Um baixo contínuo para Jorge de Sena*

Com um pé na música e outro na literatura, Luca Argel revisita o livro Arte de Música, detendo-se particularmente no poema “Bach: Variações Goldberg”,  convocando ainda outros poetas ao diálogo com Jorge de Sena. 

talvez tudo fosse diferente
se o mundo tivesse começado tão bem
como as variações Goldberg

Manuel de Freitas [1]

 

001  [apresentação do tema]

 

I

Primeiro ele diz que falar de música é algo como descrever um quadro que nunca se viu. Que não há como falar da música sem torná-la menos do que o que ela é. Que música ouve-se, e depois mais nada – ou melhor, depois o silêncio. Porém, ele também diz que nenhum silêncio consegue durar mais que alguns minutos, e isso apenas se a memória da música permitir – e ela não permite – que haja esse silêncio. Em última análise, a própria possibilidade do silêncio só existe, ele diz, enquanto prenúncio de música.

 

II

Em estudos de análise harmônica, qualquer pausa numa das vozes equivale ao prolongamento da última nota tocada.

 

III

No final dos anos quarenta, em busca da experiência de ouvir o silêncio absoluto, John Cage entrou na câmara anecoica da Universidade de Harvard. Lá dentro descobriu que o silêncio, enquanto ausência de som, não existe. Que o silêncio não é objetivamente um fenômeno acústico, mas um estado da mente [2]

 

IV

Inversamente, a física nos diz que a onda sonora é composta pela alternância cíclica velocíssima entre a presença e a ausência de um sinal. Qualquer som, portanto, está permeado de silêncios [3]

 

 

002[cadência suspensiva]

 

I

“Só há duas maneiras de falar nela [música]: tecnicamente, ou poeticamente.” [4] diz Jorge Sena no seu posfácio à Arte de Música. Entretanto, jamais alguém que não soubesse de música tecnicamente poderia ter escrito este livro – e é um livro de poemas.

Lançado em 1968, este livro é normalmente considerado em contiguidade com o trabalho anterior de Sena, Metamorfoses de 1964. Porém, se a motivação de Metamorfoses é a composição de poemas a partir de obras das artes visuais (num conceito ampliado, em que cabem não apenas pinturas e esculturas, mas também fotografia e dança, por exemplo), em Arte de Música, como o próprio título já explicita, estamos diante de uma série de poemas escritos em função de composições musicais, abarcando um período que compreende, cronologicamente, quase a totalidade daquilo a que chamamos História da Música Ocidental – desde a Idade Média até o século XX.

Mas se a constatação do “motivo” do livro é simples assim, e o próprio autor faz questão de deixar clara a sua intenção, indicando no título de cada poema a música (ou compositor) a que se referirá, muito mais complicada é a lógica que rege a relação entre cada poema e cada uma das músicas, ou seria melhor dizer, dos universos musicais evocados. A primeira ressalva que é preciso fazer a esse respeito, e que a generalidade dos estudiosos desta obra de Sena parecem subscrever, é que os poemas de Arte de Música não correspondem a uma tentativa de mimetizar a música, no sentido de um “espelhamento formal”. Esta incompatibilidade, ou, seria melhor dizer, “inconvertibilidade” entre os dois sistemas sígnicos (o poético e o musical) [5], é, aliás, tematizada ao longo do livro através de inúmeras reflexões acerca da natureza irredutível do território do verbal e do não-verbal.

O próprio poema que nos servirá de guia neste estudo, Bach: Variações Goldberg [6] cujo início parafraseei na primeira parte do texto, já começa denunciando essa inquietação do autor logo no primeiro verso:

 

A música é só música, eu sei.

 

II

Como, então, escrever este livro de poemas, cuja temática está aparentemente circunscrita ao universo musical, sem perder de vista a autonomia formal tanto da poesia quanto da música, especialmente reconhecendo nesta última uma “constrangedora auto-suficiência expressiva”[7]?

Sena apresentará várias alternativas, e a primeira delas é expandir o seu objeto temático (as peças musicais) para o fenômeno musical como um todo, compreendendo nele desde o contexto histórico em que as peças foram compostas, até a sua experiência pessoal enquanto ouvinte. A segunda, e não menos importante, é o tomar cada peça musical não como um tema propriamente dito, mas sim como um trampolim, uma fagulha, um motor de arranque a partir do qual colocará em movimento toda uma máquina reflexiva que, no fim das contas, o levará na direção de profundas meditações existenciais [8].

Porém, nem mesmo esse escrúpulo, fruto do profundo respeito e adoração do poeta pela arte musical, não o irá fazer refrear completamente um impulso algo descritivista que eventualmente aparece no livro. Sempre conscientemente mediada pela subjetividade do autor, a música às vezes emerge de alguns poemas de forma mais objetiva (ou “técnica”, se quisermos), através do seu léxico próprio (evocando harmonias, escalas, harpejos, modulações, instrumentações); outras vezes, de forma mais metafórica, em que figuram com curiosa recorrência a adjetivação através de oxímoros, tais como “racionais delírios”[9] “morto do amor em que flutua imerso” [10] ou o sintomático “limite ilimitado dos limites da linguagem para dizer-se o que não é dizível” [11]. Acredito que tais ocorrências tenham uma dupla leitura: são ao mesmo tempo um recurso formal e um sintoma textual que ilustra e demonstra a própria dificuldade de se escrever “poeticamente” sobre música.

 

III

Se tentarmos agora, por contraste, uma análise “técnica” da continuação do poema Bach: Variações Goldberg, iremos constatar que os 20 versos seguintes correspondem a nada menos que sete orações subordinadas adverbiais causais, uma seguida da outra, sem que cheguemos na oração principal. Durante esse longo e sinuoso passeio sintático, iremos nos deparar repetidamente com a tensão, aparentemente contraditória, entre a concepção de música como manifestação de ideias e materiais despojados de sentido, a não ser aquele inerente à sua própria estrutura interna (“cânones cada vez mais complexos que não desenvolvem um raciocínio mas o transformam de um si mesmo em si”), e ao mesmo tempo a compreensão, pois Jorge de Sena, como é sabido, teve uma educação musical relativamente aprofundada, de que a organização dos sons, em música, é trabalho agudamente intelectual e possui uma lógica racional. A reflexão sobre essa racionalidade incapaz de produzir sentido vai se manifestar, poeticamente, naquelas construções oximorónicas já referidas, e das quais estes 20 versos são um caso exemplar, onde a música é por vezes referida como a “liberdade de acasos lógicos”, cujas notas caem como “cascatas de ordem”.

E quando, como ia dizendo, após as sete orações subordinadas, o período finalmente se concluiu, o poeta indaga sobre a possibilidade da música, essa grandeza arquitetônica, se comover com os “íntimos segredos” do ser humano – pois afinal, apesar da aparência sublime (seja ela um “trompe l’oeil” ou não), a música é feita pelo homem. A pergunta, é claro, é retórica (tanto que sequer vem acompanhada de um ponto de interrogação). E retórica também é a linguagem que Sena utiliza neste e em quase todos os poemas de Arte de Música.

Ora, se está sendo possível falar sobre este poema em termos de organização sintática, e se a relativa transparência do discurso me permite inclusive parafraseá-lo, é porque estamos lidando com uma forma poética que anda muito próxima da prosa. Não quero com isto dizer que seja uma poesia fácil de “entender”, porque não é, como de resto pode-se dizer de toda a produção de Jorge de Sena, marcada por uma densidade de raciocínio que já o levou a ser acusado de “hermetismo”, ou “intelectualismo”, o que tampouco parece ser um juízo preciso. No caso específico de Arte de Música, além do habitual rigor do pensamento, o que acontece é que o poeta parece colocar em evidência muito mais o conteúdo dos poemas do que a sua forma – contrariando, ao menos em parte, a célebre resposta de Mallarmé a Degas, em que aquele diz que “a poesia não se faz com ideias, mas com palavras”.

 

IV

Contudo, cair numa aproximação imediatista com a linguagem prosaica que afaste demais da nossa leitura a questão da exploração das possibilidades formais mais marcadamente “poéticas” também não me parece adequado. Afinal, que tipo de prosaísmo, que não um de natureza poética, permitiria tamanho esgarçamento do período sintático, em cujo percurso o leitor a certa altura já não sabe mais em que parte da frase está? Que tipo de retórica admitiria tão amiúde as construções paradoxais através das quais o poeta desenvolve seu discurso?

 

 

003[cadência ao tom relativo menor]

 

I

É desconcertante a forma como Jorge de Sena, ao longo da sua trajetória como poeta, consegue dialogar com pensamentos estéticos que parecem antitéticos, e até conciliá-los, sem jamais perder nem a sua voz própria, nem a sua coerência ética [12].

Olhando em perspectiva a evolução da sua poesia, podemos ser levados, talvez, a considerar o lançamento de Metamorfoses e de Arte de Música como uma guinada na direção de uma poesia menos expressivista e experimental, e mais objetiva e discursiva, numa atitude que supostamente adiantaria uma espécie de superação de uma certa linha do ideário estético modernista/vanguardista [13] da década de 60, justamente quando ele parecia estar em alta na poesia portuguesa [14]. Não obstante, um problema que imediatamente se coloca diante dessa explicação é que, entre uma série e outra, estão os peculiaríssimos Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena [15], os quais não serão tratados neste trabalho, mas cuja própria existência nos serve de advertência: as coisas não são tão simples.

 

II

Por tudo o que já foi dito acima, e ainda com todas as ressalvas que pudéssemos fazer, o fato é que Arte de Música, que é o objeto deste ensaio, é um livro que destoa um pouco do panorama da poesia portuguesa da época do seu lançamento.

Enquanto os autores de uma geração já posterior à de Sena, e notadamente os ligados à Poesia 61, realizavam trabalhos mais marcados pelo textualismo, experimentalismo, rompimento com sintaxe e com a transparência semântica das palavras, fazendo das próprias palavras, sílabas e fonemas a matéria concreta (não só verbal, mas visual e sonora) da sua produção, o autor de Arte de Música parecia estar em outro momento criativo (de facto, Sena sequer estava em Portugal, mas auto-exilado no Brasil durante praticamente toda a década).

Mas ao contrário de dizer que Sena já realizara uma ultrapassagem do Modernismo, talvez seja melhor pensar que das duas possíveis linhas que a tradição modernista deixou abertas, uma mais “baudelaireana” (que reconhece a modernidade enquanto condição e assunto do poeta) e outra mais “mallarmeana” (ligada às vanguardas e ao experimentalismo formal) [16], em Arte de Música Sena teria seguido mais a primeira, enquanto que a segunda teria sido a dominante nos anos de 1960 em Portugal.

 

III

Sabemos hoje que essa corrente “baudelaireana” do modernismo seria, por sua vez, a predominante na década seguinte. Porém não podemos concluir daí que Jorge de Sena estivesse “à frente do seu tempo”. Não ele, que já havia declarado que “ao tempo só escapamos, com alguma dignidade, na medida em que, sem subserviência, o tornamos co-responsável dos nossos escritos” [17]. Antes, parece-me que mais uma vez desponta a capacidade do poeta de combinar, numa só obra, elementos que, talvez pelo vício de compartimentar e catalogar, costumamos considerar opostos. E é tarefa ingrata tentar catalogar Jorge de Sena.

Uma evidência disso é o fato de ser ele um poeta de referência admirado por duas figuras tão diferentes como António Ramos Rosa (um dos críticos e poetas mais importantes na configuração daquela poética dominante na década de 60) e Joaquim Manuel Magalhães (que ocupa uma posição parecida com a do primeiro, só que para a década de 70).

Enquanto este último irá elogiar em Sena a sua capacidade de “objectivar o subjectivo” através do que chamou de “expressão enquadrada”, capaz de condensar os excessos de um lirismo expressivista através de uma linguagem mais narrativa e próxima da prosa [18] o primeiro irá destacar justamente o uso dessa linguagem (que prefere chamar de “conceptual”) não como um recurso de contenção, mas antes como um exercício de liberdade (da liberdade livre), em que o próprio aparelho conceptual nos leva não a uma apreensão racional do discurso, mas à sua própria negação – ou melhor, “não à transparência definitiva da iluminação, mas a aproximação de uma evidência irredutível a que só a arte e a poesia têm acesso” [19] E a riqueza da poesia de Sena reside em que não se pode dizer que nenhuma das duas leituras está errada [20].

 

IV

 Mas voltemos às Variações Goldberg. Já dissemos que em muitos dos poemas de Arte de Música, a música mesmo só aparece de facto como uma motivação (um trampolim) para a meditação filosófica do poeta. E o assunto dessas meditações, tanto nesse poema quanto em todos os outros, passa invariavelmente pela questão da condição humana [21] e a sua efemeridade: “Quando, no fim, aquele tema torna não é para encerrar num círculo fechado uma odisseia em teclas, mas para colocar-nos ante a lucidez de que não há regresso após tanta invenção. Nem a música, nem nós, somos os mesmos já” [22] O que vê-se parece ser a analogia entre a efemeridade da própria música – uma experiência contida no tempo, e a ele limitada – e a experiência da perda. Ou ainda, em último caso, a inevitabilidade da morte. Mas não apenas a morte do sujeito enunciador, se não a morte iminente de toda uma sociedade em decadência:

 

toda a poesia […] é uma meditação moral. Sem dúvida que o não é (ou não deve sê-lo) num sentido normativo; mas indubitavelmente o é num sentido escatológico, de inquirição aflita sobre as origens e os fins últimos do Homem.[23]

 

A degradação do mundo é, de resto, um tema que irá perpassar quase todas as reflexões senianas. O compromisso ético do poeta com o seu tempo, que num poema chega a chamar de “contexto-engano” [24], não o deixam escapar desse confronto, cujo desenlace será sempre uma visão eminentemente disfórica: é a realidade enquanto o “lixo”, contra o qual a poesia é “esta desgraça impotente de actuar no mundo” [25]; e é também o lamento por não podermos “nem mesmo em momentos únicos, raríssimos, epifânicos”, compor “jubilantes cânticos de criar o Mundo” [26].

 

004[cadência conclusiva]

 

I

É este profundo, este incurável desencanto que Sena enxerga “tanto em Mozart quanto na vida” [27]

que talvez tenha primeiro chamado a minha atenção para as repercussões da sua poesia na produção contemporânea, e especificamente em Manuel de Freitas. E uma vez feita a ponte, as coincidências não cessam de aparecer, e de parecer cada vez menos “coincidências”. Em alguns casos, aliás, os dois poetas parecem estabelecer um franco diálogo: é o caso por exemplo de Terra Sem Coroa, de Manuel de Freitas, lançado em 2007, e Coroa da Terra, o segundo livro de Sena, lançado 1946. Não é absolutamente coincidência a semelhança dos títulos, e mesmo o seu conteúdo dá a impressão de que o segundo é uma melancólica resposta, mais de 60 anos depois, às esperanças neorrealistas do primeiro, escrito sob a forte impressão dos acontecimentos históricos da segunda guerra mundial.

Acredito, inclusive, que o próprio caráter circunstancial e autobiográfico da poesia de Freitas tem muito da ideia preconizada por Sena da poesia enquanto testemunho [28]. Ambos rejeitam o lado artificioso do “fingimento” poético, compreendendo a fidelidade da poesia à experiência vivida como a única postura possível capaz de reter a dignidade do sujeito e do discurso, num mundo já despojado de qualquer resquício de fantasia ou idealismo [29].

Além disso, se a poesia de Manuel de Freitas parece compartilhar da visão disfórica de Sena, esse “nojo de haver mundo” [30], a própria expressão desse ponto de vista crítico é feita de forma semelhante em ambos. No posfácio à antologia A última porta, José Miguel Silva repara como a poesia de Freitas está próxima da de Sena em seu estilo prosaico, pouco ornamentado, bem como na crítica que ambos parecem fazer a uma certa poesia portuguesa ainda presa à “inibição de não dizer nada claramente” [31]

 

II

Poderíamos refazer a trilha que liga Manuel de Freitas a Jorge de Sena, passando obrigatoriamente pela poesia dos anos 70 e por nomes como o já referido Joaquim Manuel Magalhães; poderíamos alinhar os dois como herdeiros de uma corrente modernista “baudelaireana”; poderíamos enumerar todos os pormenores que nos permitem aproximá-los e todas as características que os dois compartilham enquanto pertencentes a uma mesma “linhagem” estética da poesia portuguesa. Mas ainda que fizéssemos tudo isso, não há historiografia que dê conta de explicar um elemento comum que com tanta força os une: a paixão pela música.

É que num trabalho que trate de Arte de Música, e que traga à baila um autor como Manuel de Freitas, é incontornável falar de Jukebox, um livro, ou melhor, uma sequência de livros que parecem ser os descendentes diretos daquele.

Concebido também de forma serial, Jukebox (hoje no terceiro volume), consiste numa sequência de poemas que evocam, já desde o título, referências musicais. Não que a música não esteja presente em todos os outros livros de Freitas, mas é sintomático que o autor tenha dedicado a essa relação toda uma série de publicações – assim como fez Sena com Arte de Música. E o principal, o próprio tratamento da música enquanto fio condutor dos livros é feito de forma muito parecida pelos dois [32].

 

 III

Assim como a de Sena, a abordagem de Freitas passa longe de pretender estabelecer qualquer canal de diálogo formal com a música. Para ele, também, “pecado maior é tentar traduzir a música” [33]. E nas estratégias para evitar cometer esse pecado, me pergunto, talvez Arte de Música tenha sido de grande ajuda.

Se no livro de 1968 as obras musicais, como já vimos, são majoritariamente uma motivação para se tematizar todo um universo que circula ao redor da prática da música enquanto um fenômeno social, ou no mínimo enquanto experiência humana, os próprios títulos de Jukebox já indicam um caminho semelhante, ao não acusar jamais nenhuma música específica, mas apenas o nome do artista e o ano da performance à qual o poema se refere. Se, por um lado, isso é a confirmação de que o poeta não está interessado em análises da música enquanto abstração formal, por outro, ao indicar as datas das performances e não do lançamento dos discos, ele parece nos dizer que o seu tema é a música enquanto acontecimento testemunhado, e portanto que o único caminho possível que leva da música até a poesia é o do testemunho. O mesmo nota-se em Sena. Não tanto nos títulos de Arte de Música, mas sim nas notas explicativas ao final do livro, em que o autor fez questão de indicar a qual interpretação específica ele ouviu antes de escrever o poema, e até de narrar as circunstâncias pessoais que o levaram a conhecer ou admirar aquela peça em especial.

Afinal, a música, como qualquer arte performática, só existe enquanto houver alguém para executá-la, ou melhor, só existe enquanto houver alguém executando-a, no tempo presente. Esse caráter ao mesmo tempo efêmero e potencialmente imortal da música, que tanto parece ter fascinado os dois poetas, é o que os permite, aliás, ter contato com compositores de muitos séculos atrás – como, por exemplo, Bach.

 

IV

Se fôssemos fazer uma análise do repertório eleito por Freitas e Sena para compor seus livros, a primeira constatação talvez fosse o brutal ecletismo do primeiro com relação ao segundo [34]. Enquanto Sena cuida basicamente da música erudita, Freitas transita com assustadora desenvoltura entre variados gêneros de música popular [35], sem esquecer-se também da música erudita. Bach, insisto, parece-me um ponto de contacto interessante. Não tanto pelo declarado fascínio que a sua obra exerce sobre os dois poetas, mas pelo tipo de reflexão a que ela conduz, que em ambos é curiosamente parecida.

No final de Bach: Variações Goldberg, que vimos analisando neste texto, após o espanto de presenciar que “o virtual de um pensamento, se tornou ali uma evidência: se tornou concreto.“, Jorge de Sena transforma o sujeito do poema não mais em quem ouve, “mas quem é” – transforma-o, por assim dizer, em música – ao menos durante o breve momento de audição da música. Mas esta transformação, mais do que apontar para a possibilidade de uma fuga transcendental, parece apontar para o lado oposto, para o contraste entre a totalidade sublime da música e a incompletude deficiente do mundo:

 

Quando, ao cabo dessa percepção (e do poema), o poeta questiona: “Será que alguma vez, senão aqui,/ aconteceu tamanha suspensão da realidade a ponto/ de real e virtual serem idênticos […]?” (v. 55-57), está ele sobretudo mostrando enxergar, por contraste, que fora desse “aqui”, fora da experiência e do tempo musical, talvez não haja nem essência, nem existência, nem preenchimento significativo do mundo, muito menos “triunfo” da vida humana. O real se insinua, no fundo da vidência musical, como um espaço assustadoramente virtual, que é dizer: vazio e distópico. [36]

 

E não seria isso, afinal, o que Manuel de Freitas está dizendo quando escreve versos como os de BWV 988 [37]: “talvez tudo fosse diferente se o mundo tivesse começado tão bem como as variações Goldberg”? E será que ele não diz isso justamente por saber que as Variações Goldberg terminam rigorosamente com as mesmas notas que começam, e que portanto, levando adiante o paralelismo, não haveria mesmo hipótese desse mundo acabar bem?

“Volto a dizer BWV 988 – e não há palavras que cheguem ” [38]. Mas o que fazer então? Calar-se? Não. Se a própria possibilidade do silêncio só existe, sabemos, enquanto prenúncio de mais música.

 


REFERÊNCIAS:

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MAFFEI, Luís. “A impura máquina de música de Manuel de Freitas – uma resenha a Jukebox 2“, Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF, Vol. 2, n.˚ 2, Abril de 2009, Niterói, UFF, 2009, http://www.uff.br/revistaabril/revista-02/014_luis%20maffei.pdf, visto em 14/01/14.

MAGAHÃES, Joaquim Manuel. Os Dois Crepúsculos: sobre poesia portuguesa actual e outras crónicas, Lisboa, A Regra do Jogo, 1981.

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SENA, Jorge de. Poesia I, Lisboa, Edições 70, 1988.

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VASCONCELOS, Vasco André Ribeiro de. Música, fatalmente – Referências musicais na poesia de Manuel de Freitas, Dissertação de Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes, ramo de Literatura Portuguesa, Faculdade de Letras, Universidade do Porto, 2010.

WISNIK, José Miguel. O Som e o Sentido, São Paulo, Companhia das Letras, 1989.

 

NOTAS:

[1] Manuel de Freitas, “BWV 988″, [SIC], Lisboa, Assírio & Alvim, 2002, p. 67.

[2] John Cage, Silence, Middletown, Wesleyan University Press, 1961, pp. 13-14.

[3] José Miguel Wisnik, O Som e o Sentido, São Paulo, Companhia das Letras, 1989, pp. 17-19.

[4] Jorge de Sena, Poesia II, Lisboa, Edições 70, 1988, p. 208.

[5] Teresa Isabel de Oliveira Figueiredo Tomás Ferreira, A Transfiguração Poética em Arte de Música de Jorge de Sena, Dissertação de Mestrado em Estudos Portugueses e Brasileiros, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2002, pp. 8-9.

[6] Jorge de Sena, op. cit., pp. 170-171.

[7] Sebastião Edson Macedo, “Uma ética da existência em Arte de Música, de Jorge de Sena”, Revista Abril, n.˚ 5, Niterói, UFF, 2005, http://www.uff.br/revistaabril/revista-05/009_sebastiao%20macedo.pdf, visto em 14/01/13.

[8] Cf. Teresa Isabel de Oliveira Figueiredo Tomás Ferreira, op. cit. Nesta dissertação a autora elabora uma exaustiva tipificação das diferentes abordagens de Jorge de Sena frente às peças musicais.

[9] Jorge de Sena, “Prelúdios e Fugas de J. S. Bach para Órgão”, op. cit., p. 167.

[10] Idem, “Concerto em Ré Menor, para piano e orquestra, de Mozart, K466″, p. 176.

[11] Idem, “Ouvindo o Quarteto op. 131 de Beethoven”, p. 181.

[12] “Extremamente vigilante e abandonada, hipersubjectiva e não raras vezes cruamente objectiva, barroca, obscura, convulsiva, áspera, pomposa, prosaica, clássica, artificiosa, fina, violenta, sensual, intelectualizante, «engagée» e «degagé», etc., etc. – quanto mais poderíamos dizer sobre uma palavra poética que tudo isso é ao mesmo tempo ou sucessivamente, sem alcançar a tranquilidade de um síntese, porventura desejável, mas que fatalmente havia de trair a própria complexidade e as por ora ou sempre insolúveis contradições de que ela vive (…)”. António Ramos Rosa, “Jorge de Sena Poeta”, in Eugénio Lisboa (org.), Estudos sobre Jorge de Sena, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, pp. 136-137.

[13] Jorge Fazenda Lourenço, O Essencial sobre Jorge de Sena, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987, p. 37.

[14] Rosa Maria Martelo, Vidro do Mesmo Vidro – tensões e deslocamentos na poesia portuguesa depois de 1961, Porto, Campo das Letras, 2007.

[15]  Jorge de Sena, op. cit., p. 145.

[16] Cf. Rosa Maria Martelo, op. cit.

[17] Jorge de Sena, “Prefácio à 1ª edição de Poesia I”, Poesia I, Lisboa, Edições 70, 1988, p. 27.

[18] Joaquim Manuel Magalhães, “Jorge de Sena”, Os Dois Crepúsculos: sobre poesia portuguesa actual e outras crónicas, Lisboa, A Regra do Jogo, 1981, pp. 49-62.

[19] António Ramos Rosa, op. cit., p. 135. Nesta passagem, Rosa parece estar referindo-se a algo bem próximo daquilo a que Novalis chamou o «real absoluto».

[20] Para um aprofundamento sobre a questão da discursividade em Sena, em que são evocadas e aprofundadas as opiniões tanto de Ramos Rosa quando de Joaquim Manuel Magalhães, ver: Luis Adriano Carlos, “Discursivismo e hermetismo”, Fenomenologia do Discurso Poético: ensaio sobre Jorge de Sena, Porto, Campo das Letras, 1999, pp. 249-269.

[21] Sebastião Edson Macedo, op. cit.

[22] Jorge de Sena, “Bach: Variações Goldberg”, Poesia II, Lisboa, Edições 70, 1988, pp. 170-171.

[23] Idem, p. 162.

[24] Idem, “Mozart: Andante do Trio K 496″, p. 177.

[25] Idem,”«La Cathédrale Engloutie», de Debussy”, p. 165.

[26] Idem, “A Criação de Haydn”, p. 175.

[27] Idem, “Mozart: Andante do Trio K 496″, p. 177.

[28] Jorge de Sena, “Prefácio à 1ª edição de Poesia I”, Poesia I, Lisboa, Edições 70, 1988.

[29] Vale observar que acredito que essa aproximação existe, mas não que ela seja plenamente realizada por Manuel de Freitas. Enquanto oposição ao recurso do “fingimento”, que teria uma finalidade educativa, o “testemunho”, para Sena, tem uma finalidade explícita de “transformação” do mundo, ou de “chamamento” (Cf. Sebastão Edson Macedo, op. cit.) para esta transformação. Parece-me que a poesia de Freitas, mais cética e pessimista, não chega a tanto.

[30] Manuel de Freitas, “Andreas Scholl, 2002″, Jukebox, Vila Real, Teatro de Vila Real, 2005, p. 10.

[31] José Miguel Silva, “Posfácio”, A Última Porta (Antologia), Lisboa, Assírio & Alvim, 2010, p. 156.

[32] Discordo, portanto, da leitura de Luis Maffei em sua recensão crítica a Jukebox 2, onde o ensaísta afirma que o livro de Freitas “não se trata de uma espécie de Arte de música, pois os poemas de Jorge de Sena estampam, além de vastíssimo conhecimento musical, uma gama de entendimento da música que não deixa de passar pela ecfrasis.” (Luís Maffei, “A impura máquina de música de Manuel de Freitas – uma resenha a Jukebox 2“, Revista do Núcleo de Estudos deLiteratura Portuguesa e Africana da UFF, Vol. 2, n.˚ 2, Abril de 2009). Acredito que o “vastíssimo conhecimento musical” de Sena não é superior ao de Freitas – é apenas de uma outra ordem. O conhecimento “técnico” que Sena possui de teoria musical não me parece ser uma “estampa” em seu livro. Muito pelo contrário, o vejo mais como um “pano de fundo”, elemento de base, parte integrante do próprio lugar de onde o poeta fala, uma vez que ele não poderia (e nem deseja) esconder o facto de ter tido uma educação musical formal na juventude. Se esse conhecimento emerge, eventualmente, ao longo do livro, isso ocorre com a naturalidade de quem está a caminhar por terrenos conhecidos (música e poesia), e não como alguém que está a usar deliberadamente seus conhecimentos na tentativa de uma transposição intersemiótica entre eles – o que, aí sim, caracterizaria a ecfrasis.

[33] Manuel de Freitas, Büchlein für Johann Sebastian Bach, Lisboa, Assírio & Alvim, 2003, p. 7. Em tempo: “Eis-nos num lugar paradoxal, onde a poesia diz que não pode dizer a música, e contudo exige que a música seja intensamente. Mas se a música é necessária e inapresentável, o poema deve existir no diferimento de si mesmo; e contudo, movido pela força da perseguição.” (Pedro Eiras, “«Meu deus de brincar somente…» – Bach na poesia de Manuel de Freitas”, Cadernos de Literatura Comparada no 17 – Poesia e Outras Artes: do Modernismo à Contemponaneidade, Dezembro de 2007, Porto, Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa da Fauldade de Letras da Universidade do Porto, pp. 3-4.)

[34] Postura justificada por Jorge de Sena no posfácio a Arte de Música, de forma um bocado arrogante, como de resto o próprio Freitas assinala em um de seus ensaios. (Manuel de Freitas, “Da citação como uma das Belas Artes – sobre Irene ou o contrato social, de Maria Velho da Costa”, Pedacinhos de Ossos, Lisboa, Averno, 2012, p. 78)

[35] Com a predominância de alguns, como o fado, o punk industrial, o tango e o blues. (Cf. Vasco André Ribeiro de Vasconcelos, Música, fatalmente – Referências musicais na poesia de Manuel de Freitas, Dissertação de Mestrado em Estudos Literários, Culturais e Interartes, ramo de Literatura Portuguesa, Faculdade de Letras, Universidade do Porto, 2010)

[36] Sebastião Edson Macedo, op. cit.

[37] Este título remete ao código correspondente às Variações Goldberg no catálogo da obra de Bach.

[38] Manuel de Freitas, Büchlein für Johann Sebastian Bach, Lisboa, Assírio & Alvim, 2003, p. 9.

 

[*] Texto originalmente publicado na revista eletrônica Esc:ala nº2.
[**] Luca Argel é licenciado em Música, pela UNIRIO, foi professor de música na Rede Municipal do Rio de Janeiro, e atualmente cursa o Mestrado em Literatura de Expressão Portuguesa na Universidade do Porto.