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Biografias de um minotauro: Jorge de Sena e a vida que escreve a si mesma.

 É que os génios não têm, não precisam de ter biografia.
Latino Coelho [1]
Luzes que brilham sem iluminar, sons interrompidos e sem eco, uma dita “miséria de ser por intervalos”. Assim é a poesia de Jorge de Sena, escrita de poeta em trânsito e metamorfose, intervalar e ambivalente, sendo a um só tempo intelectualmente sofisticada e politicamente engajada, violenta e doce, plural e singular.

Para além da já óbvia afirmação de que um poeta só o é quando se vê através de um seu poema, não havendo poeta enquanto não há poesia, a produção de Jorge de Sena, ao configurar-se como uma escrita do intervalo, do entre-lugar, num espaço de exílio e como uma proposta intersemiótica de constante diálogo, dá a ver uma vida que só existe no escrever-se, a partir de uma pátria que só existe como discurso e numa língua que se constrói a partir de linguagens múltiplas.

Embora saiba que a poesia não é o caminho para a comunicação convencional, por ser o instrumento de que se vale a língua para calar-se, o engenheiro Sena parece privilegiar o verso como elemento de construção das pontes que ergue entre muitos endereços (seja em Portugal, no Brasil, nos Estados Unidos ou em Creta), diferentes linguagens (a Literatura, a Música, as Artes Plásticas, a Ciência) e alteridades várias. Em estrofes, cria para si uma vida que só tem sentido, verdadeiramente, quando lida em seus significantes poéticos, no avesso da prosaica e incompreensível existência que se desenrola à margem da escrita. Chega mesmo a comentar, no prefácio de Poesia-III [2], falando de um livro, um tanto medíocre mas com um belo título, lido na juventude:

eu sempre desejei, essa minha vida, à medida desse título [La vie recluse en Poésie]. Reclusa a vida em poesia, não para tirá-la da Vida, mas para encerrá-la dentro do mundo da transfiguração poética, o único a abarcar inteiramente tudo, compreendendo tudo, fitando tudo, aceitando tudo, menos aquilo que diminua a liberdade da criação, que o mesmo é dizer a liberdade do ser humano(…).(Sena 1989, p.15)

Aceitando e compreendendo tudo, o “mundo da transfiguração poética” desejado e habitado por Jorge de Sena é o espaço em que todo diálogo é possível, espaço que só pelo diálogo é possível, local de encontro ideal para exilados como um poeta e um Minotauro. Diz o poeta:

Nascido em Portugal, de pais portugueses,
e pai de brasileiros no Brasil,
serei talvez norte-americano quando lá estiver.
Coleccionarei nacionalidades como camisas se despem,
se usam e se deitam fora, com todo o respeito
necessário à roupa que se veste e que prestou serviço.
Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria
de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações
nasci. E a do que faço e de que vivo é esta
raiva que tenho de pouca humanidade neste mundo
quando não acredito em outro, e só outro quereria que
este mesmo fosse. Mas, se um dia me esquecer de tudo,
espero envelhecer
tomando café em Creta
com o Minotauro,
sob o olhar de deuses sem vergonha.
(Sena 1989, p.74)

A identificação entre poeta e Minotauro é imediata e inusitadamente confortável, cômoda como o olhar lançado a um espelho que revela não uma previsível auto-imagem mas uma grotesca aberração, um outro absolutamente outro, absolutamente diverso de todos, mas que acena tão compreensivo àquele que se sabe também sempre outro seja qual for o país, seja qual for o passaporte.

O Minotauro compreender-me-á.
Tem cornos, como os sábios e os inimigos da vida.
É metade boi e metade homem, como todos os homens.
Violava e devorava virgens, como todas as bestas.
Filho de Pasifaë, foi irmão de um verso de Racine,
que Valéry, o cretino, achava um dos mais belos da “langue”.
Irmão também de Ariadne, embrulharam-no num novelo de que se lixou.
Teseu, o herói, e, como todos os gregos heróicos, um filho da puta,
riu-lhe no focinho respeitável.
O Minotauro compreender-me-á, tomará café comigo, enquanto
o sol serenamente desce sobre o mar, e as sombras,
cheias de ninfas e de efebos desempregados,
se cerrarão dulcíssimas nas chávenas,
como o açúcar que mexeremos com o dedo sujo
de investigar as origens da vida.
(Sena 1989, 74)

Por um espelho enigmático e distorcido mas, ainda assim, espelho, o poeta vai traçando através da biografia do amigo Minotauro, pela citação e pela simetria, sua própria vida: exilado em labirintos como o Minotauro, “metade boi e metade homem” como o Minotauro e “todos os homens”, sábio e inimigo da vida como todas as bestas, recluso em poesia como o “filho de Pasifaë, irmão de um verso de Racine”. Aos poucos, a descrição da figura mitológica e a auto-apresentação (“Nascido em Portugal, de pais portugueses / e pai de brasileiros no Brasil”…) vão se entrelaçando num único texto que, ambivalente, funciona como um poema, singular, de biografias, no plural. Unidas pelo diálogo, as figuras híbridas de um poeta português/brasileiro/norte-americano e de uma criatura “metade boi e metade homem” tornam-se impossíveis reflexos um do outro, tão diferentes quanto podem ser escritor e besta mitológica, próximos como personagem e autor que se faz também personagem de si mesmo, irmanados pela escritura a ponto de se converterem em potenciais metáforas um do outro.
Retomando o poema:

É aí que eu quero reencontrar-me de ter deixado
a vida pelo mundo em pedaços repartida, como dizia
aquele pobre diabo que o Minotauro não leu, porque,
como toda a gente, não sabe português.
Também eu não sei grego, segundo as mais seguras informações.
Conversaremos em volapuque, já
que nenhum de nós o sabe. O Minotauro
não falava grego, não era grego, viveu antes da Grécia,
de toda esta merda douta que nos cobre há séculos,
cagada pelos nossos escravos, ou por nós quando somos
os escravos de outros. Ao café,
diremos um ao outro as nossas mágoas.
(Sena 1989, 74)

Depois de haver declarado já na primeira estrofe do poema: “Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria / de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações /nasci.”, o poeta decide abrir mão dessa língua recebida “por acaso”, em nome de uma nova língua que, por não pertencer a ninguém, pode permitir uma comunicação absolutamente nova, livre da carga “de toda esta merda douta que nos cobre há séculos, /cagada pelos nossos escravos, ou por nós quando somos / os escravos de outros.” Em volapuque [3], idioma perfeito porque perfeitamente ignorado, toda a liberdade é possível, sem heranças e sem restrições pré-estabelecidas, sem conceitos ou signos arbitrários – a língua ideal, portanto, para alguém que deseja uma “vida reclusa em poesia”.

Contudo, se a pátria é “a língua em que por acaso de gerações nasci”, segundo alguém que afirma “eu sou eu mesmo a minha pátria”, num exercício de lógica talvez excessivamente racional teríamos uma declaração de identidade fundamentada nessa língua herdada ao acaso: “eu sou eu mesmo a minha língua, em que por acaso de gerações nasci”. Nesse caso, a adoção de uma nova língua significaria uma ruptura com a identidade imposta pelo nascimento, que acaba ficando numa esfera hipotética uma vez que o encontro com o Minotauro em Creta é um plano de aposentadoria que não chegaria a se concretizar.

No entanto, se para o poeta a distância com relação ao “acaso de gerações” que lhe dera origem seria sempre apenas geográfica e talvez emocional, a geração seguinte não segue a mesma trilha, como registra um pai algo magoado, algo perversamente satisfeito, em “Noções de Lingüística”:

Ouço os meus filhos a falar inglês
entre eles. Não os mais pequenos só
mas os maiores também e conversando
com os mais pequenos. Não nasceram cá,
todos cresceram tendo nos ouvidos
o português. Mas em inglês conversam,
não apenas serão americanos: dissolveram-se,
dissolvem-se num mar que não é deles.
Venham falar-me dos mistérios da poesia,
das tradições de uma linguagem, de uma raça,
daquilo que se não diz com menos que a experiência
de um povo e de uma língua. Bestas.
As línguas, que duram séculos e mesmo sobrevivem
esquecidas noutras, morrem todos os dias
na gaguez daqueles que as herdaram:
e são tão imortais que meia dúzia de anos
as suprime da boca dissolvida
ao peso de outra raça, outra cultura.
Tão metafísicas, tão intraduzíveis,
que se derretem assim, nã
o nos altos céus,
mas na caca quotidiana de outras. (Sena 1989, p.145)

A língua que seria a dos filhos dissolve-se “num mar que não é deles”. A do pai, entretanto, será diluída no mar que lhe pertence não por herança mas por criação: um mar feito de poesia, onde a língua que possivelmente caminharia a passos mais ou menos largos para a morte se vê cristalizada numa forma de representação viva e com grandes chances de sobrevivência. Escrita, a língua deixa de ser herança casual e ganha estatuto de manifestação artística. Obrigando-a a dizer o que de outro modo talvez jamais dissesse, transformando a língua em poesia, o poeta outorga-lhe uma permanência menos efêmera, num exercício de manutenção de idioma e identidade mais eficaz, em cada poema, do que a perpetuação da espécie em ínclitas gerações de altos infantes educados no idioma de seus avós.

Um tanto em Português, um tanto em Volapuque, Jorge de Sena constrói para si um idioma poético, de que é feita sua pátria-discurso e sua vida reclusa em poesia, fazendo, portanto, com que cada exercício de escrita seja um jogo autobiográfico, o que se torna ainda mais evidente quando há no processo de criação uma intenção metalingüística. Pensar a própria escrita, para alguém que escreve a própria vida (seja como mimese do real ou como invenção de reais possíveis), é pensar a si mesmo.

Tomemos por exemplo a gênese do escritor em “La cathédrale engloutie, de Debussy”:

Creio que nunca perdoarei o que me fez esta música.
Eu nada sabia de poesia, de literatura, e o piano
era, para mim, sem distinção entre a Viúva Alegre e Mozart,
o grande futuro paralelo a tudo o que eu seria
para satisfação dos meus parentes todos. (…)

Um dia, no rádio Pilot da minha Avó, ouvi
uma série de acordes aquáticos, que os pedais faziam pensativos,
mas cujas dissonâncias eram a imagem tremulante
daquelas fendas ténues que na vida,
na minha e na dos outros, ou havia ou faltavam.
Foi como se as águas se me abrissem para ouvir os sinos,
os cânticos, e o eco das abóbadas, e ver as altas torres
sobre que as ondas glaucas se espumavam tranquilas.
Nas naves povoadas de limos e de anémonas, vi que perpassavam
almas penadas como as do Marão e que eu temia
em todos os estalidos e cantos escuros da casa.

(…)

Submersa catedral inacessível! Como perdoarei
aquele momento em que do rádio vieste,
solene e vaga e grave, de sob as águas que
marinhas me seriam meu destino perdido?
É desta imprecisão que eu tenho ódio:
nunca mais pude ser eu mesmo – esse homem parvo
que, nascido do jovem tiranizado e triste,
viveria tranquilamente arreliado até à morte.
Passei a ser esta soma teimosa do que não existe:
exigência, anseio, dúvida, e gosto
de impor aos outros a visão profunda,
não a visão que eles fingem,
mas a visão que recusam:
esse lixo do mundo e papéis velhos
que sai dum jarrão exótico que a criada partiu,
como a catedral se irisa em acordes que ficam
na memória das coisas como um livro infantil
de lendas de outras terras que não são a minha.

Os acordes perpassam cristalinos sob um fundo surdo
que docemente ecoa. Música literata e fascinante,
nojenta do que por ela em mim se fez poesia,
esta desgraça impotente de actuar no mundo,
e que só sabe negar-se e constranger-me a ser
o que luta no vácuo de si mesmo e dos outros.

(…) (Sena 1988, p.165)

A lenda da catedral de Ys ecoando por toda a Europa há séculos deixa de ser importante; a música de Debussy já não a representa apenas. Música e lenda ganham no poema um novo significado, um novo caráter mítico na responsabilidade pelo nascimento poético de Jorge de Sena. Na autobiografia poética seniana, os sons impressionistas de uma “submersa catedral inatingível” dão novo significado à literatura e, portanto, à língua, fazendo emergir uma nova visão de mundo que, uma vez à tona, deliberadamente se lança às frestas, ao vazio, ao “vácuo de si mesmo e dos outros”, inundando de poesia todo o espaço anteriormente ocupado pelo silêncio e pela negação.

Anos mais tarde, numa espécie de balanço da vida poética iniciada em tal afogamento, escreveria o poeta:

Quando penso que há mais de trinta anos que publico poemas
e há trinta e seis que escrevo desta vida,
à minha volta há mais de mais vazios
de amigos mortos, poetas que estimei
(horror de folhear um livro de moradas)
ou quem mal conheci e às vezes via,
pergunto-me a mim mesmo se outros mais felizes
terão vazio a vida assim como eu.
Creio que não. A deles se reduz,
encolhe de miséria consentida,
e torna-se uma sala de visitas onde
recebem dia e noite os seus amigos novos.
Mas quem de liberdade e lealdade,
como de amor humano se viveu,
fica num espaço cada vez mais vasto
onde os vivos que traíram e os mortos que morreram
tremem de ser lembrados com saudade ardente.
E o espaço fica – ah fica – e ninguém ousa
mais que espreitar a medo para dentro dele
pelas grades de um verso em que palpita a vida,
tão pura e tão ausente como quando um dia
primeiro ela vibrou num cheiro a maresia,
ascendendo das águas, luminosa,
num corpo ainda escamoso cuja pele
seria este saber de espaço e de ternura
em solidão perfeita descobrindo o amor.
(Sena 1989, p.221)

O espaço deixado pelos “vivos que traíram e os mortos que morreram”(e, como a construção indica, trair é tão natural para os vivos como morrer o é para os mortos) equivale ao que no poema anterior era chamado de “lixo do mundo e papéis velhos / que sai dum jarrão exótico que a criada partiu”, o “vácuo de si mesmo e dos outros”, a visão recusada, a que só seria possível através das “fendas tênues” representadas pelas dissonâncias da música de Debussy, substituídas aqui pelas “grades de um verso em que palpita a vida / tão pura e tão ausente como quando um dia / primeiro ela vibrou num cheiro a maresia, / ascendendo das águas, luminosa, /num corpo ainda escamoso cuja pele / seria este saber de espaço e de ternura / em solidão perfeita descobrindo o amor”. Resta saber apenas se esta vida de que fala o poeta é a dos organismos oriundos da água habitando a terra no princípio dos tempos ou a que surge quando da sonora aparição da catedral de Ys, “solene e vaga e grave”, “ascendendo das águas, luminosa” – a vida reclusa em poesia, “este saber de espaço e de ternura / em solidão perfeita descobrindo o amor”.

Qualquer que seja a forma de vida em questão, a única certeza atestada pela autobiografia é a de que a investigação de suas origens irá sujar o dedo do poeta e do Minotauro, o dedo que usarão para mexer o açúcar de sua bebida sem língua, sem pátria, e com toda a liberdade. Na conclusão que deveria ter sido a única possível para quem escreveu em verso todo o discurso de seus anos (e que talvez seja mesmo o destino além-túmulo de todas as bestas mitológicas), fica o desejo de quem, espreitando “pelas grades de um verso em que palpita a vida”, porventura ouse querer também para si tal desfecho, quando livre até da poesia, além de toda linguagem:

Em Creta, com o Minotauro,
sem versos e sem vida,
sem pátrias e sem espírito,
sem nada, nem ninguém,
que não o dedo sujo,
hei-de tomar em paz o meu café.
(Sena 1989, p.75)

 

 

1. Utilizo aqui, para falar de Jorge de Sena, a mesma epígrafe que este usara para falar de Camões, citação que tomo de empréstimo a seu “Super flumina Babylonis”. Originalmente a frase pertence a Latino Coelho, 1880, Luis de Camões, Lisboa: s.e.
2. Coletânea que reúne, à exceção dos poemas inéditos posteriormente publicados em Quarenta anos de servidão, a porção final da obra poética de Jorge de Sena, incluindo os livros Peregrinatio ad loca infecta, Exorcismos, Conheço o sal… e outros poemas, o poema “Camões na Ilha de Moçambique” e a seqüência Sobre esta praia…
3. Talvez o “volapuque” seja a língua em que Sena escreve seus “Sonetos a Afrodite Anadiómena”, grupo de poemas que encerra, à guisa de apêndice, o volume das Metamorfoses e no qual o poeta, declaradamente, tenta romper com a lógica habitual de significação em busca de uma linguagem não arbitrária mas orgânica, que poderia ser a música, ou mesmo o silêncio.