A Correspondência entre Jorge de Sena e João Gaspar Simões

Depois de editar a correspondência trocada entre Jorge de Sena e Delfim Santos (seu pai) — ver Novas Edições e Novas Obras: Jorge de Sena e Delfim Santos (outubro/2012) e 21. Jorge de Sena e Delfim Santos, Correspondência: Estudo Introdutório –, Filipe Delfim Santos acaba de editar o carteio entre Jorge de Sena e João Gaspar Simões, amplamente contextualizado graças a preciosos anexos e a notas abundantes e rigorosas. Do excelente estudo introdutório que assinou para o volume,  transcrevemos os dois fragmentos abaixo, a darem prova do importante diálogo já disponível nas livrarias. Ao autor, nossos agradecimentos pela primazia que nos concedeu.

 

Lisboa, 1944/45 - "Jantar do dia 13" em casa de Ribeiro Couto (da esq. para a dir.): sentados, António de Navarro (um pouco afastado), Thomaz Kim, Ribeiro Couto, Dário Martins, José de Almada Negreiros, Giuseppe Carlo Rossi e Jorge de Sena; de pé, Branquinho da Fonseca, Fernando Abranches Ferrão, (?), João Gaspar Simões, António Dacosta, Joaquim Ferrer, (?), (?), Carlos Queiroz e Adriano de Gusmão. (Foto: Quaderni portoghesi, Pisa, n. 13/14, 1983).
Lisboa, 1944/45 – “Jantar do dia 13” em casa de Ribeiro Couto (da esq. para a dir.): sentados, António de Navarro (um pouco afastado), Thomaz Kim, Ribeiro Couto, Dário Martins, José de Almada Negreiros, Giuseppe Carlo Rossi e Jorge de Sena; de pé, Branquinho da Fonseca, Fernando Abranches Ferrão, (?), João Gaspar Simões, António Dacosta, Joaquim Ferrer, (?), (?), Carlos Queiroz e Adriano de Gusmão. (Foto: Quaderni portoghesi, Pisa, n. 13/14, 1983).

 
Cartas a um jovem poeta 

Os dois escritores conheceram-se em 1939, como o mais velho entre eles evoca: «Pois não o conhecemos nós, aí por 1939, seriamente afectado por uma doença de ouvidos? E aquele soldado cadete do regimento de Penafiel não será, por uma pena, o estudante de Engenharia que nos foi dado conhecer numa das tertúlias de Lisboa, onde ele então aparecia como aprendiz das letras?» [1] Era pois nessas múltiplas tertúlias que os conhecimentos se faziam e as amizades nasciam – onde não mais se derrubavam governos pela manhã para serem reinstalados pela tarde, como se dizia das do tempo da República, mas se discutiam agora temas estéticos e literários e se articulava a colaboração para revistas (quando estas não eram feitas à mesa dos próprios cafés), tema sobre o qual algo já ficou dito na edição do carteio de Jorge de Sena com o filósofo Delfim Santos, entretanto vinda a lume em 2012.

Quando em 1943, quatro anos após o primeiro encontro, se inicia o diálogo epistolar conservado, já Jorge de Sena se estreara poeticamente no ano anterior e Gaspar Simões de imediato resenhara a sua Perseguição. Levara agora o jovem poeta, então nos seus vinte e três anos, para a equipa de tradutores, revisores, prefaciadores e anotadores de que se fizera cercar na Portugália Editora, casa fundada em 1942 aproveitando a efervescência editorial dos anos da Guerra.

Pesem embora as estâncias estivais de Jorge de Sena na Figueira da Foz, terra natal de Gaspar Simões e em cujos anos 30 se ambientariam os senianos Sinais de Fogo, foi no quadro da direcção literária da Portugália por Gaspar Simões que começou verdadeiramente, como escreveu Mécia de Sena na carta de 13.11.1984, «aquela amizade firme que vos uniu e se reatou, com a mesma firmeza, após anos de turvas dissidências. E acredite que, mesmo quando explodia de invectivas, ele jamais esquecia aquele apoio que lhe dera no seu começo de carreira...». O que é confirmado pela carta de 15.01.1977 na qual Jorge de Sena regista comovido que o amigo ainda «se recordava do menino literato de há cerca de quarenta anos».

As primeiras epístolas referem-se aos trabalhos de estreia de Jorge de Sena nas lides editoriais: tradutor de Edgar Allan Poe, revisor dos termos científicos e técnicos da tradução tripartida dos Contos Americanos e sobretudo introdutor em Portugal do romântico inglês Thomas Love Peacock (1785-1866), a respeito do qual irá escrever um prefácio e um comentário ricos de sugestões. Neles retrata os últimos tempos da Guerra, encontrando «nas massas possessas, hoje, de irresponsáveis conceitos quer de liberdade, quer de autoridade» o choque do embate final de dois estádios sucessivos do romantismo histórico: o originário, que considera ser o da democracia aristocratizante e privilegiada, do comércio capitalista, com aquele que lhe reagiu, do «amor da noite misteriosa, da terra maternal, do povo primitivo, a autarquia, o chefe, o Tristão e Isolda»; comuns a ambos as raízes, o pendor messiânico, a vontade de derramamento de sangue próprio e sobretudo alheio; e se em 1943 ainda deixa suspensa a interrogação sobre a síntese que advirá desta colisão das duas heranças românticas, em 1958, quando o livro será finalmente publicado, já poderá nitidamente enunciá-la: a distopia estalinista de sombras orwellianas e o horror atómico, corolário último de uma ciência frankensteiniana, para evocarmos o engendro científico de Mary Shelley, a esposa novelista do maior amigo de Peacock, Percy Shelley. E é precisamente a Defesa da Poesia de Shelley, então ainda não traduzida nem disponível em Portugal, que Jorge de Sena pede emprestada a Gaspar Simões em uma das missivas aqui publicadas, o que bem documenta o cuidado e interesse que colocou nesta sua incursão pelo romantismo, uma das primeiras da sua carreira de estudioso da literatura. Gaspar Simões mostra-se compreensivo perante os apelos de Jorge de Sena para que colmate com encomendas editoriais a difícil situação financeira em que ele se encontrava; serão esses trabalhos que lhe permitirão terminar os estudos de Engenharia, ameaçados ademais por uma conjuntura familiar adversa. O solidário patrono lembra-lhe que já passara por iguais ou maiores angústias, dado que casara ainda estudante e sem o beneplácito paterno.

Já em 1944, Jorge de Sena lê a sua tragédia O Indesejado em casa de Gaspar Simões, em Cascais, leitura da qual ambos conservaram sempre profunda e grata recordação.[2] E em carta à sua futura esposa de 20.12.1945 regista com visível agrado as palavras favoráveis pronunciadas pelo presencista, por ocasião de nova leitura da mesma obra um ano depois.

E quando, em 1945, Gaspar Simões é despedido da Portugália e contacta o advogado Arlindo Vicente (antigo colaborador da presença que entretanto se formara em Direito e exercia agora em Lisboa) para processar os seus antigos patrões, Jorge de Sena oferece-se para testemunhar em seu favor, mas é dissuadido dessa lealdade pelo próprio Gaspar Simões que prefere salvaguardar as futuras relações do jovem amigo com a editora. O processo acabou por não seguir adiante e Gaspar Simões, que trabalhava também na editora Ática de Luís de Montalvor (igualmente fundada em 1942 e com nome que simbolicamente continuava a revista Athena) – com quem organizara e publicara, entre 1942 e 1945, a primeira edição da obra pessoana – tinha agora novo projecto para os anos seguintes: um volume colectivo que viria a constituir um panorama monumental da literatura do século anterior.[3] Para esta obra traz de novo o jovem Jorge de Sena, já não como tradutor mas como co-autor, apoiando-lhe assim a carreira nascente: porém, tendo-lhe adscrito o capítulo sobre Guerra Junqueiro (um mal-aimé pelos presencistas), opta por solicitar-lhe antes o estudo de Gomes Leal por julgar pressentir no amigo maior interesse por este poeta, satírico como Junqueiro mas poète maudit por excelência, blasfemo e satânico – curiosamente um dos fundadores do jornal O Século de que Gaspar Simões virá a ser o último director e de onde dirigirá a Jorge de Sena, trinta anos depois, nova proposta de colaboração. Um hiato tão extenso entre convites poderia dever-se ao facto de o escrito seniano sobre Gomes Leal, entregue em 1947, quase um ano depois de solicitado, não ter satisfeito o comitente, que lhe lamenta a reduzida extensão e fôlego. Mas algum estranhamento entre ambos provinha já pelo menos de 1946, como o comprovam as entradas diarísticas de Jorge de Sena datadas de Março desse ano, nas quais se nota uma franca animosidade para com o seu antigo protector.

Um final feliz para a história de uma amizade

A amizade entre Jorge de Sena e João Gaspar Simões poderia ter acabado assim, no distanciamento e isolamento mútuos. Não foi, porém, o que aconteceu, sobrevindo um espectacular volte-face que reverteu à antiga afinidade a relação entre os dois. As pazes chegaram pelos bons ofícios e a expressa recomendação de Rui Knopfli, vazada epistolarmente, que «fica a gostar de Gaspar Simões» pela pública justiça por este feita a Jorge de Sena em intervenção televisiva. Um reatamento que não foi sem grande surpresa para aquele, que escreve então a um amigo: «Devo ir, no princípio de Outubro, à América do Norte, onde falarei sobre o Pessoa em Providence e em York. É possível que vá até à Califórnia na mesma situação. Assim o deseja o Jorge de Sena – meu amigo agora, depois de ter sido meu grande inimigo».[4]

Para Gaspar Simões este é um momento áureo. A 12.05.1977 escreve publicamente que «Foi mesmo isso, o eu não ter deixado de prestar jus ao seu alto valor, não obstante os desentendimentos pessoais que nos tinham afastado, que determinou, a partir de certa data, o reatamento das nossas relações, primeiro com troca de livros, depois com troca de correspondência». Era este o trunfo que Gaspar Simões sempre usava na sua apologia: o não incensar amigos nem depreciar as obras de desafectos. Tinha, pois, a seu indesmentível favor, a constante leitura pública da obra seniana, de que fora o primeiro e o mais assíduo dos comentadores, e isso lhe possibilitou afirmar com incontido orgulho, na evocação de 25.05.1978 das celebrações do cinquentenário presencista de 1977:

E Jorge de Sena, que comigo se incompatibilizou muitos anos atrás, interrompendo, mesmo, toda a espécie de relações literárias com a rubrica que sempre mantive na imprensa portuguesa, pôde verificar que, apesar disso, quando à minha mão chegavam livros seus dignos do meu aplauso, eu os aplaudia, e com tanta imparcialidade que ele acabou por vergar-se se não ao meu padrão crítico, pelo menos à minha condição de homem de carácter.

Se é verdade que Jorge de Sena se predispôs a retomar a antiga estima por Gaspar Simões devido ao providencial tuyau de Rui Knopfli, há também que realçar a diligência e empenho com que procedeu a esse restabelecimento da cordialidade na carta de 15.01.1977. E em tão boa hora Jorge de Sena o fez que pôde igualmente prestar justiça à própria presença nas celebrações do cinquentenário desta, e a Gaspar Simões foi possível associar-se nos Estados Unidos à última aparição pública do amigo, justamente para celebrar aquele mesmo Fernando Pessoa que a ambos tanto fascinara. Se Jorge de Sena procurara outras leituras de Pessoa, já pós-presencistas, nem por isso deixará de reconhecer, na carta a George Monteiro de 07.01.1977, que sem a acção de Gaspar Simões como editor da obra de Pessoa e seu biógrafo «oficial», este não teria provavelmente sobrevivido ao esquecimento e ao final obscuro que a sua vida tivera.

O abraço de Gaspar Simões e Jorge de Sena após décadas de afastamento adveio por fim durante as celebrações presencistas que decorreram em Coimbra, no Museu Machado de Castro, a 07.06.1977, que ambos comemoram já en toute amitié. Tenha-se presente a nota de Março de 1977, que Jorge de Sena apusera à introdução d’O Físico Prodigioso, comentando a crítica «que João Gaspar Simões houve por bem dedicar às Andanças e Novas Andanças do Demónio, com palavras de fina sensibilidade e inteligente compreensão, e sobretudo em termos de valorização desses dois livros e muito especialmente deste ‘físico prodigioso’ os quais excedem quanto, em juízo valorativo, um autor possa sonhar para obra sua. Este P. S. não poderia deixar de ser aqui gratamente consignado».[5]

Curiosamente, quando nos Estados Unidos os dois escritores se reúnem de novo, quatro meses após o encontro em Coimbra, de tal forma se mostram efusivos em abraços que os circunstantes são levados a pensar que seria aquele o ansiado momento da renovação dessa amizade de quase quatro décadas, como se lê no texto (e mesmo no título) do testemunho de George Monteiro, Speech, after Long Silence: «it was their first meeting after years of acrimonious dispute…», escrito para esta edição e publicado em Anexo. Igualmente na crónica em que Onésimo Teotónio de Almeida evoca o mesmo reencontro, escrita recentemente por nosso convite, se pode ler que «não se falavam há muito...», [6] ao que se soma o que Mécia de Sena nos narrou sobre o abraço de ambos já no corredor do hotel em que se hospedaram, onde emocionados «choraram nos braços um do outro como duas crianças grandes». A sensação de que era na América que os dois amigos voltavam a dar o ansiado abraço após tão longo desencontro, sendo embora factualmente inexacta, captou antes a verdade e a veemência de um sentimento cuja tocante expressão lhes foi dado assistir. Confirma-o a comoção com que um mês depois, em Itália, Gaspar Simões narrava que Jorge de Sena, ao apresentá-lo em Providence, «Pediu-me, em plena cerimónia, que guardássemos um minuto de silêncio pelos mortos da presença!». E ao lembrar esse momento «desatou a chorar à nossa frente».[7]

 

Notas:

1 – João Gaspar SIMÕES (1976) Resenha crítica de Jorge de Sena ‘Os Grão-Capitães’, Diário de Notícias, Lisboa, 18.11, 17, reeditada nesta obra. Trata-se de uma referência ao «Café Chave de Ouro, no Rossio, que não existe já, e que era então um dos quartéis-generais, senão o quartel-general, do modernismo. Aí se reunia quase toda a gente que vivia em Lisboa, e aí apareciam os que a Lisboa vinham de vez em quando. Havia várias presidências de mesa, então apenas cordialmente hostis umas às outras, e que eram regularmente ocupadas por Gaspar Simões, Casais Monteiro e José Osório de Oliveira». Jorge de SENA (1968) Quem é Jorge de Sena (à maneira de Curriculum), O Tempo e o Modo 59, 306-312 e http://www.letras.ufrj.br/lerjorgedesena.

2 – Gaspar Simões refere este facto na resenha de 21.11.1974; quanto a Jorge de Sena, leia-se o testemunho de Mécia de Sena na carta de 13.11.1984 e respectiva nota.

3 – Seria publicado como: João Gaspar SIMÕES org. (1947, 1948) Perspectiva da literatura portuguesa do século XIX: de Silvestre Pinheiro Ferreira a José Duro, com gravuras em madeira de Abel Manta e colab. de Delfim Santos & al., 2 vols., Lisboa: Ática (o volume 2, onde se insere o texto de Jorge de Sena, é de 1948).

4 – Carta de 27.04.1977, apud Manuel POPPE (2001) Memórias, José Régio e Outros Escritores, Vila Nova de Famalicão: Quási, 196.

5 – Jorge de SENA (2009) O Físico Prodigioso, ed. Gilda Santos, Rio de Janeiro: Ed. 7Letras, 21.

6 – Onésimo Teotónio de ALMEIDA (2012) Em Providence, com os minotauros, Revista Ler, Livros & Leitores 117, Lisboa, 93. Disponível em http://www.letras.ufrj.br/lerjorgedesena/port/vida/testemunhos/ texto.php?id=471.

7 – Manuel POPPE (2001) Memórias, José Régio e Outros Escritores, Vila Nova de Famalicão: Quási, 184.

Veja também:
– Em Providence, com os minotauros
– Jorge de Sena “Estrangeirado”