“Nunca sai certo o momento a que se volta”: os espelhos deformantes em O Físico Prodigioso

Marcelo Pacheco Soares*

 

 

 

Marcelo Pacheco Soares, que já se dedicara à novela seniana em sua dissertação de Mestrado, neste ensaio inédito, gentilmente cedido para nosso Ler Jorge de Sena, observa com argúcia as muitas manifestações de especularidade presentes na narrativa, tangenciando as evidentes e múltiplas transgressões, já apontadas pela crítica, a parâmetros em vigor nos anos 60, quer no Brasil (onde foi escrita, em 1964), quer em Portugal (onde teve a 1a. edição em 1966).

 

              Afastaram-se um do outro, desconfiados e gelados de medo.  Cada um pegou de um círio, e veio então observar o rosto do outro.  Apesar dos capuzes, via-se que estavam louros.  Os rostos eram juvenis, resplandecentes, e cada um reconhecia o rosto que haviam destruído. (SENA, 1983, 102, a seguir, referiremos essa obra apenas com a indicação de página)

 

Na cena acima de O Físico Prodigioso, de Jorge de Sena, a especularidade é latente. Nela, dois freis, face a face, realizam simultaneamente os mesmos movimentos, experimentam as mesmas sensações, apresentam as mesmas reações, padecem do mesmo castigo, levando o primeiro a ser imagem do segundo e vice-versa, como se houvesse entre eles uma superfície refletora — a qual no entanto não há.  Esse é apenas um dos incontáveis excertos da novela em que podemos reconhecer um processo especular, todavia, curiosamente, um espelho propriamente, concreto e presente, não tem lugar na narrativa. A cena citada quiçá fosse uma boa oportunidade para a aparição do objeto, assim como o seria a passagem em que se descreve com minúcia o feminino quarto da protagonista (que aliás por vezes aproxima-se da figura da deusa Vênus, cujo espelho tornou-se símbolo da mulher) ou outras que em que o espelho auxiliaria a representar o narcisismo do herói ou mesmo um instrumento mais fácil de verificação da invisibilidade do protagonista do que o método de observar “se, pondo as mãos uma sobre a outra, continuava vendo as duas” (43): entretanto, a despeito de tantas especularidades simbólicas a permear a trama, concretamente o espelho não se apresenta. E eis que o reconhecimento do diabo acerca da condição de um dos freis da narrativa — “nunca te viste a um espelho” (113), assevera — corrobora essa inexistência. Suas ocorrências quando muito são substituídas por próteses suas, superfícies líquidas por exemplo, ou surgem em circunstâncias mais elaboradas, como a da cena citada. A presença tão latente dessa ausência, por isso, desperta nossa atenção.

Para compreendê-la, resgatamos um trecho do conto “El jardín de los senderos que se bifurcan”, do argentino Jorge Luis Borges, em que encontramos o seguinte diálogo: “- Em uma adivinanza cuyo tema es el ajederez, cuál es la única palabra prohipida? Reflexioné un momento y repuse. – La palabra ajadrez.” (BORGES, 1956, 113) Ora, sendo as referências a relações de especularidade uma constante tão manifesta nessa narrativa, conforme demonstraremos, o fato preciso de não surgir cenograficamente (ainda que de fato haja menção à palavra, mesmo quando a reforçar sua ausência[i]) parece-nos uma evidência de que o espelho seja na verdade justamente a peça chave da compreensão da obra, a resposta à charada da novela, o resultado que precisamos encontrar para essa adivinanza seniana.  Em função dessa percepção é que apostamos numa investigação sobre esse tema como forma eficiente de tocarmos os sentidos de O Físico Prodigioso.

 

A novela

Único trabalho dentre os muitos escritos de Jorge de Sena que o próprio autor categorizou como novela, essa obra fornece a parte final – ou aparentemente final – da trajetória do personagem-título, cuja rotina é caminhar a esmo pelo mundo curando doentes através dos poderes de que é investido pelo uso de um gorro mágico, artefato com que fora presenteado na infância por sua madrinha, mulher que o criara, e que ratificava um pacto com o Diabo, personagem que o acompanha por toda a vida. Esse primeiro traço do Físico, o de viandante, nos remete a dois importantes aspectos. O primeiro está relacionado à marca itinerante da poética seniana, como podemos comprovar já pelos títulos de outras obras, tais como o do volume de poemas Peregrinatio ad Loca Infecta ou os das duas coletâneas de contos conhecidas sob o nome de Andanças do Demónio, em um dos quais afinal a novela fora publicada pela primeira vez. A segunda referência consequente do fato de o personagem principal ser um andarilho está in petto ligada à ambientação medieval da novela, o que aproxima logo o Físico de um cavaleiro andante. Na narrativa, a trajetória do Físico alcança o ponto culminante: sua chegada a um castelo no qual encontra convalescente a sua castelã, Dona Urraca, figura feminina que pela primeira, única e derradeira vez logra prender o herói por um estreitíssimo vínculo afetivo que o fará optar por permanecer no lugar mais do que seria o costume e lhe permitirá aceder a um elevado nível de autoconhecimento, o que provocará nele, primeiramente, o desejo de interromper a sua já longa caminhada, e em seguida, numa radicalização dessa ideia, o desejo de morrer. Dotado que é de poderes, o Físico terá a sua vontade prontamente atendida e, assim, os dias de prazer incomensuráveis que experimentara em companhia de Urraca (e das donzelas do castelo) serão bruscamente interrompidos por um processo inquisitorial que aprisionará o casal de amantes e os conduzirá à morte. Mas o perecimento não será definitivo e ao fim da novela assiste-se ao renascimento dos personagens num novo e inominado casal – um reflexo do primeiro – cujo encontro estará novamente catalisado pela ação do gorro mágico, modo de sinalizar ainda uma vez a onipresença da figura do Diabo não apenas no que houve, mas ainda no que estaria por vir, o que reforça a referência ao espelho na novela, dado o caráter diabólico desse objeto cuja falsa imagem que produz, afinal, troca os lados direito e sinistro de posição, em uma subversão demoníaca.[ii]

Cremos que a pedra fundamental de toda a narrativa está em uma de suas frases: “Nunca sai certo o momento a que se volta… Nunca…” (85-6) Quando, já ao final do sexto dos doze capítulos da narrativa, o Físico dirigir tal declaração a Dona Urraca – e essa será uma das falas derradeiras do protagonista, que em seguida se calará vitimado pela opressão inquisitorial que lhe é imposta na segunda metade da novela – compreenderemos, em função do desenvolvimento das ações nos já quase seis capítulos que antecederam a cena e tendo por base os pouco mais de seis capítulos que lhe sucederão, que a passagem, cuja posição estrategicamente central no texto sugere uma obsessão formal e uma essencialidade temática, abriga, em sua economia, uma das mais importantes potencialidades da novela de Jorge de Sena. Primeiramente, porque a essência de O Físico Prodigioso reside num complexo de repetições (na semântica do texto, na camada visual da escrita, na sua relação com obras outras), consequências de fenômenos especulares portanto, as quais, porém, jamais se revelam exatas ou idênticas: repetições que nunca saem certas, no sentido de precisão, quando às suas matrizes se voltam. Segundo porque essa frase primordial nasce num momento da narrativa que funciona como divisor de águas, gerando duas metades que proporcionarão efeitos absolutamente distintos entre si. Assim é que, a partir da observação de tais repetições irregulares ou duplos infiéis, podemos introduzir como figura emblemática da novela, mais do que apenas os espelhos, mas mais especificamente de uma qualidade de espelhos: os deformantes.

Assimilar que a novela está construída sobre um arcabouço binário, revelando-lhe uma dualidade intrínseca, não é novidade na fortuna crítica seniana. Segundo Frederick G. Williams,

 

a novela em questão pode ser estudada de várias perspectivas, mas (…) nenhuma será tão rica como a do ponto de vista da tensão criada pelo que poderíamos chamar a estrutura binária, querendo dizer com isso, toda espécie de dualismo, incluindo antítese, contrapartidas e outras formas. (WILLIAMS, 1989, 70)

 

Similarmente, Maria Alzira Seixo percebe nessa narrativa uma “ambivalência que domina toda a novela” (SEIXO, 1989, 15). Maria de Fátima Marinho aí também descobre, “do princípio ao fim, a ambiguidade, o dois como unidade mínima” (MARINHO, 1981, 142), e complementa: “Os pólos, geralmente antitéticos, tornam-se complementares, havendo em toda a novela uma surpreendente coincidência de opostos” (MARINHO, 1981, 142). Horácio Costa alcança conclusão semelhante, o que o leva a atestar que “a ideia que preside à concepção do Físico é a da ambiguidade ou, se preferirmos, a de coincidentia oppositorum” (COSTA, 1992, 176). E declara finalmente Jorge Fazenda Lourenço que, na novela de Sena, “a conjunção e conjugação de pares antitéticos, as coincidentia oppositorum, a complementaridade dos contrários apontam para uma síntese dialética, superadora das antinomias platônicas” (LOURENÇO, 1992, 111). Fazenda Lourenço, por conta de tal leitura, não deixará escapar a importância da presença do espelho para a narrativa – objeto a que credita a função de ser, para o herói da novela, a consciência de si próprio; assim como expõe Orlanda Azevedo, que, ao defender que O Físico Prodigioso reativa um “mito de fortes raízes literárias, o do duplo” (AZEVEDO, 2003, 131), inferirá a função primordial do espelho. E, finalmente, Orlando Nunes de Amorim dará a entender a real qualidade física dos espelhos da novela, ao falar dos segmentos em que o texto se desenvolve em duas colunas paralelas: “A narração paralela estabelece uma relação especular, as narrativas refletem-se, mas de forma distorcida, como num espelho côncavo ou convexo.” (AMORIM, 2006, 102)

A seguir, inventariaremos as evidências desses espelhos deformantes na novela seniana, aproveitando o ensejo sempre para promovermos nossa leitura da obra.

 

O rimance metonímico

Escolhendo partir dos exemplos gerais para os mais específicos, parece imperativo iniciar essa apresentação de especularidades por um dos cinco poemas que figuram na novela, mais precisamente aquele em que se descobre significativa transnominação de elementos oriundos do enredo vivido pelo Físico e Urraca. Referimo-nos à composição cantada pelas donzelas logo após esquecerem, por indução da magia do gorro do Físico, o encontro com o protagonista nu à beira do rio – o rimance “Ao castelo o cavaleiro”:

 

Ao castelo o cavaleiro
vinha vindo sua via,
sem saber que procurava,
sem saber que encontraria.
As armas eram de ouro,
a lança na mão trazia.
Fechadas eram as portas,
mas co’a lança já batia.
As salas eram escuras,
e ninguém nelas vivia.
Só na torre uma princesa
esperava e gemia.
Prisioneira ali ficara
à espera de quem viria,
sem dama que a cuidasse,
ou donzelas e honraria.
Com a lança o cavaleiro
contra as portas investia.
Sentindo as portas forçadas
a princesa gritaria,
se não fora a liberdade
que a lança lhe prometia.
Já se rompem essas portas
com que o pai a defendia
dos homens e suas lanças
que mais que tudo el’ temia.
Mas este de lança erguida
já está na sala sombria.
E pela escada da torre
logo logo ali subia,
ao encontro da princesa
de que ele não conhecia.
Ao cimo, ouvindo seus passos,
já a princesa tremia,
e sua lança rebrilhante,
antes de o ver, ela via.
E cega de seu esplendor
aos braços dele corria,
sem cuidar que a lança em riste
já nela se cravaria.
Mortalmente trespassada
nos braços dele caía,
e morrendo e suspirando
estas palavras dizia:
De longe vinhas, senhor,
de tão grande valentia,
para matar-me de morte
que o teu amor não sabia.
Donzela tão bem guardada,
para ti me guardaria,
que nestas salas escuras
só por amor eu vivia.
Descai-lhe morta a cabeça,
mais palavras não diria.
E ao lado da suja lança
o seu sangue refulgia.
Olhando-a morta e donzela
nas lajes em que a estendia,
o cavaleiro jurou
que nunca mais forçaria
as portas desses castelos
co’a lança que quebraria.
E os pedaços da lança
que mais que tudo ele queria
enterrou com a princesa
na cova que já lhe abria.
E triste o triste partiu
Para seguir sua via
Até ao negro mosteiro
Em que pra sempre estaria.
Mas da cova nascem rosas
que ninguém colher podia
sem que a mão se lhe mirrasse
no ramo que se partia:
rosas de sangue e de leite
que só a terra bebia. (26-7)

 

A apresentação, no primeiro dístico, de que ao castelo o cavaleiro vinha vindo a sua via, coaduna com a cena inicial da novela ¾ e se, à altura das primeiras linhas, o Físico ignora ainda que o castelo de Dona Urraca é o seu destino, isso não o afasta do personagem do rimance porque também aí o cavaleiro seguia sem saber que procurava, sem saber que encontraria. A aposição dessas duas imagens inaugurais é capital para a consignação do vínculo entre os dois núcleos narrativos em questão, cujos posteriores desenvolvimentos serão ora coincidentes, ora discordantes. A relação ganha contornos visivelmente mais colidentes quando, já ao sexto verso, a cantiga revela que o cavaleiro a lança na mão trazia: ora, a espada, elemento indubitavelmente fálico, por força do discurso metafórico, será ainda uma sugestão ambígua no poema, reforçada, claro está, por caracterizações de duplo sentido como a adjetivação erguida e rebrilhante ou pela passagem em que a lança em riste já se crava na virginal princesa para logo depois assistirmos na mesma arma ao seu sangue refulgir. Nesse domínio, já a novela não exibirá a mesma ambiguidade de significados, porque nela, em geral, restará predominantemente o segundo sentido, concretização do que era antes metáfora no rimance. O Físico carrega consigo as botas, o gorro e, significativamente numa altura que ficaria abaixo da cintura, o largo cinturão pregueado de ouro (aqui, em outra consonância com a figura dramática do poema, cujas armas eram de ouro), porém, a despeito da feição de cavaleiro andante numa ambientação medieval, sintomaticamente não porta uma espada – primeiramente porque, afinal, ele não necessita dessa espécie de prótese metafórica, uma vez que possui a referência original em pleno funcionamento; e, em segundo lugar, por coerência semântica, já que o protagonista da novela não é um cavaleiro de atuação bélica, mas um Físico, investido sobretudo em questões medicinais.

No poema, há um castelo, onde só na torre uma princesa esperava e gemia – gemido ambíguo de lamentação pelo confinamento e, em segunda instância, de incontido desejo da carne. Há ali muito significativamente uma lança, arma que, antes de o ver, ela via, e que será responsável pelo arrombamento das suas portas (do castelo? da princesa?). Ora, o Físico do mesmo modo subirá à torre do castelo em que Dona Urraca convalesce para, depois, não apenas as portas concretamente ultrapassar, mas também literalmente percorrer com a sua lança um caminho muito mais íntimo, penetrando metaforicamente em seu castelo. O acesso consentido do Físico ao castelo de Urraca a pedido das donzelas, assim como metaforicamente a invasão arrebatadora na torre empreendida pelo cavaleiro do poema, funciona como imagem da penetração no corpo feminino. No castelo da princesa donzela, fechadas eram as portas e ninguém nas salas vivia e, mais, sentindo as portas forçadas, a princesa gritaria (de dor? de prazer?). Urraca aos braços do Físico correrá para então, (por magia do gorro) sem o ver (como a princesa), conhecer efetivamente a sua lança e permanecer cega do seu esplendor, o que remediará a enfermidade da mulher. Já a personagem do rimance estará curada do seu mal, que é a prisão, após o encontro com o cavaleiro andante, mas será mortalmente trespassada pela espada, artefato que fornece portanto, ambiguamente, prazer e dor, vida e morte, o que se representa nas rosas de sangue (o derramado do corpo da princesa pela ferida ou o do hímen rompido?) e de leite (que remete ao sêmen, o que nos faz ainda pensar no citado sangue como referência menstrual, para coadunar com a menção à fertilidade do elemento branco) que nascerão do túmulo da princesa e dos restos da espada, assim como brotarão no sepulcro comum de Urraca e do Físico ao fim da novela.

Ora, essa similaridade entre os dois textos é visível no que diz respeito ao sema da espada. Se considerarmos que Urraca, até a chegada do Físico, gozava de algum estatuto social de nobreza herdado do esposo militar – o que se pode comprovar pela presença constante do capelão a acompanhar os trabalhos de assíduos físicos em seu tratamento médico, e, no tocante a Gundisalvo, de quem é viúva, o fato de ela mesma sustentar que o Imperador “o estimava muito” (71) – é notório que a castelã perderá respeitabilidade depois de a sua convivência com o Físico se tornar pública: ela será citada em processo inquisitorial e aprisionada, percurso que culminará com a sua morte. Poder-se-ia dizer que a lança do cavaleiro, que no espaço diminuto do rimance provoca concretamente o falecimento da princesa, tem consequências semelhantes, embora de modo indireto, no espaço da novela. Em outras palavras, o personagem principal da narrativa maior acaba igualmente por matar da morte que o seu amor não sabia. Mas é claro que, tanto num caso quanto no outro, antes de causar o fim da vida, a lança aprovisiona de significação essa mesma vida, nutrindo-a de prazer, trazendo o gozo pela liberdade e o orgasmo efetivamente carnal. Não será pois fortuito que o teórico do erotismo George Bataille tenha explicitado que “existe uma relação entre a morte e a excitação sexual” (BATAILLE, 1980, 13), teoria que na novela alcança radical ilustração. Quanto ao nível de tal inquietação carnal, percebemos que a sede de amor de Urraca e da donzela do rimance são patentes, mas não é desprezível que o anseio da segunda, virgem, jamais tenha sido alimentado, de modo que esta padece de uma espécie de carência instintiva do corpo, enquanto aquela é vitimada por uma falta mnemônica, consciente pois da ausência experimentada.

Nesse cotejo entre as personagens femininas das duas esferas narrativas, é do mesmo modo digna de apreciação a ligação afetiva que ambas estabelecem com as suas respectivas figuras paternas. No que toca à princesa, há uma única alusão: o seu aprisionamento no castelo se dera porque o pai a defendia dos homens e suas lanças que mais que tudo el’ temia. A breve citação absorve as menções feitas por Dona Urraca a respeito do seu pai, o qual ela referirá num discurso mais ou menos encoberto que, todavia, produzirá na mente do Físico um desenvolvimento desviado – e as duas versões se distribuirão em colunas paralelas pelas páginas, sempre com a variante ouvida por ele a evidenciar as perversões (no sentido psicanalítico que o termo comporta) por vezes veladas na história relatada por ela. É, a propósito, curioso lembrar que a palavra perversão deriva do verbo latino pervertere e significa tornar-se perverso (diabólico, portanto), corromper, desmoralizar, depravar ou, como uso difundido no século XV, reverter. Encontrar, pois, perversões das mais diversas ordens na novela seniana é adentrá-la por outro veio interpretativo que só vem a corroborar a regência promovida pelas inversões e reversões diabólicas de que os espelhos deformantes são justamente uma importante alegoria. Daí que se encontre na narrativa vasta amostragem de relações sexuais ditas pela tradição como pervertidas: o narcisismo do Físico, a homossexualidade (que em seu tempo Freud chamava de inversão, criando, não obstante a nomenclatura preconceituosa, nova alusão aos fenômenos especulares) da convivência do Físico com o Diabo bem como o que divisamos no relacionamento de Dona Urraca com as donzelas, o voyeurismo latente da cena em que as donzelas admiram nu o Físico que dorme à beira do rio, a bestialidade zoófila da devoração do cavalo pelas mulheres do castelo, o sexo oral, o ménage à trois, os Complexos de Édipo e de Electra.

Atentemos, aliás, para esse último, a fim de retomar as considerações que traçávamos quanto à afinidade entre as protagonistas femininas das duas narrativas e suas respectivas referências paternas, perversão observável especialmente na linguagem mais ampliada da novela. Quando a jovem Urraca, temendo casar com um homem mais velho, que já enviuvara três vezes, revela o seu temor ao pai, a atitude dele é a de, com muito carinho, sentá-la no seu colo e explicar que seu irmão de armas, assim como ele próprio, não era tão velho, relato que a audição do Físico reverte, sobre-erotizando a paternal atitude de levar a filha ao colo e reconstruindo em perversão essa relação familiar. Entre o texto emitido e o texto apreendido, entre produção e leitura textual, o depoimento da mulher transforma-se no seguinte:

 

Eu era muito moça, mas dia e noite sonhava com o homens, desde que uma vez vira meu pai nu. Quando meu pai me fez saber que aprazara casar-me com Gundisalvo, que era seu irmão de armas e se parecia com ele, nos modos e no porte, eu sonhava só com Gundisalvo, e a espada dele, que lhe pendia à cinta, entrava por mim dentro a rasgar-me, como eu não me atrevia a sonhar que meu pai fizesse comigo, e como eu vira que ele ia fazer a uma donzela que gritava. […] Eu seria de Gundisalvo, que me levaria para longe e me mataria, sem que meu pai ali estivesse para sentar-me no seu colo, o que era o maior prazer que eu tinha. (68-9)

 

Novamente aí está a espada enquanto metáfora fálica. O desejo de Urraca é ter exatamente o mesmo destino da princesa do rimance, reiterando portanto que a trágica morte dos versos finais do poema se configura na verdade em requisito para um gozo absoluto que não seria alcançado a partir de uma covarde aposta na manutenção de uma vida carente de pathos. A decepção de Urraca com o primeiro noivo advém na verdade de sua própria incapacidade de compreender/ler um signo que já colocaria de antemão em relevo a impotência de Gundisalvo: a espada lhe pendia à cinta, numa posição decadente e passiva, o que o faria ser conhecido pelo dúbio epíteto de o do Pendão (apodo que então alude não apenas à sua responsabilidade de carregar a bandeira nas batalhas, mas também faz, numa segunda leitura, menção à sua falta de virilidade) — ao contrário, aliás, do Físico, identificado desde a primeira oração da novela como aquele que vem “balanceando o erecto corpo” (19). Seja através das palavras de Urraca, seja na exteriorização do pensamento especular deformante do Físico, ficará sempre a insinuação de ter cabido ao pai da castelã a idealização do seu casamento – diz Urraca: meu pai me casou com Gundisalvo; ou meu pai me fez saber que aprazara casar-me com Gundisalvo, ouve sem alterações significativas o Físico. Ao contrário, porém, do que isso sugestionaria, a intenção do pai de Urraca não é díspar da do homem que esconde a filha na torre do castelo no breve enredo do poema, porque, sendo Matamoros impotente, conservar Urraca sob sua guarda seria como mantê-la vigiada por um eunuco.

A propósito, Gundisalvo (que por essa falta de virilidade será para Dona Urraca, segundo ela mesma, como um pai), deixava-a, em suas viagens, num castelo negro e escuro, perdido nas névoas de um pantanal sombrio, aspecto deveras semelhante às salas escuras do cárcere da princesa e também ao negro mosteiro onde se abrigará o cavaleiro após enterrar junto à princesa os pedaços da lança que ele mesmo optara por quebrar, e ainda à própria cela que encerrará o Físico durante o seu julgamento pela Inquisição. Todos esses espaços sombrios caracterizam a abstinência sexual, conforme Gilda Santos ratifica: “escuro é o espaço da frustração / castração” (SANTOS, 1989, 56). O castelo em que o Físico encontra Dona Urraca, embora seja feito de pedra muito branca, cor que denota o reflexo de todas as ondas cromáticas que compõem a luz (ou até por isso), tem o seu interior mergulhado em “sombras que os brandões enxotavam mal” (34), atributo que ainda será reiterado em oportunidades outras (como quando uma das donzelas, após confirmar a todos que o Físico é virgem, corre a esconder-se na penumbra; ou no momento em que, da sombra, emerge o frade a acusá-lo de firmar pacto com Satanás). Mesmo no quarto de Dona Urraca, “as candeias de cera, no oratório, iluminavam escassamente o ar” (43). Ora, após a primeira consumação carnal entre o Físico e Dona Urraca, que acontece já quando era noite alta, surgem cenas em que predominam como pano de fundo o dia claro, expondo o sol que já acompanha o protagonista nas iluminadas primeiras páginas da novela. Podemos citar a ocasião em que o casal ceia à janela, “vendo a tarde que se dourava nas árvores à beira do rio” (52-3), ou a passagem ainda mais esclarecedora (com o perdão do jogo vocabular) a iniciar o quarto capítulo, na qual temos o clima festivo do castelo metaforizado pela expulsão da escuridão por ensejo do predomínio da luz:

 

Ao outro dia, Dona Urraca quis sair de passeio, para ver aonde as duas donzelas se haviam encontrado com ele. E formou-se, para tanto, uma longa e luzida cavalgada, cujos preparativos alvoroçaram o castelo todo, ecoante de vozes, de estrupidos de cavalos no pátio, de correrias pelas salas e as escadas. Parecia que um vento de alegria percorria tudo, varrendo as sombras, os murmúrios sombrios, as vozes abafadas, as pessoas que se esgueiravam silenciosas.

[…]

Era uma luzida cavalgada, luzidíssima: os cavalos ricamente ajaezados fulguravam ao sol, os vestidos coloridos e brilhantes resplandeciam, e os toucados, uns de bicórnio, outros pontiagudos, adejavam brancos no esplendor dos véus que esvoaçavam. (57-8, grifos nossos)

 

Tamanha iluminação será inibida apenas em duas ocasiões durante o período de permanência do Físico no castelo, na metade inicial da novela: a primeira quando Urraca, ao relatar o seu passado ao Físico, estiver a lembrar do longo período de abstinência de sexo satisfatório que sofrera – o encerramento das suas confidências será então assinalado pelo “crepúsculo que invadia a quadra” (71), como um pesar da natureza solidária à mulher ou uma manifestação retentiva do período negro que antes a inundara; a segunda antecederá o aprisionamento do Físico, ocasião em que o protagonista estará exatamente a olhar o crepúsculo. A temporada iluminada do castelo coincide, então, com o espaço de tempo que vai da chegada do Físico até à partida do protagonista, alargando-se generosamente na ressurreição que ele promoverá dos já falecidos homens que outrora visitaram o castelo, para também satisfazer o desejo das donzelas.

A prisão do Físico, como foi dito, conduz à morte dos amantes, em um arremate que igualmente encontra par no destino dos dois personagens do rimance, porque, se da cova da princesa (onde, reiteramos, também jazem metonimicamente os pedaços da lança) nascem rosas de cujos ramos partidos brotam sangue e leite, do mesmo modo, no túmulo comum a Urraca e ao Físico, abrolha uma roseira, de cujo galho quebrado escorrem dois líquidos: “um, de uma resina esbranquiçada; outro, de uma seiva vermelha” (131) – representações do masculino e do feminino amalgamados em uma só carne, o branco do sêmen e o vermelho da menstruação (ou da virgindade, no caso da princesa). E se, no rimance, só a terra bebia tais líquidos, isso por fim também nos remete à novela porque aí o amor do casal será sempre abençoado pelo Diabo, cuja familiaridade com a terra é inegável, por herança do imaginário cristão que lhe arroga esse espaço como moradia.

Assim é que “Do castelo o cavaleiro” apresenta-se como um tortuoso modelo reduzido da novela O Físico Prodigioso e o fato de não ser o resumo exato da obra, ainda que mantendo suficientes elementos convergentes, alça o rimance ainda com maior intensidade ao posto de símbolo diabólico da narrativa, já que essa característica o torna exemplo da especularidade deformante entre imagem e objeto frequentemente entrevista na narrativa ao ater tal duplicação aos ditos traços fundamentais.

 

As categorias espácio-temporais

A análise interpretativa que propusemos para o rimance, que até funciona como reiteração do breve resumo do enredo de O Físico Prodigioso que antes promovêramos, acarreta a exposição de apenas algumas das importantes especularidades deformantes que lhe são latentes. Outras manifestações suas merecem olhar cuidadoso, como as que entendemos haver nos espaços naturais em que narrativa transcorre, onde se erigem em abundância espelhamentos com tal característica. Primeiramente, no entanto, faz-se necessário esclarecer em que nível se dará a utilização da natureza ¾ entendida aqui como elemento dramático ¾ pelo discurso poético de Sena.

Segundo observa Maria de Lourdes Belchior, “a paisagem nunca o interessou [a Sena], senão na medida em que o homem nela se espelha e nela se insere” (BELCHIOR, 1981, 21). É dessa forma que o ambiente funciona na novela: como um espelho a refletir especialmente o corpo feminino. Em sua chegada ao lugar onde encontrará as donzelas que o guiarão ao castelo, o Físico se encaminha para baixo, para o interior do vale, como quem adentra um corpo. É curioso notar que, nesse capítulo, em que observamos sempre uma peregrinação para baixo, o sintagma final, responsável pela ruptura dessa etapa da narrativa com o capítulo procedente, será ascensional: ponte levadiça – o que contém uma conotação erótico-masculina que coaduna com a primeira oração da novela: balanceando o erecto corpo. Orlanda Azevedo, a propósito, percebe aí “uma inserção activa da personagem no meio natural, que surge, aliás, antropomorfizado” (AZEVEDO, 2003, 24). Esse caminho é claramente iniciático e fisicamente se assemelha ao procedimento de entrada nos castelos da novela e do rimance, através do qual os respectivos protagonistas das duas estórias indiciam a futura penetração na mulher. A balancear o erecto corpo, o Físico irá descer a encosta do vale que, selvático, se abria ante o seu olhar, como o jardim da mulher se abre para a entrada do amado no Cântico dos Cânticos do Rei Salomão, metaforizando a esposa que nas núpcias recebe o homem dentro de si. O vale exibe o mato que floria e ao fundo abriga a chapa metálica e estreita de um rio, no qual o Físico, onde o rio corresse mais límpido e profundo, mata a sua sede, entendida como a que exige a hidratação do corpo, mas também a que revela o anseio de saciar uma imperiosa fisicalidade. E a visão primeira que o protagonista terá do corpo de Urraca, convalescendo deitada sobre a cama a aguardar a chegada do cavaleiro principesco que a despertará (mise-en-scène que, muito adequadamente, Francisco F. Sousa identificou como referência ao conto A bela adormecida), assemelha-se bastante à exposição desse vale:

 

Nua sobre o lençol branco, Dona Urraca não se moveu nem abriu os olhos. A sua pele tinha uma cor marfinada, que se destacava na brancura e ao mesmo tempo parecia alastrar-se nela. O pescoço era longo, e magro como os ombros. Mas da cava peitoral das clavículas os seios avançavam fortes, ainda que descaídos, em curva e contracurva, que mamilos crespos, largos e escuros, coroavam. Depois, a cinta era estreita, e as ancas, ossudas e largas, espetavam levemente as pontas de seus ossos, de que a barriga fluía redondamente como que precipitando-se no umbigo que parecia aquele buraquinho a meio de uma água que se esgota. E, numa onda que se encurvava, o ventre descia para uma altura cuja outra encosta um negro matagal cobria, sumindo-se no fino vale das coxas unidas. (37, grifos nossos)

 

A relação entre os traços da mulher deitada e o cenário exibido no primeiro capítulo se concretiza não apenas pela adesão projetada por alusões figurativas (como as que estão grifadas acima) mas ainda pelo conveniente estilo topográfico empregado para a descrição de Dona Urraca, através do qual inicialmente o narrador apresenta, numa espécie de instantâneo, um panorama cinematográfico da personagem para, logo após, ater-se às minudências desse corpo que nos é oferecido imóvel como uma paisagem. O rio que percorre o vale e reaparece no corpo de Dona Urraca (na água que lhe entranharia pelo umbigo ou no ventre que se encurva como uma onda) nos remete às superfícies líquidas que se disseminam pela narrativa, não apenas sensivelmente perceptíveis nos cenários mas ainda em implicações de cunho conceitual – manifestações de que são exemplos esse rio do capítulo inicial, o tonel de sangue em que Dona Urraca é banhada para obter a cura para o seu padecimento (e vemos aqui uma clara alusão ao mito da Fonte da Juventude), o mesmo aliás em que o protagonista cospe após ver a sua imagem refletida, ou ainda todas as importantes metáforas que ao fim da novela relacionam a população enfurecida com águas caudalosas de mares e rios. Ora, através da água, certamente, o homem teve a sua experiência especular inaugural, de modo que esses planos fluidos, na novela, são justamente outra revelação não apenas do espelho, mas em especial dos de natureza deformante, afinal, é fácil demonstrar pela experiência o quanto essa sorte de reflexo apresenta frágil rigor, visto que comprometido por qualquer perturbação.

O aparecimento do espelho deformante seria, de certo modo, explicada como consequência dessa líquida presença, cujas causas demandam análise. Em primeiro lugar, fazer referência a águas numa narrativa que se proponha à medievalização é um aspecto a ser considerado procedente pelo leitor. Nas cantigas trovadorescas ibéricas, frequentemente encontramos fontes e rios a serem usados pelas damas para lavar roupas e cabelos e a servirem de pretexto para os encontros das donzelas com um amigo (em geral ambiguamente sugeridos pelo discurso), conforme bem observa António José Saraiva ao inventariar que normalmente a mulher das cantigas de amigo figurava “na fonte ou na romaria, lugares de namoro, sob as flores do pinheiro ou de avelaneira; no rio, onde lava a roupa e os cabelos, ou se desnuda para tomar banho; na praia, onde aguarda o regresso dos barcos” (SARAIVA, 1965, 13, grifos nossos). Torna-se aí evidente a profunda relação das águas com a habilidade feminina para seduzir, para despertar o desejo, para fazer nascer a volição carnal. Aliás, tal carga erótica da água aumenta consideravelmente se nos ativermos a esse seu papel de elemento essencial para o ritual do banho, procedimento que por sinal o Físico adotará após o seu primeiro encontro carnal com o Diabo (mas nesse caso no intuito de purificar-se), o que levou Orlando Nunes de Amorim a comentar que, “na literatura medieval europeia, o banho estava íntima e simbolicamente associado ao encontro amoroso, à realização erótica dos amantes” (AMORIM, 2006, 105). Esse mesmo desejo, a que a água está figurativamente ligada, haveria de gerar uma segunda causa para a presença constante de tal líquido como elemento cenográfico da novela, em outro sentido todavia: o narrador aponta que é hábito do protagonista admirar-se refletido nessa superfície espelhada, prática que demonstra os ecos de Narciso numa possível predisposição latente em o Físico se desvanecer consigo mesmo, em se desejar, tal como vemos na passagem em que ele se olha “ao longo do seu corpo, numa admiração tranquila” (25).

Ainda sobre o ambiente em que transcorre a narrativa, também seria interessante um exame das cores nos cenários da novela, especificamente em duas ocasiões, cujas estruturas serão imagens especulares uma da outra. No início do texto, um cromatismo em crescendo se observa das pedras que rebrilhavam pardas e cinzentas e da chapa metálica do rio de cristalina correnteza até o paroxismo das botas vermelhas, do cinturão pregueado de ouro e dos reflexos alaranjados que se esverdinhavam, matizando gradativamente a cena. Mais tarde, como em sinal do trágico desfecho que dele se aproxima, o Físico acompanhará no céu as cores se alterarem em trajetória contrária até a descoloração, como num espelho: “o azul, a alaranjado, o verde, o róseo, o branco, o pardacento” (81). Alocando frente a frente os dois processos, temos: pardo – cinzento – metálico – cristalino – amarelo – vermelho – alaranjado – esverdeado / azul – alaranjado – verde – róseo – branco – pardacento, numa especularidade praticamente perfeita, mas com diferenças quantitativas e qualitativas bem observáveis. Aqui devemos notar como, à medida que se aproxima do castelo, o Físico alimenta os seus corredores escuros da luz e, por consequência, do calor (sugerido na predominância de cores quentes) de que ambos os amantes carecem, metáforas já referidas da liberação e da satisfação sexual que o herói agenciará; já o seu afastamento coincidirá com a perda dessas conquistas, daí a menção à série cromática em sentido oposto, a representar a tentativa de o Santo Ofício restaurar a disposição original do ambiente – projeto que fracassa porque, como bem sabem o Físico e o narrador da novela, nunca sai certo o momento a que se volta.

Sobre o espaço que caracteriza O Físico Prodigioso, é também preciso citar a inegável especularidade entre o panorama visual que compõe os seus cenários e a imagem que comumente associamos ao ambiente da Idade Média, o que levou Jorge de Sena, no prefácio à novela, a rotular o tempo de sua narrativa como época pseudo-histórica, evidenciando uma vez mais a propriedade deformante desse reflexo, como se também a categoria tempo, aspecto conceitual da natureza, apontasse a deformante especularidade que é a condição fundamental do poético. Assim, por exemplo, o fim da história, embora sugira um reinício cíclico com o presumível aparecimento de um novo Físico, fornece na verdade uma metamorfose geradora da sua permanência que indica então possibilidade de renovação. Por coerência com as suas mais profundas concepções, se nunca sai certo o momento a que se volta, também o Físico haveria de voltar num retorno em espiral, modo de apresentação que incluirá a criatividade do novo ao que seria simples repetição.

Aliás, parece ponto pacífico para a crítica seniana a estrutura em espiral do tempo narrativo de O Físico Prodigioso. Quanto ao fim da novela, Jorge Fazenda Lourenço perguntar-se-á: “Eterno retorno ou espiral do tempo?” (LOURENÇO, 2002, 144) Para Maria de Freitas Lopes, o que temos aí é “uma história (conto, novela, epopeia) que pretende (finge) ser circular. E é espiralar” (LOPES, 1989, 43) – e atentemos para a opção da crítica pelo verbo fingir, que desvenda no fazer literário seniano a predisposição em jogar com a capacidade de percepção do leitor. A leitura de Gary Vessels encontrará o tempo representado pela mesma figura: “A simultaneidade (no sentido literário) aparece em O Físico Prodigioso através de narrativas a duas colunas e por uma narrativa espiral.” (VESSEL, 1989, 63) Essa ideia da espiral é, aliás, simbolicamente indicada no texto por duas outras imagens: a do redemoinho e a do novelo a que tantas vezes a narrativa faz menção. E, na novela, também podemos relacionar a espiral com a interessante cena em que o Físico, a pedido das donzelas e de Dona Urraca, reconstrói a paisagem idílica, mas já agora encanecida, em que três das moças o haviam encontrado no início da narrativa:

 

Um vendaval se levantou em nuvens de folhas enormes seguravam o brilho estalado dos troncos estalavam os cavalos de pé aos gritos das donzelas em relinchos de água que se erguia em ondas que do rio vinham no clamor das roupas que o vento rasgava com dentadas em que os freios brilhavam e os cavalos dando às mãos gritavam correndo perseguindo-se da ventania deixando os vestidos em tiras que voavam sobre a água em cortinas relinchadas que se enrodilhavam nas pernas e nas patas e os dentes enormes seguravam o brilho estalado dos troncos que silvavam levantados no ar em galopes e gemidos de que os cabelos iam soltos e os seios saltavam no espanadar das águas que o tropel das crinas e das caudas atirava contra os gritos num clarão verdoso, verde, verdíssimo… (60)

 

O trecho, composto por um encadeamento aparentemente infindável de ações que remetem umas às outras, busca a representação de um redemoinho (logo, de caráter espiralar) que gira em velocidade maior do que a quantidade de quadros identificados por segundo pelo olho humano (provocando sobreposições de imagens), celeridade esta apurada no texto pela ausência de vírgulas, como a promover sinestesias, hipérboles, insolidez, caos. As três variações finais do radical verd-, intercaladas por vírgulas, fazem com que o redemoinho cesse gradativamente de girar, para que se desenhe a cena transformada, já com seus elementos quase metodicamente posicionados: “e a clareira era como um jardim de ervas altas e floridas de todas as cores à beira do rio, os cavalos estavam num extremo todos juntos, e, diante dele, Dono Urraca, nua, precedia uma vasta massa branca, rosada e negra, que eram, nuas também, todas as outras.” (60)

É importante, por fim, insistir no fato de que o sexto capítulo da narrativa assume claramente o papel de ser aquele em que se configura a viragem actancial e simbólica da novela: do tempo luminoso para o tempo da escuridão, da anabasis para a catabasis ou da ascensão para a queda – momentos opostos de um ciclo. E nele referimos já a frase capital: nunca sai certo o momento a que se volta. Agora seria a ocasião de apontar os muitos níveis de entendimento dessa premissa: ela vale para as ações humanas, para os nossos anseios de restauração (que é o que sugere ingenuamente Dona Urraca), vale ainda para o percurso do personagem-título, vale enfim para a narrativa, não apenas no agenciamento dos fatos, mas nas retomadas das suas referências textuais e intertextuais. Daí a obra incluir também uma inferência espacial e temporal medievais mas situar-se no que Sena caracterizou como um tempo pseudo-histórico. Daí concluirmos ainda que a suposta volta do Físico só aconteceria num outro modelo que concretamente só tomaria corpo num discurso que estivesse para além da própria novela, como se essa findasse em pontos de suspensão. Daí a espiral se constituir da aniquilação apocalíptica do mundo e da insinuação do seu possível renascimento num modo renovado de vida.

 

Os personagens

No que se refere ao nível propriamente actancial, há em O Físico Prodigioso inúmeras circunstâncias em que podemos mirar as figuras dramáticas que compõem a narrativa como se estivessem posicionadas frente a frente e interpostas por espelhos deformantes, a demonstrar as aproximações e vínculos de vários níveis – formais, genealógicos, anatômicos, afetuosos, ideológicos – existentes entre os personagens que povoam a novela.

Sobre as donzelas do castelo, por exemplo, não seria excessivo dizer que elas todas são desdobramentos, extensões, reflexos arquetípicos da figura feminina principal: Dona Urraca. Porque não apresentam características individuais, porque não se constituem efetivamente como sujeitos de ações pessoais, identificadoras de um agente, poderíamos dizer que elas são contínuas, parecendo não padecer da descontinuidade trágica dos corpos, segundo os termos de Georges Bataille. Quanto a isso, esclareçamos que, para Bataille, “somos seres descontínuos, indivíduos que isoladamente morrem numa aventura ininteligível, mas que têm a nostalgia da continuidade perdida” (BATAILLE, 1980, 16). Ainda de acordo com Bataille, sem a noção de descontinuidade (o que inscreve o ser no mundo profano, dos interditos), a significação geral do erotismo e a unidade de suas formas escapariam ao homem; a interdição é o que produz o desejo e, por consequência, a experiência do prazer, o que permite ao ser humano ir além de si mesmo a fim de superar a descontinuidade à qual está em verdade condenado – ou seja, em toda ação sexual humana, o desafio é “a substituição do isolamento do ser, de sua descontinuidade, por um sentimento de continuidade profunda” (BATAILLE, 1980, 17). Assim sendo, a falta de individualidade entre as donzelas simbolizaria a plenitude orgástica humana, mais a completude que a falta, logo, não necessariamente o desejo, mas quando muito, na sua beleza, uma espécie de convite tentador para todo homem que passa pelas imediações do castelo. Então, na verdade, as donzelas do castelo representariam os prazeres do amor e da carne. Lembremos que, quanto a esse humano anseio, há uma evidente ausência de homens que deem conta do enorme contingente de insuficiência afetiva que vitima as mulheres do castelo da novela. O que aparentemente faria delas símbolos então do prazer, revela-as, na verdade, como carentes desse mesmo prazer. Será, assim, o aparecimento do Físico e, em função dele, a ressurreição dos muitos homens sepultados ao lado do castelo os fatores que devolverão ao espaço dominantemente feminino do reino de Urraca a dimensão da complementaridade dos corpos (e, do mesmo modo, os cavaleiros ressurrectos funcionam como versões masculinas do Físico para as versões femininas de Dona Urraca, todas repetidas especularmente ad infinitum). Aliás, não é desprezível notar que a morte do casal – Urraca/Físico – levará as donzelas ao desaparecimento sem qualquer satisfação da coerência interna do narrado, potencializando essa ideia de continuidade.

Em mecanismo similar, o herói, já decadente em seu aspecto corporal depois de ter estado por um longo período prisioneiro, terá o seu antigo e belo rosto refletido no de Dona Urraca, na cena em que os inquisidores promovem o encontro dos dois amantes na cela do protagonista, pouco antes da sua morte. Nesse momento, confirmar-se-á a legítima continuidade batailliana alcançada pelo casal, numa imagem que lembrará (porque nunca é possível deixar de citar o Poeta) um verso camoniano, já que aqui ocorre justamente um processo de ilustração do transforma-se o amador na cousa amada. Essa fantástica reprodução do admirável rosto do Físico acontece também nas faces dos próprios inquisidores, todavia, enquanto na cena anterior tratava-se de configurar a identidade perfeita, tem-se nesse caso a multiplicação do rosto como um castigo, imposto por aquele que nutre pelo herói da novela uma antiga paixão: o Diabo.

Vem a calhar citarmos agora o Demônio, porque encontramos ainda reflexos seus em Dona Urraca, referência fundamental para o entendimento da novela – “tu és ele mesmo?” (86), indaga o Físico em tom de cumplicidade, dando-se conta da íntima relação entre os dois personagens e intuindo o quanto a possibilidade de ela ser ele multiplica as possibilidades de gozo. Essa pergunta do Físico surge, aliás, após um discurso de Dona Urraca que parece exatamente tentar negar a coincidência de identidade, forjando uma presença que afinal não há: “Não estava ele sempre conosco naquele leito, assim que te despias, deitado do outro lado de ti? Querias que eu te amasse como amo, e não o sentisse perto como um rival infeliz? Mesmo agora ele está aqui. Mas não se atreve.” (86). Ora, segundo Orlando Nunes de Amorim, Dona Urraca “é profundamente sensual, dá a conhecer ao Físico o amor carnal – é demoníaca, portanto” (AMORIM, 1999, 272). Daí entendermos que a especularidade em momento algum seja anatômica, mas ideológica: ambos serão agentes do processo de autognose que o Físico atravessará e promoverão, em função do elementar teor erótico desse processo pedagógico, a subversão da castradora ordem vigente.

O Diabo ainda se identifica com outro personagem. Chama-nos também a atenção o fato de, na passagem em que evoca o Demônio, Frei Antão, ao ritualizar a invocação, inverter os gestos litúrgicos da tradição cristã, como é comum se fazer em assuntos que envolvem a adoração ao demônio desde os sabbat medievais, mas que, por outro lado, não deixa de criar também mais uma evidência da presença de um metafórico espelho a reger as ações das personagens da narrativa:

 

levantou-se e, benzendo-se, tirou o crucifixo da parede, e pousou-o no chão a um canto, de cabeça para baixo, e com a imagem voltada para a parede caiada. Verificou que a sombra da cruz, embora muito enviesada, se projectava em cruz. Foi então colocar o crucifixo, na mesma posição, ao funda da chaminé vazia. Tirou do pescoço e despregou do peito a sua cruz episcopal, que pousou sobre a mesa, voltada para baixo. Deitou para trás o capuz e despiu o hábito… (109)

 

Esse ritual de Frei Antão será alvo de escárnio por parte do Diabo: “- Essa de arregaçares a camisa, meu filho, é porque nunca te viste a um espelho. Não valia a pena. – E com uma casquinada, sumiu.” (113, grifo nosso) Gilda Santos constatará, por conta disso, que Frei Antão é, desta forma, “o mediador entre o humano e o divino, o humano e o demoníaco, entre o sanctus e o sutcnas. Como filho [conforme grifo da citação anterior], Frei Antão é a duplicação humana do Demônio – o Demônio feito carne.” (SANTOS, 1989, 71) A menção aos sintagmas sanctus e sutcnas se revela importantíssima para conduzir, agora, a um outro âmbito de manifestação os espelhos deformantes da novela. Referimo-nos aqui à própria disposição física que é adotada para o texto impresso, à própria distribuição das palavras no papel; estamos então aludindo a algo que ultrapassa a construção do conteúdo da narrativa para funcionar, mais abrangentemente, como uma poética que explicita a concepção de obra literária enquanto artefato concreto, enquanto objeto editorial, enquanto produto que abriga a arte: trata-se do artigo livro.

 

…sanctus sutcnas…

É, por fim, essencial estudar a manifestação do fenômeno das especularidades deformantes na disposição visual da novela, do que é exemplo a já mencionada estrutura paralelística a que a narrativa se permite por ocasião do relato de Dona Urraca quanto ao seu passado, bifurcando-se em duas versões do narrado – especularidade categorizada como deformante porque os dois lados visualmente paralelos nunca se desenvolvem de forma análoga. Quanto a isso, aliás, citemos novamente, porque corrobora com precisão a nossa argumentação, as palavras de Orlando Nunes de Amorim a respeito da mesma particularidade presente no modo de narrar adotado por Sena em três oportunidades na novela: A narração paralela estabelece uma relação especular, as narrativas refletem-se, mas de forma distorcida, como num espelho côncavo ou convexo.

Além do já aludido episódio das confissões de Urraca, o mesmo processo surge ainda em outras duas passagens: 1. no primeiro capítulo, na cena em que as donzelas se aproximam da beira do rio onde o Físico nu está deitado, o que, em contrapartida, se repete no sonho do herói com a significativa substituição das donzelas por deusas também nuas, cuja consequência mais evidente é o aumento da carga erótica do narrado; 2. no capítulo final, no momento em que o relato da chegada de um bando de rapazes às ruínas do castelo se dá, através do mesmo mecanismo de organização textual, em simultâneo à visita de outro bando às ruínas da cidade em que o Físico estivera aprisionado. Vale citar ainda que, nesse último caso, as duas narrações logo retomam a forma tradicional de parágrafo, para, a partir de então, interpolarem uma a uma as frases que se referem a cada um dos núcleos narrativos, dinamizando ainda mais a ilusão de simultaneidade de cenas distintas a qual se pretende dessa forma construir mas que nunca é possível em sua totalidade num texto escrito, em função da própria inerência consecutiva da linguagem verbal quando textualizada.

As pseudo-repetições de cenas que abundam no texto também devem ser citadas como, digamos, modos de exposição dos espelhos deformantes. A analogia entre o rimance “Ao castelo o cavaleiro” e o enredo da novela é, quanto a isso, apenas um exemplo mais sutil. Lembremos também as duas ocasiões em que o Físico e o Diabo se encontram sexualmente na narrativa, quando as estruturas são indubitavelmente especulares, havendo inclusive repetições ipsis verbis de alguns trechos comuns, mas cuja especularidade é evidentemente deformante em função das significativas modificações entre um episódio e outro, inclusive no que toca ao seu resultado final.

 

E, arqueando as sobrancelhas numa expressão de tédio, recuou para a fina erva, e alongou-se no chão languidamente.  Com paciência, num abandono indiferente, com a cabeça pousada nos braços, deixou que o Diabo se desesperasse invisível sobre o seu corpo.  Carícias prolongadas que leves lhe corriam pela pele, beijos sussurrados que o mordiam pelo corpo adiante, mãos que se obstinavam no seu sexo, durezas que se encostavam nele tentando penetrá-lo…  era o costume, desde que primeiro se soubera homem e se despia todo, e se estivesse só.  Sofria aquilo como um vexame inapelável que o não excitava, e nem sequer lhe dava horror ou repugnância.  E que, até certo ponto, o divertia de algum orgulho por paixão tão teimosa e tão ridícula, a que não encontrava em si mesmo, por mais que se observasse, a mínima correspondência que a justificaria. (p. 21)

 

Arqueando as sobrancelhas, numa expressão de expectativa que nunca sentira, recuou mais para a fina erva, e alongou-se no chão languidamente.  Carícias prolongadas que leves lhe corriam pela pele, beijos sussurrados que o mordiam pelo corpo adiante, mãos que se obstinavam, durezas que se encostavam…  Num gemido ansioso abraçou-se ao espaço, voltou e rolou, e entregou-se ao Demônio, que fez dele o que quis, e a quem ele fez quanto ele desejou; e arquejava insaciado dos prazeres que não sentira nunca. (p. 84)

 

Nas cenas acima, visto que a primeira posiciona-se anteriormente ao encontro do físico com Dona Urraca e a segunda ocorre posteriormente, identificamos o bom aproveitamento do protagonista das lições recebidas a respeito da arte de amar que lhe lega a mulher que lhe retira afinal a virgindade — a qual, se não era mais física, ainda efetivamente o acompanhava, já que só a “perdeu de todo” (46) com Urraca — que o incapacitava até então a amar o outro mais do que a si mesmo. A atitude vaidosa, orgulho por paixão tão teimosa, uma vez controlada, lhe permite finalmente desejar quem tão obstinadamente o amava. A partir da superação do seu narcisismo, o físico passa a conhecer o desejo que vai além de si próprio. Não é, pois, casual o sensível processo de especularidade assimétrica entre os dois excertos.

Seguindo esse rol de aparentes repetições da novela, incluem-se ainda as versões da origem do Físico, que se multiplicam, sempre com alterações: suposições quanto à sua filiação, à história do pacto demoníaco e à origem do gorro mágico. Os espelhamentos deformantes abarcam ainda as duas variantes de narrativa que se tecem sobre as obras realizadas no castelo em que Dona Urraca e as donzelas residem. A multiplicidade de narrações diversas sobre um mesmo fato, plurivocalidade que parece dominar toda a novela, pode por agora ser ilustrada pelas explicações dadas ao Físico a respeito da doença de Dona Urraca, aquando da chegada do protagonista ao castelo:

 

O frade e a donzela não acertavam nos pormenores ou nas causas. Para o frade, a doença era antiga, datava da morte de Dom Gundisalvo. Para a donzela não: era recente e começara, sim, por uma grande tristeza, mas outra tristeza que não a de ficar viúva. O frade dizia que a dama não comia nem bebia. E disso deperecia. A donzela contestava: ela comia e bebia como toda a gente, ou como dama que, de saúde, se respeitasse em coisas de alimento, para manter-se em boa condição; mas, apesar disso, com efeito deperecia. Ambos concordaram em que suspirava muito, não queria ver ninguém, passava os dias e as noites estirada em sua câmara, às escuras, e nem mesmo para o sacrifício da missa tinha já forças de levantar-se. (34)

 

As diferenças se estabelecem no seio das semelhanças e vice-versa, criando assim na narrativa uma tensão que muitas vezes não permite a apreensão tranquilizadora de todo o seu conteúdo, imprimindo ao enredo um aspecto fugidio, impalpável, consequência das imagens reproduzidas pelas superfícies deformantes dos espelhos senianos.

Também há ocasiões em que o discurso se concretiza de forma a evidenciar pequenas e sintomáticas especularidades, no nível mais propriamente sintagmático, como quando se alude à fórmula verbal “resistência do propósito e o propósito de resistência” (94), com os quais o Físico passivamente, aos moldes de Gandhi, encara o processo inquisitorial; ou na invocação do Diabo ritualizada por Frei Antão, que o chama imundo spirto e depois spirto imundo, inversões que funcionam como amostras de uma narrativa que afinal parece esconder espelhos de muitíssimas dimensões: semânticas, sintáticas, morfológicas. Tudo converge para o aspecto francamente especular dos citados vocábulos sanctus e sutcnas, repetidos três vezes ao fim da invocação que o frade faz ao Diabo, duas palavras que assim funcionam como ícones verbais do espelhamento. Temos, dessa forma, a fisicalidade demoníaca do Físico espelhada na da organização do texto.

 

Conclusão

Essa camada da imagem textual invertida é a prova ratificante de uma função ideológica que se embrenha em O Físico Prodigioso e constitui a sua mais importante matéria: a inversão diabólica — que é também especular, como apontávamos desde o início — das normas vigentes. Tudo isso nos remete finalmente ao astuto jogo vocabular presente na unidade mínima de significado do texto: o seu título. “O Físico Prodigioso” é um sintagma que, de certa maneira, abriga – ou melhor, esconde, como se fosse uma charada cuja solução se deixasse em suspense, essa adivinanza seniana a que nos referíamos no início – a palavra espelho. Porque se, por certa via, o adjetivo prodigioso, referindo-se ao substantivo Físico enquanto vocábulo que designa os médicos da Idade Média, remete-nos ao extraordinário poder de cura desse habilidoso clínico, por outro lado, quando tomamos físico em sua acepção de corpo, o adjetivo passa a significar maravilhoso, portentoso, espetacular portanto. Ora, a palavra espetáculo, algo arrebatador aos olhos, vem do latim spetaculu, advindo de spectare (mirar, olhar) e cuja raiz alcança finalmente o nominativo specullum – objeto afinal cuja função é justamente ser instrumento do olhar, do mirar. Ou seja, um sinônimo imediato de prodigioso, qual seja, espetacular, é cognato, do ponto de vista diacrônico dos estudos da língua, de espelho.

Tal desdobramento de significações, a propósito, levou Gonçalo Zagalo, em estudo sobre as semânticas desse objeto, à conclusão de que “o espelho é uma exibição, um espetáculo” (ZAGALO, 2003, 59), o que lhe identifica, além de tudo, um caráter simbolicamente artístico: porque arte, porque Literatura, será sempre, para os olhos e também para a mente, não mais do que estética, não mais do que espetáculo — como é o caso dessa prodigiosa novela de Jorge de Sena.

 

Referências:

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  4. BATAILLE, Georges. O erotismo – o proibido e a transgressão. Trad. João Bernard da Costa. Lisboa: Moraes Editora, 1980.
  5. BELCHIOR, Maria de Lourdes. “O mar na poesia de Jorge de Sena”. In: SHARRER, HARVEY L. & WILLIAMS, FREDERIK G., org. Studies on Jorge de Sena. Santa Barbara: University of California/Bandanna Cooks, 1981, p. 15-23.
  6. BORGES, Jorge Luis. Ficciones. Buenos Aires: Emecé, 1956.
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  8. LOPES, Maria de Freitas. “Ser é estar – sobre os sentidos (do corpo) em O Físico Prodigioso. In: SEIXO, Maria Alzira (org.). O corpo e os signos – Ensaios sobre O Físico Prodigioso de Jorge e Sena. Lisboa: Editorial Comunicação, 1989, p. 43-61.
  9. LOURENÇO, Jorge Fazenda. “As rosas do desejado: sobre O Físico Prodigioso de Jorge de Sena”. In: Convergência Lusíada. Rio de Janeiro: Real Gabinete Português de Leitura, n. 9, 1992, p. 109-27.
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  11. MARINHO, Maria de Fátima. “O Físico Prodigioso: o outro e o mesmo”. In: SHARRER, Harvey L.; WILLIAMS, Frederik G. (org.). Studies on Jorge de Sena. Santa Barbara: University of California/Bandanna Cooks, 1981, p. 142-51.
  12. SANTOS, Gilda da Conceição. Uma alquimia de ressonâncias: O Físico Prodigioso de Jorge de Sena. Tese de Doutorado em Literatura Portuguesa apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ. Rio de Janeiro: 1989. 203 fl. mimeo.
  13. SARAIVA, António José. História da Literatura Portuguesa. Lisboa: Publicações Europa-América, 1965.
  14. SEIXO, Maria Alzira. “O corpo e os signos”. In: —— (org.). O corpo e os signos – Ensaios sobre O Físico Prodigioso de Jorge e Sena. Lisboa: Editorial Comunicação, 1989, p. 15-22.
  15. SENA, Jorge de. Antigas e Novas Andanças do Demónio. Lisboa: Edições 70, 1979.
  16. ——. O Físico Prodigioso. Lisboa: Edições 70, 1983.
  17. SOUSA, Francisco F. “Abordagem: espaços”. In: SEIXO, Maria Alzira (org.). O corpo e os signos – Ensaios sobre O Físico Prodigioso de Jorge e Sena. Lisboa: Editorial Comunicação, 1989, p. 23-42.
  18. VESSELS, Gary. “A simultaneidade em O Físico Prodigioso”. In: SEIXO, Maria Alzira (org.). O corpo e os signos – Ensaios sobre O Físico Prodigioso de Jorge e Sena. Lisboa: Editorial Comunicação, 1989, p. 63-8.
  19. WILLIAMS, Frederick G. “Dualidade, emparelhamento e contraste -–estruturando a realidade em O Físico Prodigioso de Jorge de Sena”. In: SEIXO, Maria Alzira (org.). O corpo e os signos – Ensaios sobre O Físico Prodigioso de Jorge e Sena. Lisboa: Editorial Comunicação, 1989, p. 69-83.
  20. ZAGALO, Gonçalo. “A assombração do outro”. In: Textos e Pretextos – O Espelho. Lisboa: Faculdade de Lisboa, n. 2, 2003, p. 59-64.

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[i]               O vocábulo espelho aparece na narrativa ou a simbolizar um efeito reflexivo a partir de algo que não é propriamente um espelho, como a tina de sangue cuja superfície era “escura e quieta, lisa como um espelho” (44) e que se transforma em “uma água límpida e transparente, puríssima, em que a sua imagem lhe sorria” (45); ou como apenas uma reminiscência — “Para os espelhos nunca era invisível e, diante dos espelhos, achava-se belo e triste, solitário e pobre, sem nada nem ninguém.” (44) — de um objeto o qual é lembrado mas que não é trazido para o presente da cena e que, de toda forma, pelas sensações pejorativas que suscita, é antes mesmo algo a ser evitado; ou como um reforço da sua própria inexistência na novela, caso da citada frase do Diabo “nunca se viste a um espelho” (113).  Tais ocasiões potencializam o aspecto simbólico de todas as citadas oportunidades vislumbradas na narrativa para que o espelho surgisse concretamente como elemento de cena e não o faz, chamando-nos a atenção para essa sua tão evidenciada ausência, a qual não pode mesmo ser casual.

[ii]              Na obra de Jorge de Sena, porém, poderíamos inferir que essa imagem é apenas pretensamente falsa, afinal, no conto “Razão de o Pai Natal ter barbas brancas”, texto inaugural da coletânea Andanças do Demónio que abrigara originalmente “O Físico Prodigioso”, aponta o narrador que “o diabo percebe tudo ao contrário [como, por fim, os espelhos o fazem], e ficara portanto a saber a verdade” (SENA, 1979, 20), modo de indicar que tais subversões diabólicas antes revelam verdades que um mundo falso nos esconde do que constroem mentiras.

 

*(Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro)