanto, neste caso, sempre cíclico. A consciência desta fatalidade não poderia, portanto, devolver à freira convulsa, à freira histérica – fosse ela uma personagem do século XIX – o repouso e a paz: “tudo se repetia e recomeçava”.


É quando então, em modos de coup de théâtre, o texto espantosamente como que encaminha uma saída para este primeiro “grande segredo” que fora o êxtase místico, ao mesmo tempo que insinua, quem sabe, uma segunda opção de leitura para o título do conto. Afinal o grande segredo, que psicanaliticamente poderia instaurar a explicação no nível da consciência, produzindo o efeito terapêutico final de um clarão, que já não fere, mas é de “vigilante ternura”, e de uma freira apaziguada “tão dorida e esmagada, a respirar tranqüila”(GS, 153), o grande segredo, repito, nessa linha de pensamento, não tem a ver com o presente, que alterna luxúria e religiosidade. O grande segredo nasceria de um processo de anamnese, de um reencontro com o tempo perdido, em que a freira se revê, menina, diante do crucifixo da igreja da sua terra, no impulso fracassado de espreitar o corpo de deus. No nível dos significados não falsearíamos certamente a coerência deste conto ao entendê-lo, assim, numa lógica interpretativa da punição da sexualidade através da sexualidade excessiva.


É porém ainda para uma outra ordem de segredo que esta cena final, se examinada na sua textualidade, poderá ainda apontar. Retomemos sinteticamente os seus passos sob a forma de paráfrase: uma freira revê proustianamente uma cena da infância ligada à experiência da sexualidade que lhe traz, enfim, uma espécie de explicação sobre as suas dolorosas experiências de uma erótica mística do presente. Mas este segredo, atentemos, lhe chega “dentro dos olhos fechados”, como a abstrair a revelação do segredo do contato com a fisicalidade mundana da visão: os olhos já não são o “espelho do mundo”. Eles serão, antes, as “janelas da alma”, o que justifica a inoperância da visão voltada para o que está fora.


Essa estranha visão do segredo vem, aliás, registrada por um sintagma – “surpresa esquisita” – em que será forçoso não minimizar o deslocamento semântico sofrido pelo adjetivo que guarda ao mesmo tempo a noção de estranhamento (esquisito/estranho) e de gozo (esquisito/exquis), como o jogo surrealista do “cadavre exquis”.
A cena de anamnese e de retorno gozoso à infância é uma espécie de cena primordial: a menina, ao olhar para o crucifixo, perverte o significado de sagrado como aquilo que não pode ser tocado sem manchar ou ser manchado, e em solidão – que é a condição necessária para o gozo erótico mas também para o gozo poético (“A imagem sorria para ela, e então ela, menina olhando em volta para verificar se estava só”) – ela ousa ir ao encontro do segredo, tirar-lhe o véu de seda, o “cendal” que o encobria:

[…] erguera a mão para o cendal que o cingia, e tentara levantá-lo para espreitar. […] Mas o cendal, que parecia de tão fina e leve seda, era esculpido na madeira e ela baixara tristemente a mão, sentindo que a curiosidade lhe fora castigada.
 

O que temos na verdade são duas experiências: a vivida e a recuperada pela memória involuntária. Duas experiências que ilustram à perfeição que a história nunca se repete. Ao tocar no cendal e descobri-lo sem avesso, a criança lera a sua própria ousadia de tocar o segredo e o sagrado como frustração do desejo e como culpa que merecia expiação. No processo de anamnese, contudo, a cena reinterpretada transforma, essa frustração do conhecimento do segredo na única possibilidade feliz de conhecimento do segredo. Ao tocar o cendal, o segredo era simplesmente um vazio nascido da ilusão da arte: o cendal parecia seda macia mas era madeira sem avesso. Ceci n’est pas une pipe.

De criança a poeta, o próprio sentido do gozo se altera: “Mas o bem-estar era enorme e contraiu-lhe os lábios num sorriso. O grande segredo, agora sabia o grande segredo. E adormeceu”: bem-estar, sorriso, segredo sabido embora necessariamente não desvelado.


A suprema perversão deste conto estaria assim na descoberta de um outro modo de leitura do segredo. A anamnese é mais que uma revisitação do passado da experiência infantil. Ela confere à personagem a ciência dos poetas – construtores do segredo com a linguagem – , e a ciência dos leitores-críticos – intuidores do grande segredo da literatura e que não é senão este: o segredo em literatura é da ordem do significante, do vazio, do imprevisível, e não da ordem do desvendável.


Tocar no cendal é entender que a arte não é a reprodução da vida.

Tocar no cendal é descobrir o fingimento da arte.

Tocar no cendal é descobrir que o signo não tem dentro, nem avesso, nem atrás, que ele é superfície, textura, corpo físico ele próprio construtor de renovadas significações.

Tocar no cendal é intuir que o grande segredo é o vazio da literatura.
 

 

Notas:

1. Jacques Derrida, Paixões, São Paulo, Papirus Editora, 1995 (trad. Lóris Machado), p. 42.

2. “la confusion des langues n’est plus une punition, le sujet accède à la jouissance par la co-habitation des langages, qui travaillent côte à côte: le texte de plaisir, Babel heureuse”. Roland Barthes, Le Plaisir du texte, Paris, Seuil, 1973, p.10

3. Jorge de Sena, “O grande segredo”, in: —. Antigas e novas andanças do demônio, Lisboa, Edições 70, 1981, p.149-153.

4. Jorge de Sena, “Conto brevíssimo”, in: —. Antigas e novas andanças do demônio, Lisboa, Edições 70, 1981, p. 167-169.