Llansol, Sena e seus contemporâneos: “do que escreve para o que escreve”

Maria de Lourdes Soares, pioneira no Brasil dos estudos sobre Maria Gabriela LLansol, preferiu substituir o “testemunho” que lhe foi solicitado por esta revisita à fascinante interlocução textual entre Sena e Llansol. O ensaio inédito, generosamente ofertado ao nosso site, envaidece-nos.   

 

fogo
“eu acumulo apontamentos sobre apontamentos com respeito ao auto-de-fé de Jorge Anés” (Llansol, 1984a: 97)

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.

Jorge de Sena (1988: 95)

 

O Inquisidor descreve os maus costumes da sua vida,
faz-lhe a pergunta: Onde foi ele buscar a linguagem /
semelhante língua portuguesa, que é sempre proibida?

Maria Gabriela Llansol (2013: 57)

 

Em 1965 Jorge de Sena (1919-1978) deixou o Brasil – onde viveu a primeira fase do seu exílio voluntário (1959-65) e escreveu uma parte fundamental da sua obra –e principiou a segunda fase, nos EUA (1965-78). Nesse mesmo ano, “com muito temor e, também, com muita sede de liberdade, de novo, de atingir o âmago do ser”, Maria Gabriela Llansol (1931-2008) partiu de Portugal, ao encontro do marido Augusto, que desertara à Guerra Colonial, e iniciou o seu exílio voluntário na Bélgica, afastando-se progressivamente do mundo social e urbano, da cidade de Lovaina (1965-75) para a vila de Jodoigne (1975-80) e, por fim, para o povoado de Herbais (1980-85): “pouco a pouco, não possuía do passado senão uma língua / de que nada, nem ninguém,   conseguiriam separar-me” (Llansol, 1994a: 125-126). Vendeu a biblioteca do pai para custear a viagem, desejando que os livros vendidos aos poucos se transformassem em livros escritos. Nas mãos, como única companhia, levou os Salmos de David. Viajou a Portugal após o 25 de Abril, mas só em 1985, após preparar com cuidado o seu regresso, retornou definitivamente, residindo em Sintra até à sua morte. Jorge de Sena visitou Portugal antes e após o 25 de Abril, em viagens de curta permanência, mas não regressou ao seu país de origem, falecendo em Santa Bárbara, Califórnia [1].

Em Portugal Llansol deixou um livro publicado, Os Pregos na Erva, 1962, e iniciou Depois de Os Pregos na Erva, concluído na Bélgica, 1973. De Lovaina enviou a Jorge de Sena um exemplar do seu segundo livro, que reunia dez anos de escrita:

 

Jorge de Sena:
Se a sua escrita não existisse, o que teria sido a minha.
Com a “cumplicidade” de

MGabriela
Llansol

Lovaina, Dez. 1973 [2]

 

Não se tem notícia se Jorge de Sena leu (e, em caso afirmativo, como leu) este livro. Quanto a Maria Gabriela Llansol, através de seus registros, sabe-se que leu a obra seniana, com certeza a poesia e pelo menos os contos de Novas Andanças do Demônio e Os Grão-Capitães.

Durante “praticamente quinze anos” a autora tentou “uma saída viável para os diversos realismos” (Llansol, 2002: 160). No isolamento da paisagem belga, encontrou a esmola do silêncio, um silêncio não-coercitivo, propício à criação das figuras. A génese das figuras liga-se a um singular modo de ler pensadores, poetas e místicos e a uma disponibilidade para captar e acolher imagens vibrantes que lhe permitiram vislumbrar uma abertura para a imaginação criadora, no sentido que Henri Corbin atribui ao místico sufi Ibn’Arabi.

Em O Livro das Comunidades, concluído no ano da Revolução dos Cravos e publicado em 1977 (1º volume da Trilogia Geografia de Rebeldes), enfim conseguiu aceder a uma realidade ainda inominada a que mais tarde chamaria cenas fulgor. Com este “livro fonte da [sua] escrita e do [seu] lugar no mundo” (Llansol, 2002: 322), “dobrando o espaço e reunindo diversos tempos”, “o texto da sobreimpressão começa verdadeiramente” (Llansol: 1994a: 128).

Em duas intervenções públicas [3] Llansol referiu o impacto sobre o seu texto provocado por um duplo encontro ou nó fundamental: a forte impressão que teve, de súbito, quando em visita ao béguinage de Bruges (“a sensação estranha de que vários níveis de realidade ali aprofundavam a sua raiz, coexistindo sem nenhuma intervenção do tempo” – beguinas, descobridores, rebeldes, místicos, um “mundo anónimo que, sem parança, não deixava de fluir”; o “sentimento fortíssimo” de que “ali tínhamos sido alguém” e, no entanto, “não havia ali […] nenhuma memória de nós. Nem sequer esquecimento”), e a tentativa “de reconduzir à fala e à convivência de grupo uma criança espanhola aparentemente autista” que fora levada à Escola da Rua de Namur, onde Maria Gabriela ensinava. “Data de então a presença constante, invasora e quase exclusiva, de certas figuras europeias” nos seus livros (Llansol, 1994a: 126; 88-9), nomeadamente nas duas Trilogias (tendendo, nos mais recentes, para o anonimato crescente) – Hadewijch, João da Cruz, Ana de Peñalosa, Tomás Müntzer, Eckhart, Espinosa, Copérnico, Isabel de Portugal, D. Sebastião, Camões, Sena, Hölderlin, Bach, Pessoa e Nietzsche, entre outros –, oferecendo-lhes “um abrigo, longe da cultura instituída”, onde pudessem “se encontrar – sobre o tempo –, e continuar a criar, sem rivalidade, nem pose” (Joaquim, 1988: 157). João da Cruz é o primeiro a chegar no Lugar 1 de O Livro das Comunidades, mas nas comunidades [4] de singularidades, espaço de criação que atrai e reúne intensos e diversos em mútuo convívio, não há primogênitos ou hierarquias: todos os lugares e figuras se equivalem.

Através da anotação de um Caderno de 1977 sabe-se que Llansol planejou “enviar O Livro das Comunidades a José Saramago, Antonio [José] Saraiva, Alexandre Pinheiro Torres e [Fernando] Luso Soares” (Llansol, 2010: 116). Teria enviado este livro a Jorge de Sena? Na última página de um Caderno de 1978 há uma anotação a lápis que pode ser um esboço de dedicatória:

 

Jorge de Sena

                                                                                                   também

a oferta deste livro é um pouco impessoal: é do que escreve para

                                                                                                [o que escreve

é a tentativa de dar o que escreve ao que escreve. (Llansol, 2010: 244)

 

A que livro esta anotação [5] se refere? Pela data em que foi escrita, 1978, talvez se trate de O Livro das Comunidades, uma vez que na Bélgica Maria Gabriela não dispunha de exemplares de Os Pregos na Erva. Nesse mesmo ano, no dia 4 de Junho, Jorge de Sena falecia em Santa Bárbara. Vivendo então mais afastada, na vila de Jodoigne, é possível que só mais tarde tivesse tomado conhecimento desta notícia. Nas páginas publicadas do citado Caderno de 78 não há nenhuma anotação sobre a morte de Sena. No entanto Llansol costumava registrar em seus Cadernos a data da morte (e por vezes as datas natalícias) de familiares e de certos nomes da cultura (o pai, a avó, Roland Barthes, Henri Corbin, etc.), inclusive a de alguns que se tornaram figuras em seus livros (Müntzer, Camões, Pessoa, etc.).

Se não o enviou, deve ter tido este pensamento, uma vez que, como reconheceria mais tarde numa das polêmicas notas de O Senhor de Herbais, o autor de Novas Andanças do Demónio “foi o que mais agudamente se deu conta do ‘molho de brócolos’ em que estava metido o realismo”, tentando de várias maneiras escapar do seu redil,  tentativas que até certo ponto se assemelhavam às que perseguira desde Os Pregos na Erva. A citação a seguir é longa mas importante para se entender como Llansol situa Sena em relação à estética realista, aos seus “congéneres contemporâneos” e a Pessoa:

 

Sena, para mim, faz parte dos poucos autores do século passado que tentaram ultrapassar “as tentações e os impasses” com que, em todo o Ocidente novelístico e romancista, deparou o realismo. Houve outros – Raúl Brandão, Régio, Vergílio, Ruben A., Herberto Helder e o primeiro Almeida Faria (espero não esquecer nenhum, apesar de hesitar sobre Carlos de Oliveira). Nenhum deles tentou o surrealismo e o nouveau roman, que se revelaram tentativas sem consequência. Com todos eles aprendi, apesar de serem regressões inevitáveis relativamente a Fernando Pessoa, singularidade que ficou por se compreeender a si própria, não admirando que os demais não tenham conseguido entender o que ele próprio não entendera. Viveu-se escrito… e ficou escrevendo. Pessoa com a sua heteronímia (as suas várias e indissociáveis humanidades, animalidades e estranhezas) espetou na estética literária realista um dardo praticamente mortal. (…) Ao lê-lo [ao ler Jorge de Sena,] ficou-me sempre a impressão de que…. se pudesse…. teria encontrado uma renovação profunda para o género romanesco onde se sentia menos livre do que na poesia. Sabia que a Literatura era universal e tinha uma história de impasses acumulados e de alguns saltos resolvidos. Abraçou todo o sistema, tal um físico a braços com as várias incongruências existentes entre as explicações para as grandes e pequenas escalas, ponderou técnicas e efeitos, discorreu, mas a sua grande obra ficou-nos apenas em títulos e perspectivas. Por escrever, inegavelmente. (Llansol, 2002: 130, grifos meus)

 

Quatro escritores em língua portuguesa, nascidos em Portugal, são chamados a ser figuras no texto de Llansol: Luís de Camões, Jorge de Sena, Fernando Pessoa e Vergílio Ferreira, nomeados, respectivamente, Luís Comuns (também nomeado Luís M.), Jorge Anés, Aossê e o Mais Jovem.

Luís M. acompanha a travessia geográfica e textual de Llansol, mas só se manifesta em Na Casa de Julho e Agosto, 1984 (último volume da Trilogia Geografia de Rebeldes), “rumor do silêncio” no seio das Damas do Amor Completo: “Luís M., terceiro eleito amante, viera há doze anos, mas se mantivera invisível como se estivesse por nascer” (grifos meus). Com ele a autora aprende a dobrar a língua no/do exílio: “Luís M. dizia: ‘o exílio levou-nos a falar a língua por dentro e a olhá-la por fora’” (Llansol, 1984a: 15-19). Com o desapego à ideia de território nacional e a disponibilidade à emigração para “o grande exílio da Paisagem” (Llansol, 1977 [contracapa]), o termo exilio perde a acepção nostálgica consagrada no dicionário – “abrimo-lo  na palavra exílio     queríamos saber o que dizia  desterro, degredo     pareceu-nos pouco exacto e frustrado” (Llansol,  1973: 59). Luís M. voltará, como as outras figuras, em outros livros. Porque os livros acabam mas as figuras permanecem. São transumantes, movem-se, “caminham com a língua” (Llansol, 2010: 227). Aparecem e desaparecem, metamorfoseiam-se, não desvanecem, não perdem a potência, mesmo que não se manifestem.

“Por nascer” pode ter sido um impulso para a criação da figura de Luís M., assim como “Por escrever” para a de Jorge Anés e “Por ver” (Llansol, 1985: 95) para a de Aossê. Jorge de Sena/Anés: Llansol conserva-lhe o nome, tal como procedera com Luís de Camões – o interlocutor privilegiado de Sena –, e inverte-lhe [6] anagramaticamente o sobrenome, tal como procederá com Pessoa, nomeado Aossê (embora há muito gestado) no encontro com Bach, na “noite criativa de 1 para 2 de Novembro” de 1982 em que se estabelece “um elo entre os vivos e os mortos” (coincidentemente, data natalícia de Sena e Dia de Finados no calendário cristão):

 

[Bach e Pessoa] eram-me familiares na razão inversa das épocas em que haviam existido; precisava de alterar a ordem das letras do nome de Pessoa para fazê-lo involuir, arrancá-lo ao hábito inveterado que tinha dele; a descrição da sua vida não era o meio apropriado para subtraí-lo de Pequenez [nome que lhe daria para fazê-lo mudar de clave].

Pessoa, lido da direita para a esquerda, dava AOSSEP. (Llansol, 1985: 94)

 

Por nascer, Por ver e Por escrever: as figuras não vêm do passado, vêm “do futuro do texto, da sua incompletude como seres. Da sua vida que nada rouba ao vivo” [7] (Llansol, 2000: 204). Por essa razão talvez, num apontamento sobre o auto-de-fé de Jorge Anés, o suplício no fogo deixa-o só “pele (pergaminho)” (Llansol, 2013: 57) e em Causa Amante a narradora deseja passar o “dia a tatuá-lo, ou a escrever nele”. Porque ali, no “jardim de reflexão crescido lentamente”, “era impossível que o fogo ardesse (…) até o fim” (Llansol, 1984b: 99).

Voltando à anotação a lápis do final do Caderno de 1978, teria alguma relação com a concepção do nascimento de Jorge Anés no jardim que o pensamento permite de Causa Amante? O fato é que no ínicio de 1979, em 6 de Janeiro, começa a escrever este livro que, por dificuldade de encontrar editor [8], só conseguiria publicar em 1984.

Camões viveu e escreveu no século XVI. Pessoa, Sena e Vergílio – os outros escritores portugueses que se tornam figuras – produziram suas obras no século XX. Significativamente, os três são citados na referida nota sobre os autores portugueses que, assim como Llansol, confrontaram-se com as tentações e os impasses da estética literária realista.

Pessoa nasceu em 1888 mas publicou na primeira metade do século XX. Llansol publicou na primeira metade do século passado até o início do século atual. Acabara de completar quatro anos (24 de Novembro) quando Pessoa faleceu, no dia 30 de Novembro de 1935.

 

Em que mês nasceu ele? Morre quando eu tinha quatro anos. Morre no mesmo mês em que eu nasci e numa data próxima, 27 para 28 de Novembro [sic].   Nascimento a 13 de Junho às três horas e vinte minutos da tarde de 1888.

A data da morte de uma pessoa pode influenciar a sua vida, como a data do nascimento? (Llansol, 2010: 199)

 

É possível que a menina e o poeta, um do outro desconhecidos, tenham se cruzado por acaso na calçada ou na esquina das ruas em que então moravam – Pessoa, na Coelho da Rocha (onde residiu de 1920 até o ano da sua morte, no prédio que atualmente abriga a Casa Fernando Pessoa), rua perpendicular à Domingos Sequeira, em que viveu Maria Gabriela na infância. Talvez tenham se encontrado no Jardim da Estrela, onde a menina, tendo “o rosto da criada olhando ao fundo”, ia brincar com o cão do futuro, enquanto “as outras crianças brinca[va]m entre si” (Llansol, 1990: [4-7]). Quem sabe viajaram no mesmo elétrico, ou passaram um pelo outro na Baixa lisboeta, onde a menina ia com a mãe comprar tecidos e linhas e o poeta ia encontrar-se com os companheiros de tertúlias dos cafés.

O encontro com Pessoa ocorrerá mais tarde, de forma surpreendente, entre outros tecidos e linhas. Não por um motivo pessoal ou biográfico, mas pela potência do seu voo poético, o poeta será acolhido infinitamente na casa do texto de Llansol. É longa a gestação de Pessoa na ordem figural. Em O Livro das Comunidades, antes de Pessoa se manifestar como Aossê, fragmentos de seus versos compõem a carta que Ana de Peñalosa chamou “Texto Ao Sol Submetido”, rito de ressuscitação de “O menino de sua mãe”, poema pessoano “que o sol banhava” (Llansol, 1977: 61). Em Na Casa de Julho e Agosto insinua-se no desejo de “fazer amor com um pássaro azul” (Llansol, 1984: 57). Em Causa Amante anuncia-se “nos grandes ovos” que as “aves migratórias” deixaram cair  sobre a terra, “sem quebrar-se”, e que se “transformaram na paisagem em que tinha vivido Comuns” (Llansol, 1984a: 153). Por fim virá como o pássaro desejado, o falcão que lhe pousou no punho e “entrou no [s]eu pulso” (Llansol, 1994b: 101), ave que passa e ensina a passar. Atravessará vários livros, em encontros imprevisíveis, capazes de mudar a grafia dos mundos, nomeadamente no encontro com Bach, em Um Falcão no Punho e Lisboaleipzig 2.

Maria Gabriela encontrou-se pela primeira vez face a face com Vergílio Ferreira em 1988, em Paris, por ocasião do evento Les Belles Étrangères (Soares, 2014). Fiel ao “pacto de bondade” que deve existir entre os criadores, em Inquérito às Quatro Confidências, um dos seus mais belos livros, ajuda Vergílio “a atravessar a morte”, oferecendo-lhe “um corpo de fulgor e de penetração que se não confundisse com o físico, belo ou degradado. Um corpo integralmente feito de linguagem” (llansol, 1997: 7). Escrever é sustentar um permanente combate contra o medo/a morte: “sei que o meu combate contra a morte (a morte não é um substantivo) é tecer em texto a perenidade das presenças já impossíveis”. Encoraja “o [seu] companheiro filosófico a partir realmente, sem medo, ficando sempre com a [sua] promessa de continuar a existir e a evoluir connosco, de forma duradoura, perene”. O autor de Aparição evolui, prossegue como o Mais Jovem, figura composta de vários “fragmentos virtuais”, reunindo traços do Jovem do poema de Parmênides, “velho rosto de grego a interrogar o ser, à beira do seu cão” (texto cuja leitura e tradução Vergílio e Gabriela partilham num de seus encontros), e afirmando uma das lições de Eckhart: “‘Nada, recorda Eckhart, é mais oposto a Deus que o tempo’. Ou ‘no intelecto é-se totalmente jovem; quanto mais se actua dentro dessa potência, mais próximo se fica do nascimento…’”  (Llansol, 1996: 31;40; 53; 52; 129). Vergílio Ferreira, assim nomeado, voltará ao lado de Parmênides, Jorge Anés e Comuns em O Começo de um Livro é Precioso, como adiante se verá. Retornará ainda em Os Cantores de Leitura, não nomeado, como uma das “imagens das recordações concebidas”, a do “retrato, com o mental companheiro filosófico que só cria nas feridas quando tocava as feridas” (Llansol, 2007: 174).

Jorge de Sena e Maria Gabriela Llansol nunca se encontraram pessoalmente. Além da comum (embora diversamente vivida) experiência do exílio, há afinidades e pontos de contacto entre as respectivas peregrinações textuais: o interesse (expresso de diferentes maneiras) pelo béguinage de Bruges e por figuras europeias como Camões, Pessoa, Rimbaud, Espinosa, Bach, São João da Cruz e Santa Teresa d’Ávila; o trabalho de tradução (ambos traduziram Emily Dickinson; Llansol, com o pseudônimo de Ana Fontes), a travessia de gêneros, o alargamento da noção de intertexto, o diálogo com outras linguagens. Mais que a relação pessoal ou as aproximações e desencontros entre as respectivas obras, interessa assinalar a passagem para o impessoal sugerida no referido esboço (não importa o autor), entendida como busca da troca verdadeira, gratuidade do dom poético, “uma dádiva que os seres vibrantes fazem entre si” (Llansol, 2001: 10), do que escreve para o que escreve. Ou, dizendo de outra maneira, a passagem de Jorge de Sena para a ordem figural.

Em Causa Amante, livro em que Jorge Anés aparece pela primeira vez, significativamente também surgem pela primeira vez a rapariga que temia a impostura da língua e o jardim que o pensamento permite. Na verdade, estas e outras figuras llansolianas (humanas e não humanas) não nascem nem morrem no sentido biológico. Transitam entre livros, voltam em encontros inesperados do diverso, no eterno retorno do mútuo (não do mesmo), sem se deixar cristalizar ou prender a um território. Tocadas de eternidade, evoluem de forma duradoura, perene.

O primeiro encontro com Jorge Anés ocorre na noite criativa do “texto em relevo”, topografia textual que acumula texto sobre texto: “três livros passaram sobre esse livro” (Llansol, 1984a: 97). Valendo-me de versos de Sophia (poema “A vida de Camões”), em Causa Amante Llansol convoca “as convocações / De Super Flumina Babylonis / Onde o inscreveu se inscreveu nos inscreveu Jorge de Sena” (Andresen in Santos, 2009: 248). A narradora, na noite em que Jorge Anés “deve estar” com ela, escreve/copia uma narrativa cujo final transcreve “com a pesada fragilidade de quem lê”:

 

“Sobre os rios que vão por Babilónia me achei onde sentado chorei as lembranças de Sião e quanto nela passei…

E ficou escrevendo pela noite adiante. ” (Llansol, 1984a: 88)

 

Magnífica noite de escrita. Imenso é o prazer estético do leitor ao reconhecer as paisagens textuais sobreimpressas: no exílio belga Llansol escreve que Jorge Anés escreve um texto – o conto “Super Flumina Babylonis” que Jorge de Sena (1983: 155-66) escreveu noite adentro [9] no exílio brasileiro, Araraquara, 25 de Março de 1964 –, texto este em que Camões (não nomeado no conto de Sena) escreve “pela noite adiante” as célebres redondilhas “Sôbolos rios”, também conhecidas como “Babel e Sião”, canto de exílio que por sua vez parafraseia – e transforma – o Salmo 136 (137) atribuído a David.

Na época em que escrevia Causa Amante, Llansol escrevia também Na Casa de Julho e Agosto, projetava outros livros, procurava editor para A Restante Vida,1983 (2º volume da Trilogia Geografia de Rebeldes), e indagava-se em seu Caderno de 1979: “o que é a escrita?”, “o que é a língua?” (Llansol, 2013: 66; 119), perguntas que repercutirão em Causa Amante, associadas sobretudo à “morte/exílio” e ressuscitação de Jorge Anés no jardim que o pensamento permite, “no princípio da primavera”. Jorge Anés senta-se “no mesmo banco” que Luís Comuns, enquanto “uma voz percute”, “indagando o infinito dos lugares comuns: / o que era a língua?”. Mais adiante, “pergunta-se Úrsula o que é a escrita; muito perto, pergunta-se o que é a língua” (Llansol, 1984a: 103; 98; 102).

Na véspera do suplício de Jorge Anés, como Llansol anota no Caderno de 79, há no Terreiro [do Paço] várias figuras presentes, “como se fossem uma base de sustentação, ou uma base de voo, uma rampa de lançamento para o próprio fogo”. A escrevente, “comovida”,  junta-se a eles, “embora não os visse”:

 

Só por sinais. Todos nós tremíamos em face das línguas
as línguas do fogo,
as más línguas, as várias línguas em que escrevemos,
e em que nos perdemos,
como hoje.

      Tamanha duração ultrapassa o meu entendimento; uma língua viva dispõe-se a morrer, já morreu, ou está condenada.(Llansol, 2013: 66)

 

Línguas vivas: a língua do fogo e a língua do fulgor encontram-se, tocam-se, trocam sinais. Grande parte do auto-de-fé de Jorge Anés foi originalmente escrito nas margens do capítulo “O que era um auto-de-fé?” de Inquisição e Cristãos Novos, de Antônio José Saraiva (Llansol, 2013: 71-3). No entanto, a cena que de fato interessa à escrita llansoliana não é a “Inquisição” da História, mas a seniana inquirição da língua: “Seria ali torturado pelo fogo Jorge Anés – julgava ele –, poeta, contador de histórias, ser reflectido, enfim, inquiridor da língua; sua variedade ficaria ali com as restantes presenças”. “Durante uma visita” ao jardim de Causa Amante, com a sua “escrita sempre inteligente e intrépida”, Jorge Anés senta-se também ao lado da narradora, “com os textos em espiral, na pedra” que ela “tinha preferido para esse encontro” (alusão à seniana pedra filosofal?). Conversam sobre a pena a que fora sentenciado, sobre o que ele escrevera e sobre a procura da língua:

 

ele aconselhou-me absoluto silêncio, pois se ele tinha de sofrer o fogo, que nós e nossos familiares fôssemos guardados, e enterrados a seu tempo de vida normal no jardim,

e não com as cinzas dispersas no ar, como ele;

disse-me que tinha feito um poema sobre o enterramento do seu corpo no ar,                                                                                                                                        [e

que esse prazer era um prazer dado pelo jardim a quem nele ia trespassar;

tinha escrito sobre a matéria que se inflama que, quando se apaga,

gasta o fogo; eu creio que um soneto persuasivo das últimas  imagens (…)

ele disse-me que o caminho era longo, mas que tivesse esperança,

pois maior que nós

era a língua

que nos esperava;

disse-lhe, a sorrir,

que ela estava presa a um ramo,

e ele disse-me

que eu tinha uma linguagem feminina e descalça,

mas que não era ainda a língua.  (Llansol, 1984a: 100-101)

 

Sofrer o fogo – não no sentido de penitência inquisitorial, mas no de metamorfose escritural, transmutação alquímica – é uma experiência “só audível aos que ainda falavam com a língua; aqueles que devem morrer para que a língua viva, devem ressuscitar entre si” (Llansol, 1984: 102).  Ressuscitar: suprema manifestação do amor, “o acorde perfeito”, “consonante com a substância” (Llansol: 2003: 21).

As cinzas de Jorge Anés dispersas pelo vento (o enterramento do seu corpo no ar) remetem a “[Sinais de fogo…]”, poema de Jorge de Sena intercalado no seu romance póstumo e inacabado Sinais de Fogo, 1984, e incluído na primeira recolha de seus inéditos em Visão Perpétua, 1982:

 

Sinais de fogo, os homens se despedem,
exaustos e tranquilos, destas cinzas frias.
E o vento que essas cinzas nos dispersa
não é de nós, mas é quem reacende
outros sinais ardendo na distância
um breve instante, gestos e palavras,
ansiosas brasas que se apagam logo.
(Sena, 1984: 440)

 

O narrador seniano descobre-se poeta ao de repente ouvir dentro da sua cabeça uma frase deste poema, cujo processo de composição é uma longa batalha de escrita que se inicia, significativamente, quando “era quase noite escura” e prossegue ao longo do livro (Sena, 1984: 113; 423-4; 440).

Fogo e língua são os traços mais vivos, os sinais mais evidentes da presença do poeta de Metamorfoses em Causa Amante, livro a príncipio intitulado O Nascimento de Ana de Peñalosa, “narrativa dividida em chamas”, ligada à “paixão pela chama da vela”, como se lê na anotação de “Janeiro de 1979  [?]” (Llansol, 2013: 24), e à leitura de outras ardentes chamas textuais, como a de Chama Viva de Amor de São João da Cruz, a centelha do ímpeto ou êxtase amoroso (orewoet) de Hadewijch d’Anvers e a língua do fogo seniana de “[Sinais de Fogo]” (e talvez também de “Uma  pequenina luz”).

Note-se que na anotação escrita “entre [1]8 e 21 de Fevereiro” de 1979, pouco antes da frase “O suplício de Jorge de Sena”, Llansol registra o seu combate para trazer à luz uma escrita pujante e alcançar a perenidade alquímica do verbo:

 

Não consigo escrever, articular duradoura e espacialmente  a escrita. É como se tudo estivesse submerso pelos escombros de excessivos/  infinitos / incontáveis temas e ideias; há uma poeira sem fim que primeiro foi ouro. Procuro o fio, faço mentalmente a viagem. (Llansol, 2013: 42-3; grifos meus)

 

Consegue encontrar o fio, o tom certo, como registra com imenso júbilo na anotação de 27 de Março de 1979:

 

Percorre-me um tom que me inunda de maior felicidade, que me devolve a captação de outros, não importa quando, e talvez nas cinzas, pois a morte possível de Jorge Anés, na fogueira, é um fio que me puxa e afia pausadamente a minha língua.(Llansol, 2013: 54; grifos meus)

 

Os termos assinalados nas duas citações acima reaparecerão (de forma mais afirmativa que na primeira) em dois trechos da primeira entrada de Um falcão no Punho: “a morte possível de Jorge Anés na fogueira é um fio que tem um colorido luminoso e sereno, e afia pausadamente a minha língua”; “Dobra a tua língua, articula./ / Dobra a tua língua, articula”. Nesta mesma entrada, em torno da sequência de nascimentos, há um duplo nascimento que implica um esquecimento necessário para a criação de figuras – do conhecido e fixado na ordem cultural ao desconhecido nascente e liberto na ordem figural: “nascimento de Jorge Anés e de Luís Comuns a partir das pombas que revoam na Praça Luís de Camões” (Llansol, 1985: 8).

Ainda em Um Falcão no Punho, ao reler com “grande (…) alegria” o manuscrito de Causa Amante, prova de fogo da batalha que travara, imagina “que a verdadeira salamandra alquímica era a espécie humana que já atravessara tantas provas de fogo” e mais uma vez “na noite” pensa no poeta que se dirigiu a Camões como a um seu contemporâneo:

 

 

Lembrava-me de Jorge de Sena que é Jorge Anés, no livro. Continuei pensando que o vira como ele desejara ter vivido. Havia nele uma bala, ou estilhaço, provinda de outros combates (quem sabe se da Campanha do Norte de África – Ceuta, 1549) que nunca ninguém conseguira extrair-lhe. Mas estava lá.

 

Nunca o vi, e estava ali na noite a pensar  nele. (Llansol, 1985: 128)

 

A referência ao ferimento em combate, biograficamente, como se sabe, remete à campanha em que Camões serviu como soldado e perdeu o olho direito numa escaramuça contra os mouros. Em sentido figurado, conforme apontei em outro estudo (Soares, 2006: 67), é possível ler nesta identificação/sobreposição de combates o destempero camoniano por vir “cantar a gente surda e endurecida” (Lus., X, 145) e a seniana “dor de haver nascido em Portugal / sem mais remédio que trazê-lo n’alma” (Sena, 1989: 117). Llansol estrategicamente contorna esta dor, evita o “contacto emotivo” com a sua cultura de origem, não se prende ao “nacional”, às “nossas coisas” (Llansol, 2002: 137-8). Em Causa Amante, livro que abre a Trilogia “O Litoral do Mundo”, “Portugal surge não como um país, mas como um dos possíveis litorais do mundo” (Llansol, 2010: 227), aberto à multiplicidade de possíveis. Quanto aos combates, é em outro sentido, o da batalha da escrita, atrás assinalada, que identifica Jorge de Sena e Luís de Camões. Combates/caminhos que Maria Gabriela sempre viveu “como jubilosos e que, para outros, são angustiantes e tormentosos” (Llansol, 2000: 35).

O texto de Llansol nada rouba ao vivo de Jorge de Sena/Anés. No espaço/jardim da criação não há posse, há troca verdadeira, mútuo convívio. Em Causa Amante, acompanha o inquiridor da língua em sua prova de fogo, até que se torne pele ou pergaminho, suporte de escrita que mantém acesa a chama além do fim; deseja tatuá-lo ou escrever nele; recolhe e reacende seus sinais dispersos, convertendo-os em húmus do jardim que o pensamento permite; reconhece-lhe a coragem de combater, as dores sofridas de uma língua nova; vê-o como ele gostaria de ter vivido, a continuar a criar, sobre o tempo, ao lado de Camões/Comuns, seu gémeo textual, e de outros criadores;  enfim, dá-lhe um corpo de linguagem, incorruptível, perene, como o que ofereceu a  Vergílio e a outras figuras. “Fiel aos [se]us”, em O Começo de um Livro é Precioso, na estância de “(2 de Novembro)” [10] – coincidentemente, dia do nascimento de Jorge de Sena, como foi referido –, cultiva-o no “jardim abismático”, ao lado de Comuns, de Vergílio e de outros seres de várias espécies, “até à luz da ressurreição” (Llansol, 2003: [ 306]).

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 JOAQUIM, Augusto. Algumas Coisas. In: LLANSOL, Maria Gabriela. Um falcão no punho. 2.ed. Lisboa: Relógio d’Água, 1998. p. 153-204.

LLANSOL, Maria Gabriela. Depois de Os Pregos na Erva. Porto: Afrontamento, 1973.

—–. O Livro das Comunidades. Porto: Afrontamento, 1977.

—–. Na Casa de Julho e Agosto. Porto: Afrontamento, 1984a.

—–. Causa Amante. Porto: Afrontamento, 1984b.

—–. Amar um Cão.Sintra: Colares Editora, 1990.

—–. Um Falcão no Punho. Diário 1. Lisboa: Rolim, 1985.

—–.  Lisboaleipzig 1. O Encontro Inesperado do Diverso. Lisboa: Rolim, 1994a.

—–. Lisboaleipzig 2. O Ensaio de Música. Lisboa: Rolim, 1994b.

—–. Inquérito às Quatro Confidências. Diário III. Lisboa: Relógio D’Água, 1996.

—–. “O sonho de que temos a linguagem”. Colóquio Letras, nº 143/144, Janeiro-Junho 1997, pp. 7-18.

—–. Onde Vais, Drama-Poesia?, Lisboa, Relógio d’Água, 2000.

—–. Mais Novembro do que Setembro, Apollinaire. Lisboa: Relógio d’Água, 2001.

—–. O Senhor de Herbais. Lisboa: Relógio d’Água, 2002.

—–. O Jogo da Liberdade da Alma. Lisboa: Relógio d’Água, 2003.

—–. Os Cantores de Leitura. Lisboa, Assírio & Alvim, 2007.

—–. Um Arco Singular. Livro de Horas II (Jodoigne, 1977-1978). Sel., transc., introd. e notas de João Barrento e Maria Etelvina Santos, com a colab. de M. Carolina Fenati. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.

—–. Numerosas Linhas, Livro de Horas III (Jodoigne-Herbais, 1979-1980). Sel., transc., introd. e notas de João Barrento e Maria Etelvina Santos. Lisboa: Assírio & Alvim, 2013.

SANTOS, Gilda (Introd. e Org.). Jorge de Sena: Ressonâncias e Cinqüenta Poemas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.

SENA, Jorge de. Antigas e Novas Andanças do Demónio. Lisboa: Edições 70, 1983.

—–. Sinais de Fogo. Lisboa: Edições 70, 1984.

—-. Poesia II. 2. ed. Lisboa: Edições 70, 1988.

—–. Poesia III. 2. ed. Lisboa: Edições 70, 1989.

SOARES, Maria de Lourdes M. A. Quem me chama: a escrita fulgurante de Maria Gabriela Llansol. PUC-RJ, 1994.

—–. “Jorge de Sena e Maria Gabriela Llansol: ‘as novas andanças do fulgor’”, pp. 66-74. In: SANTOS, Gilda (Introd. e Org.). Jorge de Sena: Ressonâncias e Cinqüenta Poemas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.

——. “Singularidades em mútuo convívio”. Pensardiverso. Comunidades. Revista de Estudos Lusófonos. Universidade da Madeira, 2011a, pp. 51-65.

—–. “Llansol: à procura da ‘poesia sem impostura’” in ALVES, Ida & MAFFEI, Luis (orgs.). Poetas que interessam mais: leituras da poesia portuguesa pós-Pessoa. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011b, pp. 243-259.

—–. “Vergílio, o Mais Jovem: ‘um torvelinho de luz’, ‘um destino de nascente’” in FENATI, Carolina (org.). Partilhas do Incomum: leituras de Maria Gabriela Llansol. Florianópolis: EdUFSC, 2014, pp. 143-172.

 

NOTAS:

[1] Em 11 de Setembro de 2009 os restos mortais de Jorge de Sena foram trasladados para o Cemitério dos Prazeres, em Lisboa, o mesmo em que no ano anterior Maria Gabriela foi sepultada.

[2] Agradeço a Gilda Santos o envio, através de carta (Santa Bárbara, 12/10/1992), da fotocópia desta dedicatória. Esta informação integrou uma nota da minha Tese de Doutorado. Cf. Soares, 1994: 271.

[3] “Nós estamos de volta” (“Les Belles Étrangères”, Paris, 1988) e “O extremo ocidental do Brabante” Bruxelas, XIª Bienal das Artes e da Cultura dedicada a Portugal, Europália, 1991). Llansol, 1994a: 88-93 e 124-134, respectivamente.

[4] Sobre a concepção de comunidades em Llansol cf. Soares, 2011a.

[5] Ao reler este esboço a lápis, João Barrento observou que também poderia “tratar-se de uma anotação de Maria Gabriela (na última página do referido Caderno, num lugar em que habitualmente ela não costumava escrever, mas apenas anotar contas do mês, livros a adquirir, coisas mais pessoais…) depois de ter recebido algum livro de Jorge de Sena, embora não haja nenhum livro com dedicatória dele na biblioteca da autora. Portanto, o sentido da anotação permanece em aberto”. Agradeço a João Barrento esta observação e o envio de páginas dos Cadernos de Maria Gabriela Llansol referentes a Jorge de Sena.

[6] Como apontei na já citada Tese de Doutorado, é possível relacionar também esta inversão ao demoníaco, inconfundível marca das andanças senianas, na poesia e na prosa (Soares, 1994: 92).

[7] Sobre a noção do vivo em Llansol cf. Soares, 2011b.

[8] O problema de Llansol para editar seus livros aparece em várias anotações dos seus Cadernos (“não ter editor é bizarro, o livro fica como que impedido”, 7 de Março de 1979; “gostaria de editar-me a mim mesma, sem obstáculo”, 10 de Março de 1979; “Como me liberta não necessitar de Editor que pesa o livro e anota na coluna do haver a margem do lucro”, 10 de Maio de 1980, Llansol, 2013: 48-9; 51; 264) e repercute na primeira entrada de Um Falcão no Punho: “A libertação de poder escrever e imprimir eu própria” (Llansol, 1985: 8).

[9] “Escrevi, até às 4 da manhã, um conto, Super flumina… que não esperava”. Sena, Mécia de. “Introdução à 3. ed.” in Sena, 1984: 17.

[10] O Começo de um Livro é Precioso compõe-se de 365 estâncias, tantas quantos os dias do ano (tal como o número de versos das redondilhas “Super Flumina Babilonys” de Camões). Apenas 3 são datadas: a “305 (1 de Novembro)”, estância que abre a todos “o jardim abismático que contempla Témia” (outro nome da rapariga que temia a impostura da língua) e faz a passagem, o elo entre os vivos e os mortos, assim como na noite criativa de 1 para 2 de Novembro de Um Falcão no Punho, para a estância “306 (2 de Novembro), dedicada a Jorge Anés e outras espécies cultivadas no “jardim abismático”; e a “359 (25 de Dezembro)”, dia de Natal, sobre “começar a incriar, regressar à criança”. Llansol, 2002: [305], [306], [359].

 

*Professor Adjunto da UFRJ (Literatura Portuguesa e Literatura Infantil e Juvenil). Doutora em Letras (1994), com Tese sobre o romance de Maria Gabriela Llansol, pela PUC-Rio. Pesquisadora do ensaísmo de Eduardo Lourenço e da obra de Maria Gabriela Llansol. Especialista em Teoria e Práticas de Leitura. Colabora com resenhas e ensaios em livros, revistas e periódicos especializados.