Jorge de Sena e as pequenas metamorfoses

Sinais de Fogo e Metamorfoses são os principais livros de Sena abordados neste ensaio de Fernando Cabral Martins, que, muito gentilmente, reviu e corrigiu o texto anteriormente publicado especialmente para esta edição no site LJdS.
 

Desenho de João Vieira "expressamente executado" para a 1ª edição de Metamorfoses
Desenho de João Vieira “expressamente executado” para a 1ª edição de Metamorfoses

“Sinais de Fogo, os homens se despedem, / exaustos e tranquilos, destas cinzas frias, / lançando ao mar os barcos de outra vida” (Jorge de Sena, Sinais de Fogo, Lisboa, Edições 70, 1979: 427-428). Uma interpretação destes versos, assim aparecendo em Sinais de Fogo, destacando-se de súbito da prosa mas ainda próximos dela, é a de uma escrita que a si mesma se pensa no acto de ser gerada. No romance, a frase anterior de que são uma evolução há-de ainda ter mais tarde outra metamorfose em verso, mais extensa, que definirá com maior precisão a escrita do poema como criação de “sinais de fogo”. É de uma variabilidade das versões, e de uma autonomia relativa de cada uma delas, que é também questão. Mas a fase intermédia que citei tem sobretudo a ver com a fábula e as suas peripécias. E tem a ver com o seu género próprio: é um romance de aprendizagem, um bildungsroman, em que se dá a transmutação das “cinzas frias” nos “barcos de outra vida”, de outra idade. Nisso, aliás, se parece com outro dos maiores romances portugueses do século XX, Nome de Guerra, de Almada Negreiros. É, em ambos, de uma mesma bildung, de uma mesma metamorfose que se trata. Aquela que permite a chegada da escrita.

 

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Jorge de Sena nasceu em 1919 e morreu em l978: não viu a primeira edição de Sinais de Fogo, em 1979. A escrita do romance ocorreu entre 1964 e 1967. Deveria ter sido o primeiro de uma série, de título geral Monte Cativo, de que haverá outras passagens em Os Grão-Capitães, por exemplo, texto narrativo fragmentário que é claramente do mesmo tipo de labor do romance: a escrita tem o mesmo tónus realista, as personagens parecem esboços de outras pertencentes à saga que Sinais de Fogo implica. Assim, uma ideia que circula em torno de Sinais de Fogo é o de ser apenas uma pequena parte do que a vida não deixou que fosse mais. No entanto, Sinais de Fogo deve igualmente ser lido como um romance completo. A que não falta nada, e que não faz parte de nenhum conjunto, mesmo virtual. Uma parte dele é publicada em 1968 na revista O Tempo e o Modo, sob o título Aparição da Poesia. Em 1966 tinham-se editado Novas Andanças do Demónio, recolha em que um dos contos mais importantes, Super Flumina Babylonis, trata também desse preciso instante da “aparição” do poema. Este contexto histórico e bibliográfico parece remeter Sinais de Fogo para um romance da criação poética. O primeiro sentido que aqui se pode deixar ler é o de um poeta que fala de si sob a forma de romance, ou até, o de um romance que fala da poesia. Ou de um testemunho, se quisermos empregar a palavra de Sena. Ou de uma introdução geral à poética que assume.

 

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Jorge de Sena, que tinha catorze anos no instaurar do Estado Novo, viveu a experiência de um país e de uma cultura abafados por uma inquisição política, económica, cultural e moral. Os que tinham pertencido a gerações anteriores ainda conseguiram escapar a essa calote opressiva, insuportável para quem se alimenta, como o artista, de liberdade. Pessoa, Almada ou Sá-Carneiro fizeram todas as revoluções. Os que vieram depois, como Régio, Gaspar Simões ou Casais Monteiro, viram-se e desejaram-se para aguentar a pesada herança do Modernismo. Quanto aos neo-realistas de 40, ninguém os pôde calar, com liberdade ou sem ela. Mas os homens de 50? Aqueles que Pedro Oom disse viverem nada menos que o Abjeccionismo? Um surrealista dos maiores, Aexandre O’Neill, passou a vida a pedir desculpa de ser português, de continuar a viver em Portugal e ainda persistir em escrever poemas. Jorge de Sena foi dos que partiram. Preferiu-se longe da sua pátria. Não foi um insigne ficante. Quando escreveu Sinais de Fogo, ele contava o mundo em que se formou, reconstituía o Portugal de onde tinha emergido, apontava para a experiência terrível de vir ao mundo num país subjugado, irrespirável. A sua reconstituição de memória é uma vingança e um exorcismo. Daí a violência que inunda o romance. Violência por vezes impossivelmente, ridiculamente radical. Neste sentido, é um romance que não era para ser lido, era só para ser escrito.

 

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Num livrinho publicado pelos cuidados de Mécia de Sena, chamado Sobre o Romance, e que recolhe sobretudo artigos da década de 50 – da década anterior à produção de Sinais de Fogo, portanto – para além dos prefácios às traduções famosas que fez de tantos ficcionistas importantes da língua inglesa, como Faulkner ou Hemingway, Jorge de Sena cita Proust e Thomas Mann como as grandes luminárias do romance moderno. Também fala de Conrad, de Gide, e mostra conhecer a obra de Joyce e dar-lhe todo o valor que tem. Mas os nomes de Proust e Thomas Mann é que marcam, e retornam com insistência. Em 1976, dois anos antes da sua morte, Jorge de Sena começa um esboço de ensaio sobre Thomas Mann, a que Mécia de Sena, ao integrá-lo na colectânea a que me refiro, dá o nome adequado de “Ainda Thomas Mann”. Thomas Mann que pertence a uma grande cultura, a germânica, pouco conhecida pela nossa atenta veneração dos franceses. Thomas Mann que, como ele, Jorge de Sena, se exilara por, num momento dado, o ambiente político em que o seu país vivia o ter feito mudar de país. Quanto à hipótese de que Proust possa constituir um modelo do romance para Jorge de Sena, eis o que tende a tornar-se evidente. Por exemplo, a lição de Proust ilumina o gosto pelas expansões enormes de umas cenas e não de outras no fio do tempo contado, como certa discussão com os espanhóis escondidos ou a última noite com Mercedes. Outro exemplo é a ressonância das memórias fina e minuciosamente descritas, em que os acontecimentos passados ganham ganham outros contornos, outra verdade. Depois, a perfeita estruturação do episódio central, simetricamente colocado entre duas partes cujas relações com ele e entre si são tudo menos transparentes, nessa íntima desarticulação semântica que uma finíssima rede tece de uma espécie de pensamento abstracto, é também de leitura proustiana. Isto além de o protagonista e narrador se chamar simplesmente Jorge, raramente nomeado – o que é uma citação óbvia da forma de nomeação, Marcel, que é a do narrador do romance de Proust. De novo quanto a Thomas Mann, a relação que o romance estabelece com a sua obra monumental é, desde logo, a utilização do mesmo tipo de postura realista típica, a sua posição moral perante os discursos que transcreve. Do mesmo modo, Sena deduz de certas ideias quer personagens quer episódios. O artificial de um personagem como o Rodrigues, cuja cuja característica é, desde o início, o tamanho do seu “equipamento”, tem a dimensão mítica, transpessoal, arquetípica (e quase caricatural) de um Settembrini, por exemplo. E, por falar na Montanha Mágica: de onde é que vem, se não desse romance, a concepção de uma extraordinária viagem de fim de adolescência até ao lugar do amor e da morte, do fogo e da noite?

 

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Sinais de Fogo é um romance cujo tema só tarde se revela. Trata-se do nascimento do poema. Torna-se, assim, um romance metaliterário, e o ser sobre palavras e o modo como elas surgem marca a coerência autotélica da narrativa – que constrói um efeito culminante de sentido, que é a experiência física que as palavras são, aquilo que de sangue e de esperma e de suor há nas palavras que são ditas poesia. É um romance de Jorge de Sena sobre o poeta Jorge de Sena, em que um conta o outro, num desdobramento que permite precisar o sentido do nome “Jorge” do protagonista e, ao mesmo tempo, separar com nitidez esse nome do nome do autor.

 

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A última cena da quarta parte do romance é uma montagem minuciosa de dois discursos, o da busca da verdade e o da pornografia. Enquanto participam de uma orgia, dois personagens trocam impressões que revelam a última face escondida da história. O mistério que envolvia a morte central é dissipado – tanto quanto qualquer mistério o poderia ser, nesta narrativa em que a ambiguidade e irracionalidade de tudo é olhada de frente. A razão formal dessa intersecção entre dois discursos o mais afastados possível não reside apenas na ideia nuclear da afinidade entre o corpo que goza e o corpo que morre. E, do mesmo modo, a descoberta do cadáver do irmão, pela mesma rapariga que regressa com o namorado de uma noite de amor, não “significa” necessariamente que o amor e a morte estão ligados no mais fundo de todas as histórias. Esse “grande tema” é que, precisamente, se encontra desarticulado por esse conjugar das duas versões e pela montagem entre os dois discursos. A montagem que, por sua vez, é o procedimento maior da arte moderna. A montagem concebida como operadora de metamorfoses.

 

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Metamorfoses, Jorge de Sena, 1963. A poesia das imagens. Tratar o tema horaciano ut pictura poesis com base nos sentidos que foi tomando de emblema realista ou figurativo. “A poesia é como a pintura”, eis o refrão do classicismo em vulgata. Na verdade, e porque Jorge de Sena é filho do classicismo perverso de Ricardo Reis, o lema de Horácio tem que ler-se, aqui, ao contrário: “a pintura é como a poesia”. Metamorfoses – poemas sobre objectos visuais, espaciais, tácteis, reprodutíveis analogicamente sob a forma de gravuras num livro. Depois, Arte de Música, de 1968, compõe “metamorfoses musicais”, como em subtítulo aparece dito, de certos objectos sonoros, mas a grande diferença é que não é deles que é questão, mas antes da impressão, do prazer, das ideias, do silêncio que se agarram a uma experiência intransmissível – que é a experiência da música. Curioso que a própria matéria sonora, a música, tão evidentemente escape ao livro, que deveria aspirar, ao ser lírico, a ser arte de música também. Logo se conclui que são corpos no espaço, as palavras. A poesia é escrita, é visual, e é inscrição numa rede de relações. A própria música é dada como pura ocupação do espaço. A provar isto, por redução ao absurdo e no ponto em que os dois livros estrategicamente se ligam, eis a charneira que constituem os Quatro Sonetos a Afrodite Anadiómena: uma língua de jogo, uma trama fonética, lirismo absoluto, partitura ultracodificada, (quase) totalmente exterior ao sentido. Quer dizer, a poesia enquanto música é-o à custa do sentido, a música é o desfazer das imagens. A poesia como pintura é, ao contrário, a produção de sentidos que as imagens suportam e ecoam.

 

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Tome-se o último poema de Metamorfoses: A Morte, o Espaço, a Eternidade. A morte é o fim do tempo, ou o momento em que o tempo se converte em espaço. Só que o objecto reproduzido em gravura não é, como nos outros dezanove casos, de alguma arte plástica, mas um simbólico design de ciência e história: o primeiro satélite artificial da Terra. O choque entre a eternidade convocada pelo título do poema e a historicidade do Sputnik abre para a identificação desse objecto voador no firmamento das palavras – e demarca-se da artificialidade e da ficcionalidade da sua representação fototográfica.

 

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Esta é uma poesia do tempo da proliferação das imagens. A contemporaneidade de todas as imagens, ou a simultaneidade delas por via da sua infinita reprodutibilidade técnica, não as faz, em Metamorfoses, banalizarem-se. Cada poema as recolhe e as aceita, transformando o acto de ver uma imagem num outro acto: o de imaginar a partir de e sobre a imagem. O que, sendo feito por palavras, pode ser dito simplesmente o acto de pensar. Mas não desdobrando um pensamento ordenado, ou de qualquer modo preso a regras ou estruturado em ficções, antes pondo em jogo um pensar emocionado, cativado pelas imagens que escolhe pensar, imagens que habitaram longamente consigo, e que na sua presença (quase) perfeita (a imagem fotográfica transporta-se no tempo e no espaço) podem ser então o objecto de uma metamorfose. Ou, mais modestamente, participarem num processo de alteração, de desunificação, de refundição das imagens. É uma poesia de revoluções mínimas, de alquimias invisíveis cujo alcance se não pode conhecer por completo. Uma poesia de reescritas, de alterações do ponto de vista, de inclinações do olhar, de montagem por dentro do sentido, como se o sentido fosse ele mesmo o resultado de uma montagem.

 

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Esta poesia não transforma o mundo, transforma as imagens que nós temos do mundo. O que é a metamorfose por excelência – se quisermos, a própria revolução. É por imagens que vivemos, são as imagens que nos alimentam o prazer e a esperança. Transformar as imagens que temos do mundo, “lançando ao mar os barcos de outra vida”, é o primeiro passo para mudarmos os modos do prazer e os conteúdos da esperança. Nenhuma coisa está imóvel, porque, se a imagem dela pode mudar, alguma coisa dela muda também. E a sedução da poesia não é só orientada para a produção de um mundo simultâneo, mas de um mundo possível, que nega este na sua miséria. Se a poesia, no caso destas Metamorfoses, escolhe cuidadosamente imagens que já existem, e que na página par nos são mostradas, é para tornar evidente qual o material de que é feita, qual o material que trabalha. É sempre de imagens que se parte, são imagens que se analisam, são imagens aquilo que pode ser por imagens de poesia transformado. A poesia é como uma análise prática do modo de produção de sentido que nos faz viver (com) as nossas imagens. É como uma representação que pensa a representação: e a meta-representação trabalha aqui um material entre todos frágil, que parece mero efeito (imagem) de outras coisas (História, Autor, Ideia), mas tem uma realidade e uma eficácia produtiva que vão muito além dessa sua aparente natureza de reflexo ou de sombra.

 

[*] Fernando Cabral Martins é Professor do Depto. de Estudos Portugueses da Universidade Nova de Lisboa.

[**] Primeira publicação: Sentido que a Vida Faz, miscelânea de homenagem a Óscar Lopes, Porto, Campo das Letras, 1997.
Repr. em F.C. Martins, O Trabalho das Imagens, Lisboa, Aríon, 2000.