Portugal na poesia satírica de Jorge de Sena

O ensaio focaliza um veio de grande importância na poesia seniana: o de “esconjurar poeticamente os absurdos dos vícios de Portugal e do ser humano”

 

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A geração dos Cadernos de Poesia (1940-1953) vem devolver à sátira a desenvoltura temática e estilística de que ela não pode prescindir para uma representação verdadeiramente fecunda do humano e do social. Lembremos que a repressão e a censura política interferem na sátira da geração tipicamente neo-realista e na das gerações de 60 e 70 que a continuam. O elemento antropológico do agir satírico é nesta poesia assistido por uma vontade muito aguda de atuação axiológica; mas a sátira vem a ser apenas voz discreta de um eu oprimido que acusa em nome de um coletivo explorado e sem dicção. Por isso, a atividade satírica neo-realista é em grande parte sinalizada e cumprida por palavras – “raiva”, “revolta”, “ira”, “ódio” ou “vingança” – que substituem o que na sátira se expressa em perífrases, enumerações, paráfrases e tautologias.

A renovação concretizada pelos poetas dos Cadernos de Poesia tem subjacente uma ideia de responsabilidade testemunhal, ética e artística que recupera a intervenção da Geração de 70. Jorge de Sena (Lisboa, 1919 – Santa Bárbara, Califórnia, 1978) é o nome mais destacado desta tendência. O autor de 40 Anos de Servidão, que em 1959 se exila no Brasil, onde vive até 1965,denuncia numa linguagem das mais ricas da poesia satírica em língua portuguesa, envolvendo um sentido marcadamente intelectual da criação que investe na diversificação de procedimentos técnico-estilísticos. A sua estirpe satírica é a que Lucílio formalizou, a partir do modelo da comédia antiga grega, e Juvenal aperfeiçoou. O poeta português tem em comum com esses autores características temperamentais, éticas, de formação e estéticas: indignação, sinceridade, propriedade das críticas, sólida cultura, versatilidade mental e estilística.

Esconjurar poeticamente os absurdos dos vícios de Portugal e do ser humano: eis a função mais imediata de um intimismo que, semelhante ao de outros poetas no conteúdo, se distingue deles pela ausência explícita do lúdico, do gozo explosivo próprio da aliança entre a ironia e o humor, pelo menos nas sátiras mais caracteristicamente senianas. No processo emotivo e intelectual que o anima contra a “estupidez humana que imortais nos faz” (SENA, 1982, p. 144), o sujeito renuncia deliberadamente à poética do riso, preferindo a severidade que expõe os vícios do humano e do social. Não é por acaso que os abundantes e incisivos metatextos senianos acentuam a opinião de que a poesia “para possuir aquela eficiência que lhe desejamos, para afinal ser poesia, necessita de uma veemência, de uma paixão, de uma força convocatória das mais primárias volições do homem” (SENA, 1984, p. 34).

Quando emerge do gosto da agressão virulenta e escandalosa, às vezes radicada no obsceno mais convencional, o comprazimento no lúdico que ri abertamente ou que pretende despertar o riso é incontestavelmente controlado; é o caso de “Ah filhos da puta”, que surge duas vezes no epigramático “Rimam e desrimam” (SENA, 1982, p. 106). A voracidade com que o eu, que procura a verdade, enfrenta os referentes que urge destruir e/ou reformar só episodicamente ou tangencialmente se detém em períodos de relativa pausa ou amenidade. Essa pacificação é própria da poética do humor, mas a idiossincrasia de Jorge de Sena limita a sua ação.

Na poética seniana, o objeto satirizado é sujeito a uma presentificação intensificada. Através desse efeito de materialização, o conceptual aparece-nos de um modo essencialmente concreto, o que, em parte, pode ler-se dentro de uma lei da enunciação poética (e não só) que Jorge de Sena prescreve em termos que recusam o ordenamento exterior a que, para certos escritores, a obra responde passivamente:

 

A linguagem vulgar, quando empregada literariamente, não é mais ou menos vulgar, conforme a percentagem de palavras especializadas ou difíceis. Um escritor pode ter um “rico estilo”, e ser de uma vulgaridade flagrante; enquanto outro, com palavras quase todas comuns, pode exprimir muitas ocultas verdades (SENA, 1949, p. 62).

 

Num trabalho sobre a linguagem com intensidade humana inserida na coletividade, um poema como “A Portugal” é um processo implacável de devoração do outro: um país e um mito, um país-mito, conceito que o eco intertextual camoniano do primeiro verso logo evidencia. É um ritual flagelador e catártico que fascina e repugna pelas tonalidades intensas do grotesco e do abjeto (os grandes operadores satíricos de Jorge de Sena).

O discursivismo dialético da primeira estrofe – “Esta é a ditosa pátria minha amada. Não./ Nem é ditosa, porque o não merece./ Nem minha amada, porque é só madrasta./ Nem pátria minha, porque eu não mereço/ a pouca sorte de nascido nela” (SENA, 1982, p. 89) – parece anunciar uma enunciação especulativa sem a violência do calão mais desbocado; mas o poema constrói-se afinal numa alternância de dois grandes movimentos de sentido interdependentes: um movimento de negação mais pacífica que preserva um certo distanciamento do sujeito, constituído pela primeira ou pelas duas primeiras estrofes e retomado no último verso (“Eu te pertenço: mas ser’s minha, não”); e um outro, correspondente aos demais andamentos, de negação ligada a uma fúria extremada, pela qual se processa o fluxo de ideias e palavras entre o plano mental e o da dicção.

A sucessão final, nos três versos que antecedem o verso-chave já citado, de nomes predicativos do sujeito, enfaticamente articulados, no terceiro, pelo polissíndeto (“eu te pertenço. És cabra, és badalhoca,/ és mais que cachorra pelo cio,/ és peste e fome e guerra e dor de coração” (SENA, 1982, p. 90)), sintetiza, num tom bélico muito mais concentrado, a sordidez, delineada no núcleo central, de um país de gente vil, apática, medíocre, ignorante, supersticiosa, coprófila:

 

Torpe dejecto de romano império;
babugem de invasões; salsugem porca
de esgoto atlântico; irrisória face
de lama, de cobiça, e de vileza,
de mesquinhez, de fátua ignorância;
terra de escravos, cu prò ar ouvindo
ranger no nevoeiro a nau do Encoberto;
terra de funcionários e de prostitutas,
devotos todos do milagre, castos
nas horas vagas de doença oculta;
terra de heróis a peso de ouro e sangue,
e santos com balcão de secos e molhados
no fundo da virtude; terra triste
à luz do sol caiada, arrebicada, pulha,
cheia de afáveis para os estrangeiros
que deixam moedas e transportam pulgas,
oh pulgas lusitanas, pela Europa;
terra de monumentos em que o povo
assina a merda o seu anonimato;
terra-museu em que se vive ainda,
com porcos pela rua, em casas celtiberas;
terra de poetas tão sentimentais
que o cheiro de um sovaco os põe em transe;
terra de pedras esburgadas, secas
como esses sentimentos de oito séculos
de roubos e patrões, barões ou condes;
ó terra de ninguém, ninguém, ninguém

(SENA, 1982, p. 89-90).

Com uma matéria lexical por vezes bem mais acre, ofensiva, “A Portugal” é um poema que adota uma matriz semelhante à de Alexandre O’Neill. A obsessão pela isotopia do excrementício aproxima-os (o “arroto” é, neste campo, um termo da predileção de Jorge de Sena); mas da sátira de Sena não se desliga a expressão de um pathos que o sujeito confessa lapidarmente (…“dor de coração./ Eu te pertenço”…), e que em O’Neill, regra geral, se torna menos pungente através da (relativa) jovialidade, dos prazeres do humor; um humor que, em Sena, mal se adivinha já está transformado em asco devastador sem indulto aparente, em inteligência emotiva que só se reconhece na descarga verbal e imaginativa mais enérgica, severa e drástica, sempre a caminho de um novo ponto de explosão, como no sacudido anti-neo-realista “Deixem-se de fingir…”:

 

Deixem-se de fingir de heróis da esquerda,
com bancos e bancas de advogado, redacções,
editoriais, automóvel, bolsas e cátedras,
quintas herdadas, páginas literárias.
Deixem-se de uivar em defesa de ismos
que nenhum vos pertence ou a que pertenceis
a não ser para dançar a dança desnalgada
dos que não têm vergonha do povo português.
O único ismo em consonância com os arrotos
de bem comidos, e os rosnidos de instalados
naquilo que criticam disfarçando-se,
é o relismo – de reles. Nada mais

(SENA, 1982, p. 130).

 

A sátira de Jorge de Sena procura a união entre a significação e a forma, a individualidade do sujeito e a sua exteriorização concreta; e recusa o estado de conciliação tensa entre a interioridade do poeta e o poema à maneira dos satíricos clássicos e humanistas. Não é impunemente que, nele, a (sua) realidade é representada em todo o seu absurdo, como se se destruísse a si mesma. Através desta autoanulação, pretende-se revelar a verdade como uma potência sólida e constante, e denunciar a insensatez e a irracionalidade de tudo o que se opõe diretamente ao que é verdadeiro em si.

A atualidade dos poemas satíricos senianos permanece incontestável, apesar de toda a circunstancialidade que possa ter determinado o seu aparecimento. Da aversão de Jorge de Sena a qualquer poder totalitário, da indignação radical de um espírito inquieto e atento à infinita estupidez humana – como Camões, que é uma das suas mais marcantes referências –, resulta uma poesia satírica marcada por uma total contemporaneidade, uma poesia do aqui e agora. O poeta, que perante os múltiplos matizes da malignidade do ser humano nos diz que “fervo de raiva” (SENA, 1988c, p. 7), quer fazer da circunstância um documento literário, um modo de ser poético.

Jorge de Sena é o poeta da sinceridade. Para ele, a mais pontual das conjunturas vale tanto por si mesma que a existência de variantes diacrônicas de um mesmo texto se torna impensável na sua ideia de criação e de visão do mundo. O poeta é experiência em devir e constrói-se na experiência do poema, que reflete a sua autenticidade e verdade: uma verdade, insiste Jorge de Sena nos escritos sobre a sua própria poesia e poética, que “está para lá da atividade estética” (SENA, 1988a, p. 27). O fingimento (o poeta é um fingidor), mesmo sendo “a mais alta forma de educação, de libertação e esclarecimento do espírito” (SENA, 1988a, p. 26), não pode anteceder o voluntarismo do testemunho e do envolvimento histórico.

Jorge de Sena reconhece-se corresponsável, e sem máscaras, sem se outrar, pelo seu tempo e pelo seu espaço de peregrinação. Tal compromisso, reagindo contra a sentimentalidade poética dolentemente solipsista e lamurienta, no que se prossegue a problematização iniciada pelo Modernismo de Orpheu, tem um objetivo claro:

 

concede à poesia uma paradoxal objetividade que as fabricações da perfeição artística são incapazes de atingir, por demasiado dependentes do gosto, quando o testemunho vale pela refletida espontaneidade que apela e apelará sempre para a comunhão de todos os inquietos, todos os insatisfeitos, todos os que exigem do mundo, para os outros a generosidade que lhes foi negada (SENA, 1988a, p. 26).

 

Ou seja: não se verifica apenas um corte com o pessoalismo romântico; supera-se também o impessoalismo modernista, na medida em que do circunstancialismo das mais insignificantes coisas da vida se transita, no poema e para além dele, para experiências de linguagem, radicadas, em última instância, nos grandes temas ou preocupações universais. O encontro do sujeito seniano com a sátira, pela qual ele se coloca corajosamente na posição de interlocutor de si e dos outros, é sempre dramático, sempre pleno de um esforço de construção firme e especulativa, de mostrar evocando e de persuadir. O que explica os ímpetos discursivos de natureza ética ou didática, mais do que moralizadora:

 

Mas, no que respeita ao elemento moralístico, acrescentemos que toda a poesia – se não é consolada ou dolorida, mas irresponsável, descrição de um aboli bibelot d’inanité sonore, que a própria poesia de Mallarmé não foi – é uma meditação moral. Sem dúvida que o não é (ou não deve sê-lo) num sentido normativo; mas indubitavelmente o é num sentido escatológico, de inquirição aflita sobre as origens e os fins últimos do Homem (SENA, 1988a, p. 157).

 

A sátira desencadeia o prazer da excitação (anímica e física) e da autoridade; e ensina a compreender o que se sente. As concessões entre a emoção pura e a emoção intelectualizada dão origem à verdade do sujeito, ao entendimento da poesia e da sátira, em particular, como processo testemunhal que nos revele, não apenas “outros mundos simultânea e idealmente possíveis”, mas, sobretudo, “outros que a nossa vontade de dignidade humana deseja convocar que o sejam de facto” (SENA, 1988a, p. 16).

Numa linha temática de intensificação de uma presença, não é por acaso que se recorre a uma imagística do concreto disfemístico, a um arrebatamento semântico que necessita de um léxico paroxístico, de expressões e sentimentos veementes, declarativos. Num texto performativo como “Exorcismo” a conexão de sensibilidades e pensamentos entre a consciência subjetiva do poeta e uma como que consciência coletiva de que ele se faz enunciador depende não de qualquer improviso desordenado, mas antes das técnicas verbais febris do exorcista:

 

Ó cães da morte, que me uivais, mordeis!
Humanos-infra, que sois morte e cães!
Va de retro, Satana, requiem aeternam
terei sem vos ouvir, nem mesmo ao chiar
de mijo nos meus ossos, quando alçardes perna.
Cães cães de cães e vossos filhos cães
que filhos cães de cães gerarão cães:
haveis de ouvir-me até depois de mortos
e cisco e lama num ranger de dentes:
e os cães de cães de vossos filhos cães
por mais que me uivem hão-de ouvir também
a voz humana que vos foi negada,
va de retro, Satana, abracadabra

(SENA, 1982, p. 124).

 

A sátira, o satírico é uma das expressões com que Jorge de Sena olha o mundo e cumpre o desejo de o transformar e de procurar um sentido da condição humana sempre revisto e adiado, sempre incômodo e incomodado. Tanto nas sátiras de lirismo social como nas de cometimento mais pessoal, a que a passagem do tempo retira o impacto referencial original mas não dissolve a dignidade da assunção das injustiças da vida, Jorge de Sena apropria-se da dimensão viva e desbragada da língua portuguesa.

O prosaísmo faz parte da poesia de Jorge de Sena, e, muito em especial, da sua sátira. Na cronologia da obra poética de Sena este elemento aparece, nas palavras de Luís Adriano Carlos, como o “contrário aparentemente imediato” do “anátema do hermetismo” (CARLOS, 1999, p. 263), que alguma crítica literária tem envolvido num debate interminável e quase sempre redutor, por não perceber que tal escrita se constitui “à vista do leitor, por vezes em movimento de suspensão”, estenograficamente (CARLOS, 1999, p. 264-265). “Lepra” é um desses memoráveis apogeus de concisão e intensidade: “A poesia tão igual a uma lepra!/ … … … … … … … … … / E os poetas na leprosaria/ vão vivendo/ uns com os outros,/ inspeccionando as chagas uns dos outros” (SENA, 1988a, p. 48).

Entretanto, onde um máximo de organização prosódico-versificatória se combina com um registro que progride geometricamente entre a mais impetuosa agressividade contra o mundo e a mais dolorosa visão do mundo como calvário é sem dúvida num dos romances de imitação tradicional da novela O Físico Prodigioso, enunciado, nesta passagem, pela multidão em fúria que assassina as personagens conotadas com o Santo Ofício:

 

Morra o bispo e morra o papa,
maila sua clerezia.
Ai rosas de leite e sangue,
que só a terra bebia!
Morram frades, morram freiras,
maila sua virgaria.
Ai rosas de leite e sangue,
que só a terra bebia!
Morra o rei e morra o conde,
maila toda fidalguia.
Ai rosas de leite e sangue,
que só a terra bebia!
Morram meirinho e carrasco,
maila má judicaria.
Ai rosas de leite e sangue,
que só a terra bebia!
Morra quem compra e quem vende,
maila toda a usuraria.
[…]
Morram pais e morram filhos,
maila toda a filharia.
[…]
Morram marido e mulher,
maila casamentaria.
[…]
Morra amigo, morra amante,
mailo amor que se perdia.
[…]
Morra tudo, minha gente,
vivam povo e rebeldia.
Ai rosas de leite e sangue,
que só a terra bebia!

(SENA, 1977, p. 75-76).

 

A disciplina fônica decorre, como se vê, do rigoroso paralelismo sintático e lexical que estrutura todo o poema; e do paralelismo no esquema rimático final, assonantado e monorrimo, em í-a, pelo qual se quebra o efeito de ductilização que as simetrias rítmicas vão criando, visto que cada dístico é uma unidade sintático-semântica constituída por 15 sílabas métricas, pelo que a transcrição dos congêneres tradicionais se realiza, hoje, num único verso. A linguagem discursiva é convocada como mise-en-abîme da contundência do grito e do corpo, como energia material de uma interioridade que da dor de pensamento e de carne faz a perseguição e a dilaceração do objeto. E o riso demoníaco, expressado no registro lírico do escárnio e do maldizer, é glorificado.

Nesse sentido, o eu satírico não denota necessariamente sentimentos de superioridade e de autoritarismo; pelo contrário, ou paralelamente, parece impor-se pela sátira uma resistência angustiada que é contraponto a um abismo cada vez mais fundo: “Mas mesmo isto não consola nada. A quantidade, a variedade/ gastaram a força dos insultos. E não se pode passar a vida,/ esta miséria que me dão e querem dar a meus filhos, a chamar nomes/ feios a sujeitos mais feios do que os nomes”. Um discurso assim é, primeiro, uma disponibilidade para lutar contra uma impotência que permanecerá excessiva, mesmo se o sujeito diz a sua ira através de um sarcasmo acerbo:

 

Como pode um homem
sequer estar vivo no meio disto, sem que o matem?
E o pior é que matam, sim, e sem saberem primeiro quem,
para não se inquietarem com o problema de terem morto por engano
um irmão, desfalcando assim a família humana de algum ornamento
que a tornava menos humana e mais puta”

(SENA, 1982, p.100).

 

Mas tal empreendimento satírico não é tão insignificante quanto se afirma: a palavra satírica, interpretando elementos existenciais adversos, constitui já uma superação e uma manifestação de liberdade purificadora.

A escassez de trabalhos consagrados à sátira seniana é um indício seguro do desconforto com que a maioria dos estudiosos da poesia de Jorge de Sena tem encarado uma das dimensões mais proeminentes do autor. Praticamente a concluir a sua recensão crítica de 40 Anos de Servidão, João Gaspar Simões avalia Jorge de Sena como “um grande poeta – sobretudo um grande poeta satírico” (SIMÕES, 1999, p. 374). Se o crítico não distinguisse sátira e lirismo dentro de uma teoria tácita dos gêneros, esta fórmula ajustar-se-ia bem a um dos universos da lírica seniana. A divisão é, contudo, marcada em termos extensivos, de modo a não haver quaisquer dúvidas: “Talvez que a posteridade venha a recordar com mais apreço o Jorge de Sena satírico que o Jorge de Sena lírico” (SIMÕES, 1999, p. 395).

A sátira é, para Jorge de Sena, substância, força e horizonte de libertação, mesmo se ela também afeta o próprio sujeito, contundido perante a certeza de que, n’O Reino da Estupidez luso-brasileira, lusófila e universal, nem o básico da verdade mais básica existe. No limite, torna-se patente a coragem de quem quer medir-se pela sátira, no que ela, como espírito e forma, tem de ingenuidade e autenticidade, mediocridade e superioridade. Sátira não recusa julgar-se a posteriori pela sátira produzida em circunstâncias, como sempre, particulares.

Essa desmistificação apostrófica e indignada do sistema, essa espécie de Cena do Ódio em múltiplas cenas mais breves, conduz-nos a uma leitura como que cinematográfica do absurdo político, social, religioso e cultural. De tal sátira, tão apaixonada e cativante, síntese em expansão da linguagem herdada e ao mesmo tempo deflagração de uma revolta em mobilidade sem fim, é preciso dizer que condiciona, em graus diversos, grande parte do que a poesia satírica contemporânea sanciona e compartilha.

Se a indignação é uma virtude, constituindo, como nota Aristóteles na Ética a Nicómaco, um justo recurso entre a indiferença e a raiva diante de um agravo sofrido ou de uma injustiça recebida (VI, p. 11), a arte de insultar, no melhor sentido da expressão, é professada por Jorge de Sena mais ou menos como nas escolas da Antiguidade se ministrava a Ética: no registo utens, quer dizer, com o uso e o exemplo, não no registro docens próprio da teorização abstrata.

A sátira e a ironia parecem partilhar, no essencial, para Jorge de Sena, da mesma zona semântica e pragmática. A sátira não é apenas como uma técnica literária que, sem caráter normativo, pretende mostrar as contradições de superestruturas que reivindicam para si uma axiologia dita para o bem de toda a comunidade; é também, no âmbito psicológico e fisiológico, uma percepção simultânea de impressões múltiplas, com uma implicação de fundo: a apreensão da transcendência do mais imanente, a libertação, contra o alheamento mundano, do livre arbítrio do eu. A ironia, como processo intelectual-emotivo e como procedimento de expressão verbal, é fundamental. Efetivamente, Jorge de Sena, exegeta da sua própria produção literária e ensaística, refere-se a uma “Ironia dupla – que às vezes é sarcástica, que às vezes assume apenas um tom de dignidade ofendida –, uma ironia que, desgostosa e desgostada, se volta sobre e contra si mesma” (SENA, 1978, p. 12).

Estas duas formas de ironia querem-se transparentes e incorruptas como a verdade; o seu ritmo é imparável e de vigilância consciente de uma proposição única: que ninguém deve ceder à comodidade de deter-se definitivamente seja no que for. As matrizes ontológicas em que se sustenta o dinamismo do discurso da sátira seniana são por isso tão diversas e ilimitadas quanto as circunstâncias da própria vida.

A desenvoltura satírica de Jorge de Sena não é episódica. O último poema de Sena, “Aviso a cardíacos e outras pessoas atacadas de semelhantes males”, de 19 de Março de 1978, é outra vertigem, a derradeira em verso, que percorre núcleos de indagação e desafio éticos como o amor, a amizade, a família, a culpa, o pecado, a condição do humano como ser para a morte (também para a morte em vida), a passagem do tempo, o bem e o mal; a, em síntese, solidão trágica do sujeito perante o conhecido e o desconhecido:

 

Se acaso um dia o raio que te parte
(enfim obedecendo às fervorosas preces
dos teus muitos amigos e inimigos),
baixa de repente gigantesco
e fulminante sobre ti, e mesmo se repete:
e não te quebra todo, e como desasado,
ou quem morto regressa à sobrevida,
tu sobrevives, resistes e persistes,
em estar vivo (ainda que à espera sempre
de novo raio que te parta em cacos) –
– tem cuidado, cuidado! Arma-te bem
não tanto contra o raio mas principalmente
contra tudo e todos. Sobretudo estes.
Ou sejam todos quantos pavoneiam
o consolo de pensar que a morte
não os tocou nem tocará jamais.
Porque não há ninguém por mais que te ame,
ou por mais que seja teu amigo (e,
com o tempo, os amigos, mais que as criaturas
fiel ou infielmente bem-amadas, gastam-se),
que te perdoe que tu não tenhas estourado,
no momento em que se soube que estouravas.

[…]

[…] Porque ninguém, ninguém,
até contraditoriamente porque te amam,
suportam que não sejas quem tu eras,
mas só a morte adiada, o que é diverso
do horror de um cancro que não se sabe
quando matará mas é criatura de respeito,
crescendo em ti como se estivesses grávido.
Assim, meu caro, com coração desfeito
sem metáfora alguma, és apenas uma
indecorosa e miserável chatice.
Portanto, irmãos humanos, se estourais,
estourai por uma vez aliviando
quem vos quer ou não quer por uma vez

(SENA, 1982, p. 223-225).

 

Como se vê, solidão entre os seres humanos e solidão cósmica; e decepção, desengano que, pela emoção feita palavra imperial de protesto e de ira, converte em voz os nossos desassossegos universais. O que em Jorge de Sena é mais tópico ou mais circunscrito a uma sátira de tipo psicossocial, distende-se, no Álvaro de Campos do poema “Se te queres matar, por que não te queres matar?”, de um “ecce homo” algo nietzschiano, preso a uma mística cristã que apenas o consagra à mentira e ao abatimento, até a um impiedoso sarcasmo dirigido torrencialmente contra o cosmos e contra a náusea de saber o ser humano habitante do cosmos:

 

Se te queres matar, por que não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria…
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?

[…]

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém…
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para os outros existires que matares-te…
Talvez peses mais durando, que deixando de durar…

A mágoa dos outros?… Tens remorso adiantado
De que te chorem?/ Descansa: pouco te chorarão…
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é coisa depois da qual nada acontece aos outros…

[…]

Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando entre as últimas notícias dos jornais da noite,
Interseccionando a pena de teres morrido com o último crime…
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas…

[…]

Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

(CAMPOS, 1988, p. 304-306)

 

O que aqui energicamente se postula é, nas palavras de Eduardo Lourenço, a “troça de animal ferido pelo absurdo puro da morte que é uma lógica divina num universo sem traço dela” (LOURENÇO, 2003, p. 169). Em Campos como em Sena, nem o homem-deus de Nietzsche comparece para matizar uma visão da existência em que se misturam a invencibilidade da morte e a pequenez da megalomania humana:

 

És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim? (CAMPOS, 1988, p. 306).

 

Depois de Gomes Leal e, em menor escala, Fernando Pessoa, ninguém praticou e simultaneamente teorizou a sátira com mais convicto provimento ético e gnosiológico do que Jorge de Sena. Mas a valorização de uma linguagem marcada pela urgência satírica encontra-se igualmente bem presente noutros poetas que reconhecem na sátira quer um modo eficiente de estruturar o pensamento, quer uma possibilidade de dar configuração e conteúdo à imaginação e ao imaginário sobre Portugal (e sobre o ser humano). É o caso de Tomaz de Figueiredo (Braga, 1902 – Lisboa, 1970), cuja poesia completa foi editada apenas em 2003. A afinidade entre a sua sátira e a de Sena é óbvia, aliás já desde o seu primeiro volume de versos, Guitarra, de 1956.

Entre os poemas “Dos cães desterrados”, de Tomaz de Figueiredo, e “Exorcismo” (1971), de Jorge de Sena, que já aqui comentámos, há uma conformidade de espírito e de processos técnico-estilísticos:

 

Cães da cidade, em traseiras
de quinze metros quadrados,
que nunca viram do céu
mais que um retalho de estrelas,
que só quando a Lua passa
pela vertical do pátio
à Lua podem ladrar…

Cães exilados que nunca,
devolvidos pelo eco,
supondo ladrar a estranhos,
ladrarão aos próprios ladros…

[…]

 Cães de Lisboa, nem cães!

(FIGUEIREDO, 2003a, p. 41-42).

 

A isotopia semântica, resultante da acumulação do lexema “cães”, usado ao longo de todo o texto em diversas modalidades de repetição, de que a mais expressiva é, no poema de Tomaz de Figueiredo, a epífora, projeta-se naturalmente na isotopia fonoprosódica: a iteração sonora é sentido, e comparticipa no elogio do despudor e do insulto (o sema depreciativo que o vocábulo “cães” comporta atravessa tempos, povos e culturas). Se notamos tal semelhança, é porque consideramos oportuno isolar aqui o terceto conclusivo do poema “O amor fatal do Belo me devora”, de Malho Rodeiro, no qual se valoriza um tipo de riso que coincide com o privilegiado pelos dois poetas: “A minha, a da Poesia estrangulada,/ tomará, ante os deuses da Nação,/ o jeito de os troçar, à gargalhada” (FIGUEIREDO, 2003b, p. 344).

O eu enunciador pratica um riso punitivo e aniquilador, delirante e possesso, provocador e agressivo; um riso sádico, mas decerto justo e, até, misantropo e anti-religioso, dirigido contra si próprio, os outros, a Providência. No limite, a sátira é um modo singular de morrer em orgulhoso e diabólico transe.

Malho Rodeiro é constituído por uma série de poemas, atos performativos radicalmente ferozes, em que não se entrevê o menor vestígio de reconciliação com o objeto expugnado. A simplicidade referencial com que este é caudalosamente enunciado vem a desintegrar a limpidez da comunicação verbal na sua instantaneidade aparente. Isso faz da maldição que é cada um destes alucinantes e febris poemas o inferno eterno onde ardem Salazar, os vãos e presunçosos burgueses, os diretores-gerais, os deputados, os ministros, os governadores; todo, enfim, um inculto país de medo, burocracia e desumanidade, aliás muitas vezes tematizado coletivamente nestes quarenta e sete sonetos, acompanhados, no fim do livro, por um poema até certo ponto herói-cómico, A Gargantónia, que decalca algumas das características formais do gênero épico:

 

Ah! Terra má de vesgas alimárias!
Ah! Terra em que o vômito dá leis!
Ah! Terra de merdosos bacharéis!
Ah! Terra vil de encasacados párias!

Ah! Terra de Assembleias salafrárias!
Ah! Terra de antropófagos cruéis!
Ah! Terra de invertidos e coronéis!
Ah! Terra torpe de osgas parietárias!

Ah! Terra de trafulhas feitos lordes!
Ah! Terra dos sem-grão que vão a Fordes!
Ah! Terra dos talentos de lascar!
Ah! Terra dos altivos excrementos!
Ah! Terra dos Albinos vinolentos!
Ah! Terra onde quem manda é o Salazar

(FIGUEIREDO, 2003b, p. 372).

 

Trata-se, a uma primeira leitura, não mais do que de apodos investidos de um sentido mais crível do que aquele que lhe atribuímos quando os usamos desgarradamente. Mas um poema construído num tal realismo exacerbado, em que cada micro-argumento atua como premissa (memorável) e concomitantemente como conclusão, é, grosso modo, uma tautologia redentora, criada por um eu satânico em ação de completa vingança expiatória; um eu mestre enciclopédico de metáforas, que, muitas vezes, no seu processo de deslocação semântica, não são menos sinédoques e metonímias, ao destacarem características de condensação ou particularização do próprio objeto (exemplifiquemos: um semema, Portugal ou Salazar, é decomposto metonimicamente num dos seus semas, às vezes de apreensão não propriamente imediata, devido à voragem do envenenamento por similaridade e quase sempre ao mesmo tempo por contiguidade que presenciamos como que em direto: “invertidos”, “coronéis”, “trafulhas”, etc.).

Linguagem poética em linguagem corrente, para que se saiba que o poeta não anistia quem lhe rouba a humanidade, a verdade, o bem, quem lhe quer impor um destino que substitua a destinação de que ele quer ser sujeito, ator e único responsável: “Mordei, mordei! Mordestes um poeta!” (FIGUEIREDO, 2003b, p. 352.

O satírico que assim organiza um derramamento textual sabe que nenhuma biografia é imune a uma consequente e intensa contaminação ficcional. Isso mesmo é o que nos diz um poema como esse, um de entre muitos igualmente intensos na imposição ao adversário de uma violência verbal e oracular com poderes de transformação-anulação do corpo que se rejeita:

 

Maldito seja, mil milhões de vezes,
cem mil milhões, esse a quem devo isto!
Que o não redima a ele o amor de Cristo,
e que a sua alma se requeime em fezes!

Que, no inferno, mais do que chineses
suplícios, de diabólicos registros,
lhe retalhem do mal os negros quistos:
seja-lhe o instante um bilião de meses.

– Demónios, espetai-o, espicaçai-o!
o maior dos tormentos, inventai-o,
dai-lho, porque ao pé dele vós sois santos.

Que ao menos ele sofra um nada, a sombra
deste sofrer que a minha alma assombra:
lume lhe seja a água dos meus prantos

(FIGUEIREDO, 2003b, p. 362).

 

Desta linhagem de poemas sobre Portugal constitui também modelo arrebatador o texto “Pax lusitanica” de Ruy Cinatti (Londres, 1915 – Lisboa, 1986), de Memória Descritiva (1970), que, de fato, nos transporta de imediato para o universo de Jorge de Sena (mas também de poetas de décadas anteriores, de um Álvaro de Campos, um Almada Negreiros ou um Mário Cesariny, de, enfim, modernistas e surrealistas): “Ora se bem me lembro bem bastava/ ter que me dar a gregos e troianos./ Mas dar-me a americanos, russos/ e chineses, arre! isso não, que bem me bastam/ os portugueses! Esses/ facínoras de pé na mão […]” (CINATTI, 1992, p. 316). Entre a sublimação da antiguidade clássica, com a sua mitologia, os seus heróis e heroínas com que alegoricamente o sujeito interage, e a renúncia dos impérios seus contemporâneos, desenha-se uma genealogia em que constam os pais mais próximos: “Verdade que há um cheiro a lusitano…/ Sou romano./ Aquilo que prometo nunca faço” (CINATTI, 1992, p. 316).

Portugal não existe como nação no passado ou sequer como nação a vir: “De Portugal, não se fala, nem do Gama” (CINATTI, 1992, p. 316); mas existem os portugueses, invectivados na abertura e ao longo do texto, através desse refrão por que se marca súbita e reiteradamente a sua essência: “Mas dar-me a americanos, russos/ e chineses, arre! isso não, que bem me bastam/ os portugueses!” (CINATTI, 1992, p. 316). A tensão oscila entre o extremo da crueldade e um fundo de piedade e comoção; sentimentos, afinal, como mais uma vez se vê, constitutivos da sátira, que o eu quer tornar em relação a si próprio invisíveis ou inexistentes e inomináveis. O excesso de consanguinidade que une o sujeito ao objeto denuncia esse substrato de afetividades e ideias cuja representação no poema é mais da ordem do não-dito ou sugerido do que da verbalização imediata.

O elemento satírico enquanto tonalidade e modo de expressão não pode fazer-nos esquecer a grandeza de uma interioridade que, em Jorge de Sena, não é só força autônoma de excitação e destruição do outro: a sátira dá-se também enquanto energia de indagação ontológica que é alívio e suavização de uma carência cujo nome é Portugal.

 

REFERÊNCIAS:

CAMPOS, Álvaro. Poesia. Lisboa: Assírio & Alvim, 1988.

CARLOS, Luís Adriano. Fenomenologia do discurso poético. Ensaio sobre Jorge de Sena. Porto: Campo das Letras, 1999.

FIGUEIREDO, Tomás de. Poesia I. Prefácio de António Cândido Franco. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2003a.

FIGUEIREDO, Tomás de. Poesia II. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2003b.

LOURENÇO, Eduardo. Pessoa Revisitado. 4.ª ed. Lisboa: Gradiva, 2003.

SENA, Jorge de. O Físico Prodigioso. Lisboa: Edições 70, 1977.

SENA, Jorge de. 40 Anos de Servidão. 2.ª ed. revista. Lisboa: Morais Editores, 1982.

SENA, Jorge de. O Reino da Estupidez – I. 3.ª ed. Lisboa: Edições 70, 1984.

SENA, Jorge de. Poesia I. 3.ª ed., Lisboa, Edições 70, 1988a (1.ª ed., 1961).

SENA, Jorge de. Poesia II. 2.ª ed. Lisboa: Edições 70, 1988b.

SENA, Jorge de. Correspondência Jorge de Sena / Eduardo Lourenço. Wisconsin, USA, 16 de Novembro de 1967. JL– Jornal de Letras, Artes e Ideias, p. 7, 28 jun. 1988c.

SENA, Jorge de. Poesia III. 2.ª ed. Lisboa: Edições 70, 1989.

SIMÕES,João Gaspar. Crítica II. Poetas contemporâneos (1960-1980). Tomo II. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1999.

 

[*] Carlos Nogueira IELT, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Portugal. E Geice Peres Nunes é doutoranda na Universidade Federal de Santa Maria e docente na Universidade Federal do Pampa.