No momento você está vendo O romance do(s) romance(s): o projeto Monte Cativo e a gênese de Sinais de fogo (Parte 1)
Figueira da Foz, anos 30

O romance do(s) romance(s): o projeto Monte Cativo e a gênese de Sinais de fogo (Parte 1)

O longo ensaio de Orlando Amorim é versão revisada (especialmente para nosso site), de um capítulo de sua tese de Doutorado (À luz do mar aceso: um estudo das relações entre memória individual e memória histórica em Sinais de Fogo, de Jorge de Sena., USP, 2002) e nos apresenta em minúcia a gênese do romance seniano — sem dúvida, uma leitura com pistas de grande proveito para seus estudiosos.

 


mas será possível explicar como se forma um romance, que impulsos o provocam, que vontade tão forte consegue fazer com que seja levado adiante, que seja preciso concluir com luta o que foi iniciado com facilidade?
Mercè Rodoreda

 

Muitas vezes, a história da composição de um romance pode ser marcada por lances romanescos e tornar-se tão interessante quanto a própria obra. Isso pode mesmo ser reconhecido pelo autor: foi o que aconteceu, por exemplo, com Thomas Mann, que, em O romance de um romance: a gênese do Doutor Fausto, preocupou-se em historiar a elaboração de uma de suas obras mais importantes (Mann, 2001). A história do modo como Jorge de Sena escreveu Sinais de fogo, considerado por muitos um dos romances capitais da literatura portuguesa do século XX, inacabado e publicado postumamente, também tem seu interesse, como demonstram as introduções que o romance teve (e tem): a de Arnaldo Saraiva, na primeira edição, e principalmente a de Mécia de Sena, que acompanha o romance desde a terceira edição.

O intuito deste trabalho foi o de revisitar e revisar essas introduções, levando em conta documentos que pudessem atualizá-las e mesmo corrigi-las, além de buscar compreender a maneira como a gênese do romance se relaciona com a composição de outros textos do autor, sobretudo de ficção, o que pode esclarecer aspectos relevantes do conjunto da obra, ou mesmo apontar caminhos para tais esclarecimentos.

Os primórdios da escrita: tentativas romanescas

A atenção ao gênero romanesco e as preocupações de um romancista estiveram sempre presentes no espírito de Jorge de Sena, desde a infância e adolescência: leitor contumaz de romances, também traduziu várias obras (sobretudo romances ingleses e americanos) e dedicou-se a escrever sobre romancistas de sua predileção e sobre problemas gerais do gênero. Uma de suas primeiras obras conhecidas é um fragmento de uma narrativa histórica – Século XII (D. Fuas Roupinho) – que talvez viesse a ser uma novela ou um romance; dela existe apenas uma primeira parte, que está datada de agosto de 1936. Ainda na juventude, deixou também inconcluso um outro romance, A personagem total, que começou por ser “Romance vivido”, um conto de uma série, Clarões; vem transcrito em várias partes, nos volumes 3 e 4 das Obras (que são os cadernos nos quais, entre 1938 e 1944, o jovem escritor ia registrando o que compunha), datado de junho de 1938 e «acabado de passar» em setembro de 1940. Teve uma versão datilografada (com 71 páginas), feita mais tarde, que traz na folha de rosto o título e o subtítulo definitivos e a indicação «Lisboa 1940»; mas consta ainda de fragmentos com datas de junho de 1938, abril de 1939 e agosto de 1940. Quanto à classificação, começou por ser «conto em forma de novela» e acabou «romance em forma de novela» (Cf. Sena, 1994).

A personagem total é a última obra de ficção juvenil de Jorge de Sena, e demonstra uma razoável sintonia de seu autor com a literatura portuguesa da época: é um romance modernista [1], caracterizado por um experimentalismo narrativo de feição especular – ou seja, segue o modelo da narrativa dentro da narrativa, e a(s) trama(s) intencionalmente mistura(m) e confunde(m) personagens, em um jogo de desdobramentos e indeterminação que põe em causa a própria ficção e o ato da escrita. É um meta-romance, mas também pode ser lido como um romance de aprendizagem, semelhante a outra grande obra modernista portuguesa – Nome de guerra, de Almada Negreiros [2], o que o aproxima de Sinais de fogo.

Depois destas tentativas juvenis, por longos anos Sena acalentou a idéia de escrever um romance que fosse o retrato artístico de sua geração, chamado Monte Cativo, e que se tornou, a partir de determinado momento, o projeto de um grande ciclo romanesco, com vários volumes, que seria a sua «Comédia Humana», ciclo esse que, conforme diz Mécia de Sena, «a vida e os muitos afazeres dela não lhe permitiram que escrevesse, além de Sinais de fogo, senão fragmentariamente ou parcialmente.» (“Introdução”, em Sena, 1997, p. 9)

O desenvolvimento desse projeto e a gênese do romance Sinais de fogo, que se tornaria o primeiro volume do ciclo, e também o modo como este foi sendo incorporado à planejada «suma romanesca», podem ser rastreados na correspondência do autor desde 1942 – e principalmente na do período de composição do romance, a partir de 1964 e até 1977 [3]; e também em outros textos de caráter biográfico e/ou informativo, como os poucos diários que Sena escreveu, algumas entrevistas, certos ensaios e prefácios. Essa «história do romance» contribui para situá-lo no contexto geral seja da obra do escritor, seja da literatura portuguesa de ficção de meados do século XX.

Um processo rememorativo de composição

Para fins de estudo, convencionou-se dividir a obra de Jorge de Sena em dois períodos – desde quando, no início dos anos 80, ao dar continuidade à publicação da poesia inédita deixada pelo marido, Mécia de Sena propôs tal divisão: um período de formação, que compreende o que foi escrito entre 1936 e 1942; e o período da maturidade, que se inicia em 1942, ano da publicação do primeiro livro de poesia, Perseguição. A escolha do ano divisório foi arbitrária, e poderia até ser questionada, se não se tivesse imposto então por necessidade de separação do conjunto de inéditos; tanto é assim que a curadora da obra considera o intervalo entre os anos de 1940 e 1942 como uma espécie de limbo, um período de transição entre a adolescência e a plena vida madura (Cf. “Nota introdutória”, em Sena, 1989b, p. 11-13; e “Nota de abertura”, em Sena, 1985, vol. 1, p. 9-11). As considerações de Mécia de Sena valem tanto para a poesia quanto para a prosa de ficção, e nesse caso a divisão está diretamente relacionada às primeiras referências ao projetado ciclo romanesco.

Como uma espécie de pré-história de Monte Cativo, merecem destaque duas breves narrativas que Sena escreveu entre 1940 e 1942: “Porto Grande” e “A ilha que perdeu o Equador”, publicadas, respectivamente, nos números 98 (de fevereiro de 1942) e 125 (de maio de 1944) da revista O mundo português, editada na época pela Agência Geral das Colônias e secretariada pelo escritor José Osório de Oliveira. Os originais desses textos sofreram alterações para a publicação, pois foi preciso eliminar aquilo que continham de denúncia, devido à censura imposta pelo governo salazarista; em 1960, Sena retomou as versões publicadas (porque perdera o rastro dos manuscritos originais), ampliou-as e reuniu-as – juntamente com outra narrativa breve, “Atlântico”, escrita na ocasião – em um tríptico intitulado “Duas medalhas imperiais, com Atlântico” e incluído no volume de contos Andanças do demónio.

Essas breves narrativas, apesar de escritas ainda durante o período de formação do autor, já não podem ser consideradas como obras de juventude, não só porque passaram pela revisão indicada acima, e por isso não é mais possível lê-las na sua forma original, mas também porque apresentam certos procedimentos característicos da criação ficcional adulta, sobretudo a que se relaciona com o projeto Monte Cativo: as “Medalhas imperiais” são «um perfeito exemplo do encadeamento progressivo em que podia processar-se a escrita de Jorge de Sena.» (Mécia de Sena, “Introdução”, em Sena, 1997, p. 13)[4]

“Porto Grande”, escrito em 1940, só foi editado dois anos mais tarde, em 1942; essa publicação terá desencadeado a elaboração de “A ilha que perdeu o Equador”, motivada sem dúvida pelo mesmo processo de rememoração de fatos relacionados à juventude do autor que dera origem ao primeiro texto. A segunda «medalha» também só veio a público dois anos após sua escrita, em 1944, o que, em condições normais, talvez tivesse desencadeado em Jorge de Sena «um novo quadro rememorativo, mas a esta data estava a braços com exames finais do curso de Engenharia e numa situação financeira tão absolutamente penosa que não terá tido tréguas para escrever fosse o que fosse.» (Mécia de Sena, “Introdução”, em Sena, 1997, p. 13)

A primeira narrativa refere-se a S. Vicente de Cabo Verde, ou mais especificamente à cidade de Mindelo: descreve as primeiras impressões do autor no contato com o porto e a cidade; “A ilha que perdeu o Equador” refere-se a São Tomé e à estada de um dia do autor na ilha. Os finais de ambos os textos, como que anedotas, fatos aparentemente banais em contraponto à descrição geral, destoam do título geral, “Duas medalhas imperiais”, dando-lhe um sentido irônico, como seria intenção do autor.

Em 1960, Sena retomou as narrativas ao organizar as Andanças do demónio, trabalho que talvez presumisse terminado em agosto, data do prefácio escrito para a coletânea; todavia, em 8 de setembro, escreveu “Atlântico”: a releitura dos textos dos anos 40 terá sem dúvida desencadeado um novo processo rememorativo – ou melhor, terá despertado o mesmo processo para uma novo texto. A narrativa de 1960 desenvolve-se em torno do diálogo de dois marujos ao leme de um navio, ouvido por um jovem oficial: os marinheiros falam maliciosamente de um outro oficial jovem e da visita que fez a um prostíbulo, orientada e observada pelo marujo mais velho; este, ao sugerir ofensivamente um «trabalho» (de ordem sexual) para o oficial que os ouve, é esmurrado pelo marinheiro mais jovem, que ainda procura desculpá-lo dizendo que o oficial «ainda é novo, e não sabe o que é a raiva dum velho como ele, metido estes dias todos no meio da gente, e a querer sentir-se igual ao que, danado, vê que a gente sente.» (Sena, 1981, p. 112)

Sena recebeu o volume impresso das Andanças em janeiro de 1961, e é certo que o leu para conferir a edição e anotar gralhas; em maio do mesmo ano, compôs “A Grã-Canária”, conto cujo conteúdo está intimamente ligado às três narrativas referidas anteriormente (notadamente à última), e cuja escrita também terá sido motivada pela releitura que delas fez no volume de contos. Com efeito, nas notas que acrescentou aos contos do volume de 1960 na reedição conjunta Antigas e novas andanças do demónio, de 1978, o autor informa que tanto as três narrativas de “Duas medalhas imperiais, com Atlântico” quanto “A Grã-Canária” são frutos do cruzeiro de instrução que realizou, como cadete de Marinha, no navio-escola Sagres, entre outubro de 1937 e fevereiro de 1938, visitando Cabo Verde, Brasil, Angola, S. Tomé e Príncipe, Senegal e as ilhas Canárias (Sena, 1981, p. 217).

“A Grã-Canária” faz parte de um conjunto de contos ao qual Sena deu o título de Os grão-capitães, e que escreveu entre março de 1961 (“As ites e o regulamento”) e maio de 1962 (“Choro de criança”), mas que só conseguiria publicar em 1976 [5]. Mais do que uma coletânea, a obra é uma seqüência (forma bastante freqüente na poesia e na prosa de ficção do escritor) que registra «algumas amargas experiências de vida lusitana» de modo quase cronológico, cobrindo um período que vai de 1928 até 1961; caracteriza-se por um realismo que pretende tornar os fatos evocados «mais reais que a realidade» (Sena, 1989a, p. 9 e 16): são contos cruéis, crônica amarga de um tempo de repressão e medo. “A Grã-Canária”, cuja narrativa é ambientada em 1938, é o último conto da seqüência, e o único que foge da ordenação cronológica (a ser respeitada essa ordenação, deveria vir logo após o primeiro conto, “Homenagem ao papagaio verde”, que é ambientado em 1928; mas, por vários motivos, forma com este último o enquadramento de todos os outros, e por isso está deslocado).

Trata-se basicamente da narrativa de um encontro amoroso que se dá entre um jovem marinheiro, cadete em um navio que faz uma viagem de instrução, e uma prostituta da mesma idade dele; o encontro ocorre em Las Palmas, em um ambiente acentuadamente fascista, seja do lado espanhol, já que a ilha é controlada pelos nacionalistas rebeldes (o momento histórico é a Guerra Civil de Espanha), seja do lado português, representado pelo comandante do navio (entusiasta do governo de Salazar). O que merece atenção é a progressiva mudança de perspectiva narrativa que ocorre entre os quatro textos considerados até aqui. Nos dois primeiros (as «duas medalhas imperiais»), percebe-se uma hesitação entre memória pessoal e ficção, pois são mesmo lembranças do próprio Jorge de Sena, e não de um narrador que sequer chega a estabelecer-se como instância narrativa, dadas as dimensões diminutas da narração: seriam, formalmente, muito mais poemas em prosa do que contos. Em “Atlântico”, há uma mudança significativa: a narrativa é heterodiegética, a identificação entre o eu responsável pela enunciação e o escritor real desaparece, e a única aproximação possível seria ver no jovem oficial que é o protagonista da história uma transposição de acontecimentos vividos pelo próprio Sena, mas que agora são completamente ficcionalizados.

“A Grã-Canária” realiza, dentro do encadeamento que vem sendo analisado, a última e mais completa passagem da memória pessoal para a ficcionalização dessa memória [6]: a narração do conto é autodiegética, o que significa dizer que não só os fatos vividos pelo escritor são transpostos para a ficção, mas também o próprio processo de rememoração desses fatos, agora transferido para um narrador imbuído do seu papel de doador do texto, tal como acontece em Sinais de fogo. O conto não é mais a recriação de um tempo perdido na memória do escritor, nem pode ser considerado absolutamente autobiográfico, porque possui uma estrutura rigorosamente construída: a narrativa é dividida em cinco partes (e o romance também será); nas duas primeiras, a narração é quase impessoal, camuflada/imiscuída em um nós que irmana todos os jovens marinheiros (que pode ser interpretado como uma espécie de «espírito de corpo» que se forma tanto na Marinha como no Exército, e que será certamente reflexo da própria experiência do autor); na terceira parte, esse nós passa a envolver apenas o protagonista e dois amigos; é na parte IV que são narrados fatos relacionados exclusivamente ao herói, e é nesta parte também que ele ouve a história da jovem prostituta, o cerne do conto; a parte V reúne novamente os cadetes, não mais sob um nós unificador, mas individualizados, devido às experiências particulares que viveram.

Além disso, a história da prostituta, neste último conto, se participa, por um lado, do mesmo contexto geral de «vida de marinheiros» do conto anterior (e há mesmo nele um «camarada detestado» que faz insinuações ofensivas ao herói, e é surrado no final, tal como acontece em “Atlântico”), por outro amplia a perspectiva, sobretudo porque estabelece a mesma imbricação da temática erótica e da temática política que aparecerá em Sinais de fogo [7]: a Guerra Civil de Espanha surge na narrativa como a manipulação política que deforma e destrói a vida dos indivíduos, que os condena ao isolamento (à falta de encontro, até mesmo o amoroso, que só se realiza momentaneamente, para aquele que está «ilhado», com o outro que vem de fora), e o narrador torna-se a testemunha e a voz denunciante do mundo de opressão da guerra e da(s) ditadura(s).[8] Tanto um aspecto como outro, contudo, não são exclusivos de “A Grã-Canária”: compõem, em maior ou menor grau, todos os outros contos do livro e também o romance escrito pouco tempo depois deles. Tem-se a impressão de que, assim como A personagem total começou por ser um conto de uma série antes de converter-se em romance, também Sinais de fogo nasceu, de forma completamente inconsciente por parte de seu autor, desse processo rememorativo de composição que deu origem a vários contos, e tornou-se como que um corolário e encerramento de toda uma seqüência de obras de ficção que começou a ser pensada como Monte Cativo.

O projeto Monte Cativo

Depois das “Duas medalhas imperiais”, só em 1944 surgiu uma nova obra de ficção de Jorge de Sena, o conto “Razão de o Pai Natal ter barbas brancas”, publicado em Acção, em 28 de dezembro daquele ano, que pode ser considerado como a verdadeira estréia editorial do autor no campo da prosa de ficção (e que também foi incluído posteriormente nas Andanças de 1960). No entanto, é justamente de 1942, a data limite da divisão do conjunto da obra e início do período da maturidade, a mais antiga referência ao romance Monte Cativo: em um caderno de rascunhos, entre dois poemas datados de fevereiro de 1942 (“Ode a um reformador do mundo”) e maio do mesmo ano (“Tangente”), está anotado «Monte Cativo» (Cf. Mécia de Sena, “Notas bibliográficas”, em Sena, 1994, p. 175), nome de uma rua da cidade do Porto, onde Sena viveu entre 1940 e 1944, freqüentando o Curso de Engenharia Civil na Faculdade de Engenharia do Porto. Apenas um nome, mas também já uma idéia que levou o escritor a anotá-lo.

Dois anos depois, em 1944, surge mais uma referência ao romance, esta mais consistente. Em outro caderno de rascunhos, Sena fez o seguinte apontamento:

Casos e tipos para Monte Cativo – Revolucionário de Taberna: Amor da neta; história de Portugal em verso; fazedor de versos e não poeta; filho no Conde Ferreira para não ir para o Tarrafal; antigo secretário de finanças; teve um jornal: O melro, preso várias vezes; amigo de pessoas em evidência que lhe dão dinheiro; pera tosquiada; olhos expressivos diluídos em álcool. (Cf. Mécia de Sena, “Notas bibliográficas”, em Sena, 1994, p. 175)

O caso e o tipo não chegaram a ser aproveitados em Monte Cativo – isto é, não surgem em nenhum dos fragmentos do romance que se conservaram –, mas podem ser encontrados em um poema, “Armistício da moda”, escrito em 28 de outubro de 1944:

Fui ao cinema ver uma fita em que a morte é vulgar,
como lhe convém; chorei.

Estou lendo um livro de suaves versos,
chorei.

Um bêbado, ontem, falou-me com heroísmo,
do filho que dera como doido,
para não ver preso muitos anos,
e chorei.

[…]

Se esta guerra, meu Deus, não acaba nunca,
fico ébrio
para sempre.
(Sena, 1989b, p. 61)

O poema é nitidamente de circunstância, já que explicita as marcas do momento da enunciação, evidenciadas pelos anafóricos ontem e esta guerra: a compreensão destes elementos passa necessariamente pela data de composição do texto poético. Foi enviado a José Blanc de Portugal em uma carta escrita no mesmo dia, carta esta que esclarece os elementos biográficos aproveitados (a fita cinematográfica – Guadalcanal diary – e o livro de versos – Dia longo, de Ribeiro Couto). O que caracteriza este poema é o fato de que ele assume o seu caráter circunstancial, o que poderia levar a considerá-lo de interesse limitado, preso a condicionamentos biográficos e de época. Entretanto, é precisamente o contrário que merece atenção: até certo ponto, o poema revela que é a sua circunstância que o torna feixe de significados literários e culturais diversos – algo que reconheceram vários poetas e estudiosos ao longo do século XX: se toda circunstância é poetizável, como preconizava Goethe, então, na verdade, todo poema é «de circunstância», porque compreendido em um espaço de trocas textuais que o situam na História. Além disso, conforme afirma Sena no “Isto não é um prefácio” de Peregrinatio ad loca infecta (1969), a específica circunstancialidade da poesia faz de cada poema um comentário (no mais alto sentido moral) do próprio poeta à sua situação no mundo – testemunho, portanto.

Algum tempo depois da anotação sobre o «revolucionário de taverna», Sena fez o seguinte registro em um diário (datado de 1 de março de 1946):

De cada vez que penso no «503», lembro-me que tenho de começar a escrever o Monte Cativo, e que a primeira coisa será o fim: a fuga de madrugada, na terça de Carnaval, aos «espíritos». Entro no «Café da Universidade». Só uma lâmpada. Dois velhos e uma mesa. Cinco horas. O criado ao balcão, aquecendo-me o café. E um dos velhos, encostado à parede (falavam da campanha da Rússia), dizia mansamente: – E a neve? A neve? Tanto material perdido, enterrado na neve… Saí. O único sinal da manhã era o apagarem-se os candeeiros, por sectores, à medida que eu avançava, deixando atrás de mim uma escuridão, a que procurei fugir, correndo, para acompanhar o ritmo do electricista que, lá longe, não sei onde, ia de comutador em comutador. Tanto material perdido, enterrado na neve… enferrujando… perdido… (Sena, 2004, p. 37)

Este final de Monte Cativo realmente foi escrito, ainda em 1946, aproveitando o episódio referido, e depois foi transformado em conto: “A Campanha da Rússia”. Como as narrativas de “Duas medalhas imperiais”, foi revisto em 1960 e incluído nas Andanças do demónio. A nota do autor, em Antigas e novas andanças do demónio, indica que há relações do conteúdo do conto com o de vários poemas escritos à época dos fatos narrados, 1942-43, ou da sua escrita, 1946 (publicados em Perseguição, Coroa da Terra e Fidelidade), e também com “Choro de criança”, o derradeiro conto escrito, em maio de 1962, para a seqüência d’Os grão-capitães.

“A Campanha da Rússia” é mais um texto que participa do referido processo rememorativo de composição que começou com as narrativas breves de 1940 e 42: tal como acontece com “A Grã-Canária”, a narração é autodiegética, e constitui-se como recordação de fatos passados da vida do narrador – isso fica claro desde a abertura:

Quando fui morar para aquela casa da Rua de Cedofeita […], eu sabia, é claro, que os «espíritos» do Porto eram oficialmente invocados numa rua vizinha […], mas não sabia que o mesmo se produzia no andar térreo daquela casa, cujos inquilinos eram assíduos e domésticos praticantes de iguais experiências. Eu vivia, nesse tempo, em petição de miséria […]. (Sena, 1981, p. 115)

Este primeiro parágrafo termina com uma meditação que envolve tanto o passado da diegese quanto o presente da narração:

Se os meus amigos me estimaram e estimam, não é de uma intimidade que sempre me constrangeu, e que eu próprio não sou capaz de retribuir, mas de uma lealdade e uma franqueza, ou melhor, uma ingenuidade que, ciente e experiente de tudo o que a vida tenha de terrível e de sórdido, não menos é, ferida e dolorida, a surpresa constante de que a amargura se faz. (Sena, 1981, p. 115-16)

Por causa da vida miserável que levava e dos amigos que, por troça ou outro motivo, queriam assustá-lo com fantasmas (os «espíritos» nos quais não acredita, mas dos quais tem medo), o herói passava as noites perambulando pelas ruas, presenciando uma série de situações de miséria humana, que parecem mais perturbadoras na noite de Carnaval, (re)vivida como num delírio. Os dois últimos parágrafos do conto retomam quase literalmente o registro feito no diário, que, inserido nesse novo contexto, assume outros sentidos além do inicial. É novamente o testemunho individual que reapresenta criticamente a História: a desumanização que a guerra provoca corporifica-se no comentário do velho, que lastima as perdas materiais da campanha de Hitler para invadir a Rússia, e não as perdas humanas.

Dois anos após “A Campanha da Rússia”, em uma carta a Mécia de Sena, de 17 de fevereiro de 1948, o autor das Andanças se referia assim ao romance que tencionava escrever:

Quando começarei o romance?… Olha, lê tudo o que está aí para trás. E depois, repara: o «Prior» [a tragédia em moldes clássicos O indesejado (António, rei)] é grande demais, não se atrevem a pô-lo; o “Amparo de Mãe”, estou certo de que a censura teatral a cortava, e prefiro esperar oportunidade de publicar, o que depois de cortada não poderia fazer; e o romance, esse, medito-o tão áspero, tão fantástico e violentamente realista, que nenhum editor se atreverá a pegar-lhe, e talvez só o Sousa Pinto (o dos Livros do Brasil) lhe possa pegar para publicá-lo no Brasil. E, mesmo assim, não teria ilusões; mesmo publicado lá, seria uma catástrofe, gritariam que eu enxovalhava o berço da nacionalidade, que lá não havia só gente sem caráter, viciosos, ladrões, prostitutas, tuberculosos, etc., que será 50% da população do romance, que pretende dar a decomposição desorientada de um povo e a opressão da juventude. Tu mesma me condenarás: ser-te-á insuportável que eu estadeie tão secretas misérias em termos que nunca até hoje se ousaram. Admitirás que uma das cenas mais importantes se passe numa clínica popular e coletiva de doenças, etc., etc., não sei se me entendes? Aceitarás que uma das figuras significativas seja «patroa» de uma «certa» casa e mãe de um estudante da Faculdade, que, ao partir, miliciano, para os Açores, lhe deixou em depósito a sua prostituta predileta? Não aceitarás, e é verdade, existiu, vi. Aceitarás que uma figura da alta sociedade rapte, de automóvel, jovens, e os adormeça com drogas? Soube-o, com provas. E isto é a décima parte do “Monte Cativo” que começa assim: «Quando nasci, meu pai inclinou-se sobre a cama de minha mãe, e disse: – Estás segura». Ou faço uma coisa nunca vista, ou não farei. As cenas, as figuras, a composição geral, fragmentos, tudo me perpassa na cabeça; mas quereria ter tempo para construí-lo, e escrevê-lo cuidadosamente.
Subitamente, parei… – e escrevi três páginas e meia, a abertura tão sonhada do “Monte Cativo”. Pode ser que não continue, emperre… – Alea jacta est.
(Sena; Sena, 1982, p. 154-55) [9]

A escrita do romance não progrediu mesmo para além das três páginas e meia do fragmento inicial (Cf. Sena, 1994, p. 141-44) [10], e não progrediria mais senão de forma bastante fragmentária. Mas as palavras de Sena na carta são elucidativas de alguns aspectos importantes a serem considerados em relação a Sinais de fogo. A descrição que o autor faz da planejada obra é, mutatis mutandis, a que se pode fazer do romance iniciado em 1964: há mesmo no primeiro volume do ciclo personagens como a «‘patroa’ de uma ‘certa’ casa» (a «Ti Mariana», dona da casa em Buarcos) ou a «figura da alta sociedade» que rapta jovens (a sogra do tio Justino). Além disso, nele também se encontra (como está igualmente n’Os grão-capitães) a exposição das «secretas misérias» de uma realidade social decadente, «em termos que nunca até hoje se ousaram». Vê-se como Sinais de fogo representa uma constante fidelidade a um projeto acalentado por quase vinte anos.

Por outro lado, o que Sena diz na carta tem direta relação com o seu processo de criação, em dois sentidos. Primeiramente, o fato de a criação – entendida de forma geral, e não apenas restrita à prosa de ficção – ser um processo mental, de elaboração interior contínua: «tudo me perpassa na cabeça». Para o poeta,

A expressão poética é um domínio, uma disciplina, uma orientação. […]
Domínio, disciplina, orientação exercidas sobre o nosso espírito a todas as horas, como uma preparação constante, implacável, humilde e atenta daquele momento em que o poema aparece. E ele então, surgindo súbito, sem que saibamos o que vai dizer, dirá.
(Sena, 1984, p. 50) [11]

Dirá o poema – e dirá também o conto, a novela, o romance: em se tratando da obra seniana, na qual as relações entre os diferentes gêneros são freqüentes, pode-se afirmar que, neste caso, o que vale para a poesia vale também para a prosa de ficção. Assim se explicaria o fato de o autor ter sido por tanto tempo fiel ao projeto inicial e de existir uma certa continuidade entre os vários fragmentos deixados; mais do que isso, permite compreender como foi possível a ele começar a escrever Monte Cativo pelo fim (o fragmento de 1946, transformado em conto): é que Sena convivia mentalmente com a «composição geral» da obra, sem no entanto ter tempo de construí-la senão aos poucos – apenas os fragmentos lhe «surgiam súbito», mas sempre como parte do conjunto mentalmente elaborado [12].

O segundo aspecto do processo de criação seniano a ser considerado é a já referida questão da transmutação de experiências autobiográficas em elementos ficcionais. Por duas vezes, na carta a Mécia, Sena insiste no caráter verídico de elementos da trama romanesca: «Não aceitarás, e é verdade, existiu, vi. […] Soube-o, com provas.» É como se, para ele, a aspereza e o extremo realismo do romance só se justificassem se fossem a transposição rigorosa de fatos vividos e/ou testemunhados: a crueldade está no mundo, e não na literatura; por outro lado, esta não pode fantasiar aquele senão revelando fielmente o que ele é – cruel.

O fragmento inicial de Monte Cativo escrito em 1948 também pode ser analisado dentro do processo de composição que transita entre a memória do vivido e a sua transposição artística. Tal como acontecerá com “Atlântico”, a narrativa deste fragmento é heterodiegética (o que o distingue formalmente de “A Campanha da Rússia”, escrito dois anos antes); no entanto, há uma sobreposição das vozes do narrador (ausente da diegese) e do protagonista, desde o incipit:

Quando nasci, meu pai inclinou-se sobre a cama de minha mãe, e disse « Estás segura ». Não sei se terá dito o mesmo, por ocasião dos meus anteriores irmãos frustrados. Calara-se. Vira passar nos olhos do amigo um sorriso entre compreensivo e irónico. Não, não devia ter contado aquilo; não devia ter contado assim. Ele não vivera a sua vida, apenas superficialmente ouvira confissões discretas. (Sena, 1994, p. 141)

A narrativa inicia-se com a voz do protagonista, mas, devido à ausência de marcadores gráficos, o leitor só saberá disso na seqüência do texto (e mesmo pode instalar-se a dúvida sobre o sujeito de «Calara-se»: quem, o pai que fala com a mãe, ambos rememorados pelo eu, ou o personagem, que falara na primeira pessoa até aquele momento?); depois, incorpora o discurso indireto livre, que dará lugar, paulatinamente e em todo o resto do fragmento, a um tipo de fluxo da consciência do personagem, fundindo a viagem de trem contada pelo narrador ausente e outra viagem rememorada pelo protagonista. Essa sobreposição de memórias dialeticamente articuladas será provavelmente o primeiro indício textual do diálogo desses textos (e de Sinais de fogo) com a escrita de Marcel Proust (sobretudo, neste caso, com a primeira parte de À la recherche du temps perdu, “Combray”).

Nos anos 50, são poucas as referências a Monte Cativo: na edição em livro d’O indesejado (separata da Portucale), de 1951, em nota biobibliográfica vem a indicação de que o romance está «em preparação». Em publicações posteriores, como Andanças do demónio (1960) e O reino da estupidez (1961), a obra é indicada como «a publicar». Foi durante os anos 60 que o projeto do Monte Cativo se ampliou consideravelmente, e que Sena passou a cogitar na hipótese de escrever uma «suma romanesca», da qual, segundo hipótese de Mécia de Sena, o romance Monte Cativo seria o segundo volume: em carta para Luís Amaro, de 20 de janeiro de 1965, Sena fala de um «vasto romance cíclico há muito registrado com o nome de ‘Monte Cativo’». Em 1963, surgiu um outro fragmento, que poderia vir a ser o final do terceiro volume (Cf. Sena, 1994, p. 145-47). Há ainda, sem indicação de data, mas que é também provavelmente da primeira metade da década de 60, aquilo que seria o início do quarto volume, um fragmento intitulado “Os corvos de Minerva” (Cf. Sena, 1994, p. 157-63).
Em fins de 1964, após a preparação e as provas da livre-docência que realizou em Araraquara-SP, Sena começou a dedicar-se exaustivamente aos Sinais de fogo, que se tornariam o primeiro volume do ciclo; até junho de 1965, tinha cerca de 300 páginas datilografadas; por várias razões, inclusive a mudança para os Estados Unidos, a escrita foi interrompida, e só retomada em 1967, para ficar depois no ponto em que hoje se lê o texto.

 

Notas:

1. Para J. Fazenda Lourenço, ele seria, se concluído, «um dos poucos romances modernistas portugueses» (Lourenço, 1996, p. 216). É interessante notar que a epígrafe da obra é um excerto do início d’A montanha mágica, de Thomas Mann (em tradução francesa), o que indica a admiração nascida desde cedo pelo autor alemão.
2. Recorde-se que Nome de guerra, escrito em 1925, só veio a público em 1938, ano em que Sena começou a escrever A personagem total.
3. Grande parte da correspondência de Jorge de Sena ainda continua inédita. Para não sobrecarregar o texto de referências à procedência das cartas, fica aqui previamente registrado que as que forem citadas e se encontram já publicadas (para Taborda de Vasconcelos, Dante Moreira Leite, Eduardo Lourenço, Vergílio Ferreira, José Régio, Guilherme de Castilho, Sophia de Mello Breyner e José-Augusto França), são-no conforme as indicações feitas nas referências bibliográficas; as outras, inéditas, foram consultadas diretamente nos arquivos de Mécia de Sena, em sua casa de Santa Barbara, CA, Estados Unidos, onde essas correspondências se encontram organizadas e à espera de publicação.
4. Esse encadeamento já ocorrera, ainda que de forma incompleta, com a primeira série de contos escritos pelo autor, Génesis, composta por dois contos, “Paraíso perdido” e “Caim”, datados de 1937 e 1938 (Sena, 1986a).
5. Menos dois, que foram publicados anteriormente na revista O Tempo e o Modo: “Homenagem ao papagaio verde”, no n° 41, de setembro de 1966; e “O bom pastor”, no n° 59, de abril de 1968 (número especial dedicado ao autor), este último bastante cortado pela censura. Houve ainda o projeto de uma edição brasileira que não se concretizou, e do qual restaram apenas fragmentos de um prefácio.
6. Essa passagem já ocorrera também em outro texto, mas que não participa desse encadeamento de que estou tratando (Cf. infra o que é dito sobre “A Campanha da Rússia”).
7. O conto poderia até mesmo ser visto como uma espécie de continuação do romance (não fossem as particularidades de cada narrador-personagem que não vem ao caso expor), seja porque acrescenta novos dados relacionados à Guerra Civil de Espanha, seja porque desdobra a problemática amorosa.
8. Além disso, o conto possui uma configuração alegórica, baseada sobretudo nos motivos da ilha e do navio português: por causa deles, “A Grã-Canária” apresenta-se como uma paródia moderna da Ilha dos Amores camoniana. A análise de “A Grã-Canária” segundo essa perspectiva pode ser encontrada nos ensaios de Helder Macedo (1983) e de Francisco Cota Fagundes (1999).
9. Em relação ao que foi explicado na nota 3, a correspondência do escritor com Mécia de Sena é a única exceção, por estar apenas parcialmente publicada; as cartas que forem citadas e ainda estiverem inéditas não apresentarão indicação bibliográfica.
10. Três meses depois, Sena ainda escreve à noiva: «Nunca mais tornei a escrever uma linha no Monte Cativo, que até já perdi na montanha de papéis que está renascendo outra vez por todas as mesas. Não temas que as circunstâncias concretas se percam no tempo; as que se perderem é porque não tinham importância.» (carta de 14-15 a 19 de maio de 1948).
11. Esse processo mental de composição, e o caráter repentino da criação poética, também são ficcionalizados em Sinais de fogo, quando o protagonista começa a escrever poemas, sem no entanto ser uma reprodução da «aparição da poesia» para o próprio Sena.
12. J. Fazenda Lourenço lembra-se de aproximar o processo criativo de Sena ao de Mozart, para quem a criação também era cosa mentale: «Mozart escreveu a abertura do Don Giovanni numa só noite, porque ela já se lhe estava estruturando nele, por inteiro, ao correr do tempo. A composição musical era-lhe um processo mental, interior, permanente, e por isso aparentemente espontâneo. Quando já não podia como que sustê-la por mais tempo, acontecia-lhe. De igual modo, Jorge de Sena pode afirmar que ‘nunca concebi nada, antes de começar a escrever’, e, simultaneamente, ‘nada escrevi que de uma vez não escrevesse e não considerasse escrito de uma vez para sempre’.» (Lourenço, 1987, p. 18).