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Trocando idéias, traçando percursos: A correspondência entre Jorge de Sena e Vergílio Ferreira

[…] uma carta fixa de nós uma pessoa responsável. E o tempo e trabalho que exige escrevê-la. E que esforço para a decifrar nos sinais os mais legíveis. Porque ler é mobilizar em nós todas as faculdades activas. O entendimento a memória a imaginação. Uma carta. Um impensável só pensável na lentidão genesíaca do carro de bois. E na intimidade da candeia de azeite…
Ferreira, 2001, p. 85.
A correspondência entre Vergílio Ferreira e Jorge de Sena não é volumosa, se atentarmos para o período relativamente largo em que se inscreve — de fevereiro de 1950 a agosto de 1975 — vinte e cinco anos e mais alguns meses. Constitui-se de 33 cartas — 18 de Vergílio Ferreira, 15 de Jorge de Sena — escritas entre longos períodos de silêncio, que atravessam longos caminhos: Évora, Lisboa, Assis, Araraquara, Fontanelas (Praia das Maçãs), Santa Bárbara (Califórnia).

Reunidas no volume intitulado Correspondência, publicado em 1987 pela Imprensa Nacional/Casa da Moeda de Lisboa, as cartas merecem uma nota introdutória assinada por D. Mécia de Sena. Trata-se de comovida apresentação, que nos dá conta não só do caráter dessas cartas, reveladoras da amizade pessoal e [do] respeito intelectual mantido entre os dois grandes escritores, mas também da tarefa de deixá-las chegar modestamente ao ajuizamento dos leitores que, como nós, ávidos de notícias e movidos por irrefreável curiosidade, nos debruçamos sobre esses escritos, lamentando apenas não terem sido mais amiudemente produzidos. Pòr isso, e apesar de Vergílio Ferreira entender que cartas só podem ser pensadas na intimidade da candeia de azeite, elas vieram a público, ainda que depuradas de alguns excessos.

Aqueles que, como eu, já tiveram a oportunidade de se deparar com o manuscrito de Vergílio Ferreira e sentiram a enorme dificuldade que é decifrar-lhe a letra, hão certamente de se deliciar com a epígrafe escolhida por D. Mécia entre os escritos do marido: Tem uma letra tão miudinha, tão miudinha, tão miudinha, / que as suas cartas ao futuro cabem numa estampilha do correio, o que, por si só, afora o conteúdo sempre instigante da epístola, já era responsável por transformar em acontecimento a sua chegada. E visível aí, também, a preocupação de demonstrar o quanto se afinavam os dois missivistas, apesar da pouca convivência que tiveram, atestada no aplauso recebido por Vergílio Ferreira na última vez em que se viram, por ocasião das comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, em 10.06.1977, quando então puderam estar ao pé de amigos como Eduardo Lourenço e David Mourão-Ferreira, que não mereceram a corrosiva vergastada verbal, característica dos escritos senianos e, mesmo não tão contundentes, dos escritos do próprio Vergílio Ferreira.

A apresentação segue-se a introdução assinada por Vergílio Ferreira, a que não falta o tom evidentemente comovido, mas o suficiente para não deixar de demarcar o que é fundamental na construção dessas cartas, particularmente as de Sena. Conforme já assinalara D. Mécia, Vergílio Ferreira diz-nos da freqüência irregular com que foram escritas, além de não terem resultado de uma amizade mais pessoal, apesar da facilidade com que Sena se dava às amizades, como se delas carecesse. Entre afável (nas conversas) e agressivo (nos escritos), mas sempre polêmico, Sena parecia estender às cartas o seu modo de ser poeta, despertando muitas vezes no não menos polêmico amigo o desejo de escárnio e maldizer que não falta, com certeza, nesses escritos, talvez para dar vazão ao que chamou esse ancestral vício português. Obsessivamente preocupado com a cultura e com o destino de Portugal; leitor refinado e rigoroso crítico e estudioso da poesia camoniana (sua obsessão mais evidente), Jorge de Sena destaca-se, para Vergílio Ferreira, pelas altas especulações de erudito, a quem, com visível modéstia, dizia não poder acompanhar.

De fato, ainda que a agressividade e o tom ácido venham açodar a crítica mais indignada em relação aos do seu tempo, ou a evidenciar a mágoa pelo não reconhecimento de seu trabalho, as cartas de Jorge de Sena aliam-se às de Vergílio Ferreira para dar um testemunho não apenas das preocupações com aspectos da História, da política, da cultura de Seu país. São verdadeiras extensões do seu pensar e do seu fazer literário, que acompanham momentos dos mais expressivos da sua produção, mesmo quando lá se instala, às vezes desmedido, o maldizer. E como as relações de amizade que os aproximam são sobretudo intelectuais, afastando certo tom familiar que lhes daria acento cotidiano, as cartas de Jorge de Sena e de Vergílio Ferreira transformam-se, a despeito dos excessos que por vezes se observam, em fonte indispensável de estudo para aqueles que pretendem acompanhar a evolução de suas obras, bem como oferecem subsídios para a recomposição de uma época decisiva para a história política e cultural de Portugal, além de adquirirem muitas vezes tom confessional, que reflete a incontida emoção e o sofrimento que excede as palavras, seduzindo o leitor para
a sua causa.

Escritas no espaço de um ano (de fevereiro de 1950 a janeiro de 1951), as quatro primeiras cartas são ainda a expressão contida de um início de conversa, derivada da troca de livros: Vergílio oferece a Sena o romance Mudança e dele recebe Coroa da terra. Ou porque não tivesse realmente tempo para a crítica, ou porque não estivesse a ela disposto, Sena pouco diz do romance – belo romance, que precisava de um ar que em Portugal não se respira, mais interessante que o anterior, algumas poucas considerações sobre o papel do crítico, que não deve aceder ao que os autores solicitam, senão as virtualidades activas do autor que observa (Sena & Ferreira, 1987, p. 25), nada mais — apesar da insistência de Vergílio Ferreira para criar discussão capaz, como ele mesmo afirma, de poder vender o livro e da tentativa frustrada de discutir questões relativas à arte, que mais tarde dariam motivo para fértil argumentação. Em resposta ao recebimento do livro de poemas Pedra fdosofal, remete nova carta, em que já se delineia a inegável sensibilidade e agudeza de observador que vai caracterizar esse leitor de Jorge de Sena: a discordância em relação à crítica que considera hermética a poesia seniana e a descoberta de um poeta triste, desencantado, que impede a emoção plena; poeta de versos áridos, estranhamente clássicos, que reclamam estudo mais detido para que se possa identificar em que medida estão presentes Rimbaud, Eluard ou Pessoa, versos em que ressalta uma tensa cerebração abstrata através de pequenos sinais não de todo abstratos, mas deliberadamente arrefecidos de emoção.

Um intervalo de dez anos separa o primeiro do segundo conjunto de cartas, que abarca o período de 1961 a 1967, quando Sena já está no exílio e as cartas de Vergílio Ferreira precisam atravessar o Atlântico para chegar a Assis ou Araraquara e de lá voltarem outras carregadas de valiosos comentários do autor de Metamorfoses ou de ressentimentos e ataques à comunidade intelectual portuguesa a que agora já pode somar-se a brasileira ou a dos portugueses aqui radicados, incapazes de compreender e valorizar sua obra, produto de um trabalho incansável, de uma produção ininterrupta, que as referências permitem, mesmo ao leitor iniciante, reconhecer. É, sem dúvida, o período mais rico dessa correspondência que algumas vezes se realiza a intervalos de uma semana, sinal evidente da tensão que nela se estabelece, ou das questões que exigem resposta imediata.

O reencontro se dá por dois motivos: a leitura de Aparição, alvo de artigo elogioso no Estado de São Paulo, e o envio das Andanças do demônio, objeto da crítica de Vergílio Ferreira, que destaca com justiça do conjunto de contos o “Peixe-pato”, em que reconhece uma presença angustiante de solidão, num livro poético sem excesso, a propósito do qual faz um elogio e um desabafo: perturba que um escritor “se diversifique”, ainda, ou sobretudo, quando é bom em vários gêneros. […] V é bom em tudo. (Sena & Ferreira, 1987, p. 38) . Inúmeras outras vezes o poeta será alvo do elogio sincero de Vergílio Ferreira, que se surpreende e aturde diante da capacidade de trabalho do amigo, àquela altura professor nos EUA:

Como diabo tem V. mão no seu espírito para trabalhar? […] de tudo absorver, de tudo assimilar e utilizar, de estar todo em plena disponibilidade em qualquer coisa que realize. […] muda de hábitos e de ambiente, sem mudar quem é (Sena & Ferreira, 1987, p. 148).

Aparição, para além da alegria que desperta em Sena, será motivo para discussões e desabafos, seja de um, seja de outro, em torno do escândalo que o romance suscita e das desavenças que provoca no meio literário português. E com indignação que Jorge de Sena toma conhecimento da crítica elogiosa de Gaspar Simões, então transformado irreverentemente em Sismar Gaspões. Sena não admite que o crítico, em relação a quem não faz questão de demonstrar uma atitude mais amistosa, comente ou critique o que não pode entender (Sena & Ferreira, 1987, p. 35) — por isso é capaz de afirmar equivocadamente idéia de que com esse romance dá-se o retorno do eu, sob ótica psicologista, ou, como afirmou Casais Monteiro, que seria V. Ferreira o epígono de José Régio. Como as cartas vieram a público muitos anos depois — o romance é publicado em 1959 e as cartas em 1982 — certamente foi evitada a polêmica que desabafos dessa natureza poderiam provocar.

Serão sempre elogiosas as referências ao trabalho de Vergílio Ferreira, e sempre motivos para a comparação com aqueles que considera menores ou absolutamente incapazes. Aliás, esses menores ou incapazes compõem uma lista enorme de nomes que, mesmo ocultados em aa, bb, x, y, z, engrossam as fileiras dessa intelectualidade portuguesa formada por um bando de cretinos pretensiosos e jornalísticos, por uma universidade que acolhe um bando de medíocres promovidos, a respeito da qual afirma categoricamente: E, no meio disto, com raras excepçôes, são os XX e ZZ que nos aplaudem ou desancam, sem saber, sem gosto e, pior, sem caráter. (Sena & Ferreira, 1987, p. 41). Não cabe aqui avaliar o quanto há de verdade ou simples ressentimento nesses desabafos do poeta e ensaísta. São cartas, omitem nomes intencionalmente, mas deixam ratificada a sua virulenta expressão, a autenticidade dos seus pontos de vista e, principalmente que Sena era, apesar da acurada racionalidade de suas atividades investigativas, era tomado — e os textos literários não o negam — de intensa emoção.

O elogio de Aparição deslancha uma série de discussões que envolvem a publicação de outros estudos, tanto de Sena quanto de Vergílio Ferreira, nesse longo período de correspondência mais assídua. A menção ao estudo sobre Marx, esforço para o reabilitar das amarras estalinistas, libertando-o das falácias habituais do anti-marxismo e apresentar uma interpretação do marxismo que permitisse a conciliação de todas as esquerdas, sem que o marxismo fosse distorcido (Sena & Ferreira, 1987, p. 80). As discussões sobre o Cristianismo e sua presença inequívoca no Ocidente. A longa explanação sobre a autoria dos sonetos de Camões, alvo de rigoroso estudo em sua tese de doutoramento e livre-docência, defendida em São Paulo. A publicação desses estudos, que põem em causa um certo agnosticismo de Camões (reforçado pelos laços culturais que o poeta mantinha com gente suspeita, que teve que haver contas com a Inquisição), um estrito laicismo (por pensar a História sem mera obediência devota), sempre na certeza de que provocariam escândalo entre os camonistas (Costa Pimpão, Hernâni Cidade, Antônio Sérgio) e em V. Ferreira um enorme alvoroço, pelo prazer que lhe causaria a tempestade que haveria de provocar entre esses camonistas, numa espécie de gozo sádico de escritor abatido pela injustiça. As pontuais questões de estética despertadas pela leitura dos poemas, romances e ensaios. As anotações sobre a representação, resultantes do estudo sobre Os painéis ditos de Nuno Gonçalves, que provocam reflexões de ambos sobre fotografia, arte e estilo, sobre o que Sena chama de verismo, sobre a arte de encomenda, sobre a mistificação ideológica que dela deriva, sobre a questão da liberdade artística e a autonomia da criação, sobre o olhar. As leituras de Sena (Simmel, Dilthey, Scheler, Heidegger, Husserl, Marx, entre outros) e as de Vergílio Ferreira (Jaspers, Husserl, Sartre, Malraux), que nos vão dando conta da sua formação, de algumas tendências que se vão revelando nos textos, sejam eles poéticos, ensaísticos ou ficcionais. As críticas severas ao Presencismo e principalmente ao Neo-Realismo (que, para Sena, cáustico em sua crítica, comemora o seu quarto centenário), de cujos seguidores os dois escritores se tornam vítimas por terem se afastado do movimento, impossibilitados até do comentário de um livro pelo risco de esse livro ser automaticameiite condenado, já que o […] elogio o compromete (Sena & Ferreira, 1987, p. 92), conforme desabafa Vergílio Ferreira.

Todos esses problemas e outros que o escasso tempo não permite desenvolver preenchem as páginas da Correspondência e talvez tivessem um outro desenvolvimento e outra profundidade, não fossem os constantes desvios para ir ao encontro do feroz maldizer, que acaba por tomar grande parte dos escritos, real demonstração do caráter obsessivo que adquiria, principalmente na expressão de Jorge de Sena.

Todavia, mesmo esse implacável maldizer tem sua função na Correspondência entre Jorge de Sena e Vergílio Ferreira, para além da mágoa dos que o praticam. Em Portugal ou no Brasil, e apesar das diferenças, Sena se vê ameaçado pelas práticas do compadrio, pela rede de intrigas armada pelos que se arvoram em donos do poder. E bate com força, talvez como um recurso extremo para evitar a pancada. Intenta fazer doer no outro aquilo que lhe dói, até quando simplesmente o imagina. Na sua mágoa de Portugal e dos portugueses, afirma que sempre haverá quem o leia e aos outros assassinará literariamente na medida em que mereçam, quantos […] achar conveniente e estudará os que puder tratar com grandeza (Sena & Ferreira, 1987, p. 82), acrescentando:

De resto, raros foram os portugueses que atingiram alguma grandeza aí dentro. Foi de fora que ganhamos o Camões e o Eça. O Vieira quis morrer no Brasil […]. E o Herculano morreu aí como se estivesse noutra parte. Isso, realmente, foi sempre um “isso”, mesmo quando excepcional. O pior é que é um “isso” que eu amo desesperadamente. (Sena & Ferreira, 1987, p. 82.)

Talvez se pudesse aplicar a Jorge de Sena o que Eduardo Prado Coelho declarou a propósito de Vergílio Ferreira, em 1992, quando lhe traçou o perfil, num certo retrato: O Vergílio precisa apenas que gostem dele. Uma abordagem inteligente, um modo frontal de dizer as coisas, um pouco de ternura, e ei-lo rendido (Coelho, 1992 p. 9-10.). Talvez Sena quisesse ser mais amado, não de graça, mas pelo reconhecimento do tremendo esforço que empreendia para que a cultura do seu país fosse valorizada também no Brasil (que também não poupa), onde a Literatura Portuguesa, segundo o seu julgamento, não provocava maior interesse que o filológico, nem era lida, por ser alvo da ação de um anti-lusitanismo por ele descoberto nestas nossas plagas. Por isso expôs-se tanto, quer no seu trabalho incansável e admirável, quer na impiedosa crítica, num tempo nebuloso, de liberdades limitadas e tantos jogos de interesses clarificados ao longo da leitura das cartas (é bem verdade que unilateralmente), tempo de Oliveiras seculares que se recusavam a morrer, como bem disse Vergílio Ferreira.

As últimas cartas — quatro, ao todo — já cumprem outro itinerário: seguem a rota Lisboa — Santa Bárbara — Lisboa, depois de oito anos do mais absoluto silêncio, atribuído por Jorge de Sena ao intenso trabalho universitário que mal lhe deixava tempo para escrever, quando o período salazarista já havia terminado. Já não ressalta dos textos o ânimo para discussões literárias. Aliás, para Vergílio Ferreira, a atividade literária naturalmente acabou. Aliás — diz-nos — não há quem compre — e os livreiros sobre isso são claros. A nível de editoras, as “massas trabalhadoras” são mesmo de opinião que versinhos e romancecos e outras trivialidades, se não são contra-revolucionãrias, são pelo menos ridicularias no tempo presente (Sena & Ferreira, 1987, p. 162).

Em contrapartida, é numa dessas cartas que Sena aborda com detalhes um romance de Vergílio Ferreira — Rápida, a sombra. Predomina, entretanto, naqueles momentos que se seguem à Revolução dos Cravos, um sentimento de apreensão (Inquieta-me muito a situação portuguesa, diz Sena) quanto ao destino dessa democracia de base socialista, por que Sena tanto lutou. Para Vergílio, a esperança, última das virtudes teologais a abandonar-nos, está afazer as malas (mais tarde essa perplexidade e a impossibilidade de ação serão transformadas na ficção ferozmente irônica de Signo sinal). As previsões de Sena são catastróficas, ao avaliar a ação em que estão empenhadas as superpotências. Não o são menos as de Vergílio, quando critica a tentativa de pôr em prática uma doutrina de mais de 50 anos, como se a vida viesse dos livros.

Não é um sentimento de euforia o que se depreende das páginas finais da Correspondência. Parece que o acirrado tom de discussão cede a um ritmo decrescente e melancólico, crepuscular, como se as sombras voltassem a se avolumar, prenunciando outra noite próxima. Sena aventa a possibilidade de ir a Lisboa no mês de setembro daquele ano de 1975 e remata, ironicamente: Haverá Lisboa? A Correspondência chega ao fim. Decerto, Lisboa houve e há. Mas a que sonharam esses dois grandes representantes da Literatura Portuguesa do século xx, como brasileira, embora leitora (ou porque leitora) de Lourenço e Boaventura, não sei se posso dizer que há.

Ler a correspondência de Jorge de Sena e Vergílio Ferreira é, sem dúvida, mergulhar num texto que, a par das virtudes epistolográficas, nos permite caminhar por uma variedade de tons que vão do mais grave acento pessimista, passando pela delicadeza poética de tantas passagens comovidas, até atingir o agudo em que reside a crítica, a denúncia que alarma e a irreverência desestabilizadora. São sem dúvida prolongamentos da sua paixão maior: pensar e escrever.

No dia seguinte ao da morte de Jorge de Sena, escreveria Vergílio Ferreira no vol. II da sua Conta-corrente as palavras que, para concluir, vale agora lembrar, nesses 25 anos de ausência, como um gesto de reverência e uma celebração:

Agora que a morte o arredou de todos, agora que se alargou o espaço em que os inimigos se moviam, agora é a altura de sua obra o substituir. Que espaço ocupado por ele será ocupado por ela? Acabadas as razões emocionais de todos, quando sobretudo a morte os suprimir a eles e a obra ficar definitivamente sozinha, creio que a sua poesia ouvir-se-á ainda melhor, harmonizada com a dos grandes poetas deste século português. Da prosa, é impecável a de certos contos, nomeadamente a daquele que nos fala de Camões já no fim da vida, traçando o percurso da sua amargura na Sôbolos rios que vão. Das coisas eruditas, não sei. Mesmo os ensaios, foi pena que ele tropeçasse tanto na maledicência e não abrisse apenas caminho por onde ela não houvesse. De qualquer modo, um livro como Metamorfoses será sempre uma revelação de beleza, de grandeza humana, de fascinação. O resto, a legenda agressiva de Sena, será esquecida, para esquecer, ou para lembrar, apenas no anedotário dos grandes homens. Paz ao Sena morto, viva a sua poesia. (Ferreira, 1981, p. 205)

Diz-se que todo o grande escritor, seja ele poeta ou romancista, é um vate. Pelo menos o Romantismo investiu largamente nessa convicção. Vergílio Ferreira vaticinou o esquecimento da legenda agressiva de Sena, para permanecer viva a sua poesia. Acertou, mas em termos. Talvez porque o tempo ainda não tenha sido largo o suficiente para a poeira assentar-se, ainda hoje estamos nós percorrendo um caminho de leitura que inclui essa agressividade, mesmo porque ela está presente em seus escritos, não apenas na Correspondência. O acerto de Vergílio Ferreira está em que hoje multiplicam-se trabalhos acadêmicos sobre Jorge de Sena, tanto em Portugal como no Brasil e aqui, sem sombra de dúvida, pela mão de Gilda Santos. Jorge de Sena é lido e estudado. Está vivo, pois, na obra que produziu. Afinal de contas, as palavras cumprem-se. E nós somos encantados pelo seu sortilégio.

 

Referências bibliográficas
COELHO, Eduardo Prado. “Vergílio, um certo retrato”. Jornal de Letras. Lisboa, 15 de set. de 1992.
FERREIRA, Vergílio. 2- ed. Conta-corrente 2. Amadora: Bertrand, 1981.
______ . Escrever. Lisboa, Bertrand, 2001. Ed. De Helder Godinho.
SENA, Jorge de. & FERREIRA, Vergílio. Correspondência. (Org. e notas de Mécia de Sena; Introdução de Vergílio Ferreira). Lisboa: INCM, 1987.