Sinais de Fogo como romance de formação

Com o livro Jorge de Sena – Sinais de Fogo como romance de formação, vencedor do “Prêmio Jorge de Sena”/2010 e do “Prêmio Pen Clube Português”/2011, Jorge Vaz de Carvalho tornou-se referência incontornável nos estudos senianos, e pioneiro no ensaio de grande fôlego sobre esse romance póstumo, e inacabado. Muito gentilmente, o ensaísta autorizou-nos a reproduzir aqui a “Conclusão” de sua pesquisa.   

 

A partir do último terço do século XVIII, no espaço cultural germânico, anima-se um fecundo dinamismo intelectual com o propósito de actualizar o atraso sentido em relação ao pensamento e à criação artística de países europeus mais desenvolvidos, como a França e a Inglaterra. Um escol de intelectuais de grande mérito coloca a ênfase na necessidade de melhorar a sociedade pela educação familiar e a instrução institucional, mas, sobretudo, por uma cultura íntima, estética e espiritualizada, que desenvolvesse e aperfeiçoasse, à luz da razão e da sensibilidade, na diversidade experiencial da interacção com o meio, o potencial inato das faculdades do indivíduo como um todo harmónico, fazendo-o mais apto para o bom convívio social e a actividade em prol do bem comum. Esta ideia de Bildung, que traduzimos por autoformação, é formulada como reforma humanista que evite a importação de uma solução de radicalismo sangrento como fora a Revolução Francesa, pela conciliação dos interesses do indivíduo com os da sociedade, os da burguesia ascendente com os da aristocracia ainda dominante. Mostra a confiança na perfectibilidade dos seres humanos e o optimismo na mobilização das qualidades naturais do indivíduo progressivamente desenvolvidas para, através do exercício da vontade não condicionada, cada um se tornar agente da sua própria transformação, superando, na livre inter-relação com o exterior e consigo mesmo, as adversidades, coacções, dificuldades, incertezas, os erros e as angústias inerentes ao processo de aprendizagem, no sentido da modulação para uma boa prática cívica, a virtude ética e a harmonia estética, capaz de elevar a pessoa tjffor via dela, o todo social, a um patamar superior de humanidade.

Acolhida com ânimo pelos criadores estéticos, esta ideia-valor motivou um conjunto de romances que a narrativizam, e passou a designar-se Bildungsroman, classificação que se fixou no discurso académico a partir da obra teórica de Wilhelm Dilthey, sobretudo, Das Erlebnis und die Dichtung (1906), elegendo como seu paradigma a obra Wilhelm Meisters Lehrjahre (1785-86) de Goethe. Embora a crítica hesite entre várias designações e alguma tente encontrar uma denominação mais precisa e um cânone indiscutível, neste tipo de romances podemos verificar uma temática comum: a representação problematizada do desenvolvimento das capacidades inatas de um jovem protagonista que, confrontado com as realidades exterior e interior, procede através de um conjunto diversificado de experiências vivenciais e da reflexão sobre elas, até alcançar um certo grau de maturidade, que lhe permite tornar-se, pela autonomia e liberdade da sua prática, aquilo mesmo para que a natureza o dotara, harmonizando-se consigo e com a socie dade. O Bildungsroman, consonante com o desígnio nacional e universalista de educação humana, conforma-se à máxima horaciana prodesse et delectare, para proporcionar fruição estética de leitura e utilidade pedagógico-moral, assumindo uma função social de valor teleológico proveitoso e bem definido: favorecer, pela representação exemplar que realiza, a formação do leitor.

A recepção do Wilhelm Meisters Lehrjahre de Goethe provocou uma profusão de obras romanescas e uma intensa discussão crítica. Desde logo, para definir se o romance concluía por uma Bildungfeliz do protagonista ou se traduziria, afinal, uma cedência acomodatícia a valores burgueses e aristocráticos que, precisamente, se pretendia superar. Podemos inclusive encontrar, nas letras alemãs do século XIX, diversas paródias e sátiras à degradação ou mesmo inviabilidade da Bildung. Mas, por um lado, as obras nem sempre têm de culminar no êxito do herói, quer na realização interior quer na socialização, e não será obrigatório que a teleologia do desejável seja provada pela sua concretização (quantas vezes, em arte, a excelência do tal desejável se prova a contrario pelo que o protagonista não alcança). Por outro lado, devemos ter em conta que o conceito de Bildung que os romances narrativizam não é, na sua inevitável historicidade, estático e inequívoco, nem é desejável que o seja o Bildungsroman, ganhando precisamente pertinência, não por se enclausurar nas regras inflexíveis do sistema normativo, mas por, sem deixar de definir propriedades comuns a determinado corpo de obras, se abrir às virtualidades de uma forma que, por ser literária, ela própria se vivifica da permanente metamorfose no dinamismo transgressivo das práticas criativas.

Consideramos que, enquanto modelo narrativo, o Bildungsroman escapa à expressão local e transitória pela sua evolução no espaço germânico em conjunto com o interesse que despertou em diferentes zonas literárias e substratos culturais, como no francês, formalizando-se como roman d’apprentissage, e no inglês, como novel of education, ganhando dimensão universal. Desde modo, reiterando o que neste estudo defendemos, podemos resumir a evolução do Bildungsroman em três etapas dinâmicas: o período original e ascendente, entre a última metade do século XVIII e meados dos anos trinta do século seguinte, que corresponde maioritariamente a um optimismo quanto às qualidades intrínsecas dos seres humanos, à possibilidade de realização da Bildunge à evolução harmónica da Humanidade pelo conjunto de faculdades maturadas que o indivíduo cultural e eticamente superior, ao abdicar voluntariamente do seu egoísmo pessoal, podia pôr à disposição dela; a fase crítica da pragmática social, entre a terceira década do século XIX e a primeira do século XX, quando as urbes da Europa saída das crises napoleónicas se vêm invadidas por arrivistas que desenvolvem a sua formação para conseguirem alcançar a integração nos ramos mais apetecíveis da sociedade, portanto, não para a melhoria das suas qualidades interiores e com o objectivo do bem comum mas, na degeneração daquelas e no desapego deste, para satisfazerem a mera ambição pessoal e colherem da vida o máximo de proventos; a fase a que os ingleses chamam Modernist, caracterizada pelo descrédito das instituições sociais, incapazes de cumprir a saudável missão educativa e instrutiva, perante o indivíduo, pelo que, desamparado delas e contra os valores que propagam, não resta a cada um senão cuidar de si mesmo e desenvolver, nos planos cívico-político, ético-social e estético-cultural a própria autoformação, sem deixar de acreditar na defesa da dignidade e da liberdade e na possibilidade de uma Humanidade mais perfeita e feliz. Ao longo deste percurso evolutivo que desenhámos, entendemos que a quebra da normatividade tradicional é precisamente o que possibilita a revitalização do Bildungsroman como forma romanesca, o qual, é bom recordar, nasceu com o próprio projecto de dinâmica crítica a que chamamos Modernidade, e cujo herói, no seu processo constante de evolução, pode bem ser tomado como símbolo dela.

Consideramos que Sinais de Fogo de Jorge de Sena, obra já da segunda metade do século XX, é supremo herdeiro desta última visão «modernista» de romance, de sociedade e de Humanidade, e esta é a proposição que norteia o presente estudo. A obra é a narrativa auto diegética, realizada por Jorge, presumivelmente em idade mais madura, do tempo especialmente significativo da juventude em que enfrentou as provas do rito de passagem que o transformou de espectador da vida em protagonista dela. Essa metamorfose deu-se por força da concatenação de eventos históricos e pessoais num conjunto aventuroso de peripécias inesperadas e extraordinárias, por que ele se vê impulsionado para tomar parte e iniciativa em situações experienciais que, pela acção e reflexão, lhe permitem alcançar um certo grau de maturidade traduzido numa especial consciência sensível de si e do mundo. Com esta, a sua vocação natural inicialmente rejeitada acaba por se afirmar como destino e, por necessidade e vontade, aceita finalmente a resolução intencional da criação poética.

O cronótopo desta autoformação é, sobretudo, Portugal de 1936, sob a ditadura do Estado Novo e quando Salazar consolidava o poder, contemporâneo e sob influência da crise espanhola que desencadearia a sanguinária Guerra Civil. O recente universitário, que chega à Figueira da Foz para gozo despreocupado e folgazão das férias estivais, depara-se com o tumulto dos espanhóis em debandada e toda uma agitação ina-bitual na pequena terra tranquila, que só a sazonal vilegiatura dos turistas animava. Mas a sua atenção vai sendo desperta para uma realidade inesperada. Amigos que, ainda há um ano atrás, se limitavam a brincar juvenilmente, surgem como doutrinados membros de um partido da oposição, com ideias políticas bem definidas e responsabilidades numa acção de desafio ao regime que apoiava os rebeldes em Espanha, consistindo em viajar de barco para a Galiza e juntar-se aos combatentes republicanos. A casa familiar dos tios onde sempre se hospedara transforma-se no refúgio clandestino de dois espanhóis que o tio Justino escondera às perseguições dos compatriotas inimigos e das autoridades portuguesas. Familiares, amigos, conhecidos e desconhecidos com quem se cruza colocam-se de um ou de outro lado das facções rivais, escapam a compjcometer-se ou simplesmente preferem res-guardar-se, por prudência e pavor, numa ignorância egoísta e distanciada. O país desvela à consciência do protagonista uma realidade político-social em que, por letargia e ensimesmamento, nunca reparara, uma agressividade perigosa cuja ameaça vinha tanto do sistema repressivo do regime quanto da própria cultura cívica das pessoas, as liberdades vigiadas e constrangidas pelo poder despótico, mas também por normas comportamentais irracionais e sufocantes que a sociedade hierárquica impunha, regras coactivas arreigadas com o objectivo de marcar a superioridade de uma classe sobre outra, dos adultos sobre os juvenis ou do masculino sobre o feminino e o homossexual.

Ao mesmo tempo, Jorge vai desenvolver outro tipo de consciência sobre as relações humanas, as motivações profundas que geram determinadas condutas e opções vivenciais. Aprende a não confundir comportamentos e atitudes e a superar preconceitos. Interessa-se, sobretudo, pelas razões profundamente humanas que motivam que o mesmo indivíduo se vanglorie das suas perversões sexuais, exorbite na exibição obscena dos dotes fálicos e se prostitua numa assumida bissexualidade e, ao mesmo tempo, invective os homossexuais afeminados e, sobretudo, se esconda distanciadamente a contemplar a mulher casada que ama com uma paixão platónica capaz de tudo lhe sacrificar. Procura entender o que pode levar um rapaz a afeminar os gestos e os modos, com o prazer despudorado de ostentar a sua preferência homossexual e desafiar a moral e os bons costumes, para se oferecer como bode expiatório à hipocrisia social burguesa que não deixava de lhe proporcionar quantos amantes desejasse. Compreende a falsa dicotomia entre pureza e sordidez, dois elementos que ninguém no mundo está em condições de distinguir em si, porque são consubstanciais, em proporções distintas, a todo o ser humano: e assim há quem, em nome da pureza de um ideal, prostitua a irmã e não se importe moralmente com a proveniência do dinheiro que financia as suas actividades políticas ou, para realizá-las, é capaz de abandonar um amigo ou familiar que dele necessita; há regras profissionais de que a prostituta mais activa se recusa a abdicar por respeito a si mesma, enquanto as senhoras casadas e estromaníacas se dão à estroinice sexual e outras, por manterem a aparência da respeitabilidade, aceitam sacrificar-se ao matrimónio, mesmo se este, por comportamento adúltero e ofensivo dos maridos, perdeu toda a razão e dignidade; há amigos que, para obterem vantagens que sentem como para si imperdíveis, não se coíbem de trair outro amigo, mesmo sabendo que o condenam a uma degradação moral irreparável; há pais, familiares e amigos que são capazes de negar a identidade de um morto para não porem em risco a integridade e a respeitabilidade pública das suas vidas.

O núcleo energético que impele Jorge ao conhecimento de si e do mundo é o amor. Por ele age e por ele tudo sacrifica. Por ele se confronta com uma realidade inesperada e se lança no conjunto de experiências vivenciais, proeminentes e degradantes, eufóricas e disfóricas, de êxito e desilusórias, que, no seu conjunto, e também porque intensamente reflectidas, proporcionarão o desenvolvimento das suas faculdades, revelando de si facetas ignoradas, descobrindo novos sentimentos e emoções e uma capacidade inexcedível de reflexão diagnostica que passa a aplicar a todos os fenómenos da existência, sociedade, vida interior e inter-relação com os outros.

Atingido um determinado grau de maturidade, a vocação poética que um dia se manifestara e fora logo rejeitada regressa para ser recebida com curiosidade e interesse, pressentindo nela a faculdade mais valorosamente significativa 4a«sua vida. Por fim, é ele próprio que, deixando o espaço fechado do quarto e saindo para o ar «livre» das ruas sujas, miseráveis, degradadas, numa deambulação exploratória da Lisboa onde nascera e que em grande parte desconhecia, desenvolvendo conjugadamente a educação cívica e a educação estética, sente necessidade e vontade de escrever, uma vez reconhecida e aceite como intrinsecamente sua a voz que entrega à tarefa, simultaneamente meditativa, exegética e essencialmente criativa, da poesia.

Sinais de Fogo é, pois um Bildungsroman na medida em que é a história de um pedaço de vida do narrador-protagonista cujas possibilidades de realização como pessoa humana se disputam na inter-rela-ção e contra um clima (no sentido herderiano) que são as circunstâncias histórico-políticas, culturais, educacionais e morais do seu espaço-tempo, e também no interior de si mesmo, organismo epigénico e autotransformador; e, nesse processo de aperfeiçoamento e desenvolvimento das suas qualidades naturais, não pode contar com a educação da família (constituída por um casal desarmónico, um pai distante, ausente e adúltero, uma mãe que procura cumprir a função para que nada a preparara, mais por dever do que por cuidado amoroso, resignada, ignorante e temerosa dos factos da vida, da sexualidade à responsabilidade social), que não oferece ao jovem a afectividade equilibrada e os exemplos de harmonia vivencial, nem com a instrução das instituições de ensino (focado funcionariamente e exclusivamente nas matérias curriculares), que não prepara os jovens para a cidadania consciente e livre, não os conduz para mais interesses culturais complementares do estudo, não os cultiva para poderem co nhecer e desenvolver as suas qualidades e decidirem lucidamente as melhores opções na vida. Daí, não resta ao indivíduo senão autoformar-se, descobrir por si a sexualidade, o amor, os valores éticos, os comportamentos sociais, as estratégias vivenciais, a responsabilidade cívica e política que lhe advém da consciência do mundo em que habita e, no caso de quem prova o dom, o modo de tornar lúcidas as suas emoções pela expressão poética.

Sinais de Fogo realiza dialecticamente a superação dos contrários, que esteve na génese do Bildungsroman, no que ao jovem protagonista diz respeito: pelo confronto com uma situação política opressora, despótica, desequilibrada, intranquilizadora, ele ganha para a vida o sentido autonómico que, crítico do egoísmo da ignorância ou da submissão, gera a responsabilidade cívica; pela desilusão com uma sociedade repressiva, mesquinha, hipócrita, reles, toma consciência das razoes que tornam impossível, sem a desdignidade de uma resignada complacência, a socialização harmónica; pela amargura da ausência de verdadeira afectividade e genuíno desvelo no seio da família, que por esses valores se devia justificar mais do que por motivos institucionais de normalidade social, compreende a contrario os sentimentos que podem estruturar as ligações humanas saudáveis e felizes; por todos os dissabores e bem-aventuranças do intensíssimo desenvolvimento da relação erótica, ele alcança, na sua aparente derrota, uma aprendizagem de vitória do amor sobre a morte – é toda esta oposição de contrários que se resolve na terrível, penosa e magnífica descoberta que Jorge faz da sua voz própria e na deliberação de realizar a vocação de ser poeta, pelo que o Bildungsroman se faz Künstlerroman.

Sinais de Fogo é um Bildungsroman e simultaneamente um Künstlerroman que se integra no projecto de dinâmica crítica da Modernidade estética, na medida em que: por um lado, recupera o valor narrativo da autoformação enquanto empenhada energia metamórfica do jovem protagonista no aperfeiçoamento das suas faculdades naturais, da maturação consciente nos vários campos da existência e da responsabilidade individual na inter-relação com a sociedade a que pertence; por outro, representa o desenvolvimento autoformativo através do desamparo e contra as normas repressivas das instituições, mas sem perder a esperança na evolução da condição humana (o que, obviamente, não é o mesmo que a confiança no seu progresso técnico-científico), na qual se deverão empenhar todos os seres bem formados, pelo desenvolvimento da consciência moral de cada um para agir de acordo com as capacidades próprias. Sinais de Fogo realiza, assim, a superação dos contrários que esteve sempre na génese do romance de formação: porque é precisamente a desilusão, a aparente derrota vivencial, no plano erótico, amoroso e afectivo em geral, tanto quanto no plano político e ético da vida em sociedade, é a impossibilidade de levar a existência tradicional de filho da classe média acomodado, idealmente equilibrada, conciliadamente serena, perfeitamente feliz, é a falha da socialização harmónica num clima desprezível que permite ao protagonista o terrível, extraordinário, penoso e magnífico triunfo de descobrir e realizar a suprema vocação de ser poeta.

 

* in Jorge de Sena: Sinais de Fogo como romance de formação. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010. pp.407-416.