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David Mourão-Ferreira

Jorge de Sena, José Rodrigues Miguéis e David Mourão-Ferreira: Triálogo em Clave de Mito (Parte 2)

Ainda no Diário Íntimo, na entrada de 29 de Agosto de 1948, lemos esta “coisa” surpreendente:

Quando, de manhã, ia a sair daqui,[22] vejo numa mesa o Jorge de Sena. Aproximo-me, cumprimento-o e digo-lhe que gostaria de discutir com ele a sua crítica ao espectáculo do Salitre. Ele convidou-me a sentar-me, e conversámos. Conversa amena toda ela num plano conveniente. Para encurtar, eu li-lhe as observações anotadas neste Diário sobre a referida crítica. Discussão pormenorizada e honesta. Depois, a conversa derivou para outros assuntos— e despedimo-nos o mais amigavelmente possível.
Seria eu capaz de uma tal serenidade antes de ter ido a Paris?

 Jorge de Sena foi uma das testemunhas contra David Mourão-Ferreira e António Manuel Couto Viana, no processo judicial que Alberto de Lacerda lhes moveu por causa de uma Carta Abertíssima distribuída juntamente com os últimos fascículos (19 e 20) da revista Távola Redonda (15 de Julho de 1954), a qual punha em dúvida a honestidade financeira de Alberto de Lacerda. Sena e David viriam a encontrar-se num jantar em casa de Tomaz Kim e David regista no Diário (entrada de 7 de Março de 1955) que “não se falou de literatura”. É deveras significativo que, num jantar entre escritores, se não tenha falado de literatura, e tanto mais significativo, porque Sena enviara no mês anterior As Evidências [23] ao “Ex.mo Crítico do Diário Popular”, conforme leio na dedicatória do livro, sem referência ao nome de tal crítico, bem conhecido de Jorge de Sena, embora não lhe referisse o nome – David Mourão-Ferreira -, que desempenhou naquele jornal as funções de crítico de poesia entre 1954 e 1957.

David faz, como é sabido, a recensão à obra e incluiu-a no volume Vinte Poetas Contemporâneos [24] vindo a lume em 1960. Esta crítica é uma obra-prima da arte de elogiar e simultaneamente de mitigar o elogio. Começa, desde logo, com uma afirmação, que se clarifica dificilmente, se não tivermos em conta os antecedentes críticos a Isolda (que, de facto, não viriam facilmente à memória do leito, em 1955, mesmo que esse leitor tivesse lido a crítica publicada na Seara Nova, sete anos antes.) Cito o incipit da recensão de David, onde o parti pris é transparente como água cristalina:

Nem sempre o crítico tem a coragem, ou a oportunidade, de proferir, antes de proceder à análise da obra, aquele juízo de valor— íntimo, global, imediato, porventura falível — que, em verdade, precede essa análise e em grande parte a condiciona. No entanto, bom será que o faça, certas vezes; desejável seria até que estabelecesse um código com o leitor, por meio do qual este imediatamente se apercebesse do plano em que ele, crítico, através desse juízo, situa a obra. E isso seria desejável, porquanto, sem tal situação prévia, a boa vontade compreensiva, por um lado, e os rigores da análise por outro, serão susceptíveis de escamotear a noção de uma certa hierarquia de valores, que todo o crítico tem o dever de comunicar a quem o lê.”

 Este enunciar e preconizar do que poderemos designar como uma crítica judicativa, a priori, representa tudo o que há de mais afastado das linhas mestras que marcarão a intervenção crítica de David Mourão-Ferreira e que ele explicitará claramente no final da recensão — a necessidade da demorada exegese que toda a obra pressupõe — e, particularmente, no prefácio a essa primeira edição, de 1960, onde, aliás, sente necessidade de esbater a posição tida em 1955, sobre esta obra de Sena. Nessa crítica de 1955, David começa por afirmar que reputa As Evidências como uma “obra de categoria excepcional” e que ela se inclui dentro desse primeiro plano, onde se inserem muito poucas obras da produção portuguesa da época. Fará depois uma asserção elogiosa que David citaria nos seus comentários insertos em O Tempo e O Modo [25] :

Jorge de Sena, quer como poeta, quer como ensaísta, quer como dramaturgo, é porventura a personalidade mais rica, mais complexa, mais importante, revelada depois de 1940.”[26] Depois desta rápida fervura vem, de imediato, o balde de água fria:

E tanto mais timbramos em claramente dizê-lo, quanto é certo acharmos, todavia, algumas vezes, a sua poesia dessorada ou gélida, a sua obra ensaística prejudicada por um pendor alusivo-polemizante nem sempre muito elevado, e seu teatro ainda excessivamente preso à bancada do intelectual, muito pouco feito para as tábuas do palco.”[27]

David é, neste ponto, imparcial, se nos lembrarmos que ele mesmo reconheceu a falta de qualidades dramáticas à sua Isolda. Poderíamos, contudo, perguntar que necessidade haveria de chamar à colação o teatro de Sena, para uma crítica a As Evidências? Penso que é, por demais, evidente. Como é evidente também que, tendo começado por enunciar a priori um lugar cimeiro para esta poesia, toda a crítica enuncie, afinal, não as razões justificativas desse píncaro, mas o que David lê como deficiências, até neste poema que ele considera a mais conseguida obra de Sena: o hermetismo que redundaria na deficiente comunicação dos conteúdos. David socorre-se de uma definição de poesia de Carlos Bousoño para mostrar o que considera a falha poética seniana. Relembro a definição de Bousoño: ”A poesia é, na sua primeira fase, um acto de conhecimento (conhecimento do singular psíquico por meio da fantasia) e, na fase posterior, um acto de comunicação, através do qual esse conhecimento se manifesta aos demais homens”.[28]

Afigura-se a David que a falha reside neste segundo momento em que a fantasia não comparece, devendo comparecer, e que o conhecimento não é feito através dela surgindo, em seu lugar, uma hipotaxe quase obsessiva. David tem a noção de que tudo isto necessita de demonstração a partir de uma análise rigorosa e, não podendo fazê-la, naquele espaço, transcreve integralmente o soneto XIV— «Nenhuma voz me atinge por destino», por considerá-lo exemplo do que há de melhor e de pior na poesia de Sena. Cito: “ Fundas razões temos para recear que o leitor desprevenido, até atingir o belíssimo terceto final, haja muitas vezes parado, tropeçado mesmo.”[29] E novamente se serve da citação, agora de Afonso Lopes Vieira, para matizar o elogio ao terceto final: “ linguagem em que sinta o cansaço da urdidura, para o leitor sensível está perdida”[30] afirmando claramente a ausência de fantasia criadora nos primeiros onze versos.

A partir desta recensão de adesão-nem-sim-nem-não comprende-se que Jorge de Sena tivesse dificuldade em retirar uma opinião crítica favorável para a «Marginalia» inserta na edição de Poesia-I [31] e por isso se limitou a umas escassas três linhas e meia, retiradas de um texto de quatro páginas e meia.

Sena refere-se a David, três anos depois, nas Líricas Portuguesas [32] . Lembremo-nos de que, ao tempo, ele havia publicado apenas três livros de poesia: A Secreta Viagem (1950), Tempestade de Verão (1954) e Os Quatro Cantos do Tempo (1958) embora o segundo tivesse sido galardoado com o Prémio de Poesia Delfim Guimarães, ao qual concorrera com o sugestivo pseudónimo Orpheu 17. Estou convencida de que foi nesta apreciação de Sena, nas Líricas Portuguesas, que se jogou o futuro da relação entre os dois poetas, mutuamente críticos. Escreve Sena:

Este poeta, se não é uma personalidade tão vincada como António Manuel Couto Viana ou Fernanda Botelho tem, todavia, uma mestria técnica e uma desenvoltura irónica — em que a simultaneidade de planos do real é contrapontada — que justamente o destacam e à sua poesia mais ou menos restrita a uma inspiração tradicionalisticamente erótica, pelo fino sentido de uma modernidade discreta, em que o quotidiano e a fantasia se equilibram numa grande segurança de tom, que é do melhor quilate nos últimos poemas”.

Penso que estamos aqui em presença de um Sena perfeitamente imparcial e que só não poderia prever que os dois poetas, com quem o compara, viessem posteriormente a retirar-lhe razão. Com efeito, Couto Viana nem de longe viria a alcançar a dimensão e a projecção de David Mourão-Ferreira e Fernanda Botelho deixaria para trás a poesia, sendo uma das escritoras mais reconhecidas no universo da moderna ficção portuguesa e, na escrita de cariz auto-reflexivo, com o seu livro Gritos da Minha Dança.[33]

Quem conheceu David, de perto, sabe que depois de uma referência como aquela de Sena, ele agulharia, com elevada probabilidade, o seu ponto de vista anterior. E ninguém se escandalize por isso, pois sob o manto diáfano da crítica há homens e mulheres, seres que reagem com emoções, umas explícitas, outras recalcadas e não tenho dúvida em sustentar que as segundas conduzem bem mais à parcialidade do que as primeiras, na exacta medida em que frequentemente confundem o desejo de imparcialidade com a sua real efectivação. David sentiu necessidade de atenuar o tom da crítica de 1955, no prefácio à 1ª edição impressa de Vinte Poetas Contemporâneos, mas, ao querer sanar uma situação com Sena, arranjou um problema muito mais grave com José Régio, o qual nunca mais haveria de resolver completamente. Voltemos ao prefácio de David:

O mais largo espaço consagrado a alguns deles (autores) não corresponde, necessariamente, a qualquer hierarquia de valores nem sequer (pelo menos hoje) a qualquer preferência pessoal. Nesses inevitáveis caprichos «de espaço» veja-se tão-só o reflexo dos aludidos caprichos do Tempo.[34] Mantiveram-se, por isso mesmo, alguns juízos que porventura já não terão razão de ser – mas que a tinham no momento em que as críticas foram publicadas. Citarei, a propósito, dois exemplos: os reparos feitos à poesia de Jorge de Sena, a respeito de As Evidências, ficaram praticamente eliminados pela publicação do livro seguinte -Fidelidade (…)” [35]

É curiosa e digna de louvor, do meu ponto de vista, a nota com que David termina este prefácio: ”Mas, até mesmo nos casos em que a perspectiva sobre a obra de um poeta não veio a ser modificada por livros posteriores, de modo nenhum eu reescreveria hoje exactamente o que escrevi há três, há quatro, há sete ou há dez anos. O rio de Heráclito também atravessa os campos da crítica.

Jorge de Sena não poderia deixar de reparar na modalização discursiva que o prefácio aponta, no que particularmente lhe diz respeito. Numa notável carta de 25/7/60,[36] agradecendo a David o volume Vinte Poetas Contemporâneos Sena faz uma das mais notáveis recensões a este volume enquadrando do ponto de vista teórico. Começa por valorizar David como ensaísta e crítico desde logo porque as recensões do Diário Popular resistem em livro, significando que a sua densidade refencial as valoriza mais como pequenos ensaios mais do que propriamente recensões. Sena tece comentários muito pertinentes do ponto de vista teórico sobre o new criticism (já então, com uns bons trinta anos) não deixando Sena de mostrar o seu interesse por Richards e, sobretudo, por Empson, cujos Seven Types há muito lera, mas também a sua distanciação crítica de todos eles. Sena manifesta ainda o seu interesse pela estilística de Spitzer, mas rejeita as posições a-históricas de Dâmaso e de Amado Alonso, bem como o idealismo crociano. No que concerne ao seu caso pessoal Sena entende que David não lhe fez justiça por não tem entendido o seu pensamento dialéctico, que pretende ultrapassar a contradição que exprime. Sena com justeza irónica refere-se aos métodos de todos eles como excelentes para quem os cria, óptimos para quem os usa, e péssimos para quem acredita neles. Mais que o prefácio de David a Vinte Poetas era sobretudo seu primo João Palma-Ferreira, como arauto do new criticism, no Diário Popular, que Sena, muito justamente, procurava visar. A carta, eminentemente doutrinária, não deixa de ter um toque afectuoso, marcando a definitiva viragem nesta relação.

Nesse mesmo ano de 1960, Sena interpela David, de forma curiosa, na dedicatória manuscrita, em papel posteriormente colado ao volume Poesia-I:

Ao David Mourão-Ferreira, silencioso, crítico e distante – porquê ?- estes vinte anos, que rejulgará, do Jorge de Sena, Brasil, Natal de 1960.

Assim se fez. David Mourão- Ferreira é um dos vinte e três escritores, no total de trinta e nove inquiridos, que responderam ao inquérito «Falando de Jorge de Sena», inserto no volume de homenagem que a revista O Tempo e o Modo no seu nº 59, de Abril de 1968, lhe dedica, tendo passado, em 1967, o 25º aniversário da estreia literária de Sena, com o livro Peregrinação (1942). Por coincidência, é também em 1942 que o futuro autor de A Secreta Viagem ainda sob o nome de David Ferreira Filho, faz a sua estreia, com a publicação da crónica «Peraltas e Sécias», no Jornal Gente Moça [37] – orgão da Associação de Estudantes do Colégio Moderno, em Lisboa, propriedade do pai de Mário Soares.

Mas voltemos ao inquérito de O Tempo e o Modo: Como é sabido, a primeira pergunta era a seguinte: ”Qual pensa ser o lugar que a obra de Jorge de Sena ocupa na literatura portuguesa contemporânea?” Na resposta de David não poderemos deixar de ver a maturação crítica que treze anos operaram. Pega de imediato na questão, no ponto em que a deixara em 1955, não na linha fracturante, mas no ponto da adesão:

Há mais de uma dúzia de anos, ao criticar As Evidências, tive ocasião de escrever o seguinte: «Jorge de Sena, quer como poeta quer como ensaísta, quer como dramaturgo, é porventura a personalidade mais rica mais complexa, mais importante, revelada depois de 1940». E não terei dúvidas em subscrever, ainda hoje, estas mesmas palavras. Manterei, inclusivamente, o adverbial «porventura», que o meu querido mestre António Sérgio me ensinou a prezar e que parece causar engulhos, de quando em quando, a certos camaradas mais novos.

E, se tivéssemos a inocência de pensar que o diálogo entre ambos não é um caso pensado, depressa a perderíamos ao ver como Sena acusa o toque na dedicatória manuscrita no exemplar de Arte de Música, nesse mesmo ano de 1968: ”A David Mourão-Ferreira, esta porventura (sublinhado) Arte de Música, com a velha camaradagem amiga do Jorge de Sena. “

David, a quem poderíamos pôr o cognome do rei D. João I – “o de boa memória”- neste ponto, ficou ligeiramente amnésico, pois ao falar dos engulhos dos colegas mais novos está a dar razão a parte da linha argumentativa de Sena, quando este, em 1948, ao criticar a Isolda, atacava também os mais novos e a sua pretensa, mas não nomeada ansiedade da influência. Mas a perda de memória foi passageira, porque rapidamente retoma a mesma linha de subscrição das suas próprias palavras de 1955, a que notoriamente adiciona a modalização do ponto de vista inserto no prefácio de 1960:

Bastará lembrar que a sua poesia, de então para cá, ainda mais se enriqueceu — ao mesmo tempo que mais se depurou—, através de uma renovada Fidelidade e de inesperadas Metamorfoses, que a vieram colocar num plano cimeiro de dignidade de propósitos e de nobreza de dicção, muito raras não só entre nós como na poesia contemporânea de qualquer outro país. Paralelamente, a sua obra crítica e ensaística foi-se acrescentando, ano após ano, de textos fundamentais cada vez mais rigorosos e mais profundos, tanto no domínio da exegese como no da teoria literária. E, se, entretanto, a sua obra teatral não se viu ampliada, bastaram, em contrapartida, os dois volumes de Andanças do Demónio e de Novas Andanças do Demónio para definitivamente o firmarem como um dos nossos novelistas mais arrojados e mais versáteis, de mais largos recursos de linguagem e de mais livre imaginação, junto de quem fazem triste figura de pigmeus quase todos os nossos ficcionistas revelados nos últimos vinte anos. “ Entre as excepções, aponta Agustina Bessa Luís, Fernanda Botelho, Ruben A., Urbano Tavares Rodrigues e, certamente, não deixaria de pensar em si próprio, que publicara, com assinalável êxito, Gaivotas em Terra, em 1959, e Os Amantes, nesse mesmo ano de 1968.

David recorda finalmente “o seu constante papel de «indisciplinador de almas»; a sua preciosa vigilância, por vezes truculenta, contudo sempre tónica, em múltiplos horizontes da nossa vida cultural; a sua vocação pedagógica, vergonhosamente desaproveitada onde era mais necessária, mas felizmente estimulada, em universidades brasileiras e norte-americanas—e ter-se-á uma ideia, ainda que pálida, da imensa falta que ele nos faz aqui.” Sena deve ter apreciado estas últimas palavras e, porventura, ter-se-á admirado do tom superlativo delas, não porque as achasse imerecidas, mas por virem de quem vinham. A razão é simples e chama-se pensamento solidário: David tinha sido afastado da universidade em 1963 e, naturalmente, e com razão, achava que ele mesmo fazia lá imensa falta [38] . Não estranharemos, depois de tudo quanto David argumentou, que entre o Sena criador e o Sena crítico, aquele coloque em maior destaque o segundo:

Como criador: ao lado, pelo menos, dos maiores. Como crítico, como ensaísta, como animador cultural: à frente, sem dúvida, de quase todos os maiores.” Não resisto a lembrar a saborosa ironia de David em Jogo de Espelhos (LII) sobre o juízo crítico inter-pares: ”Os poetas costumam considerá-lo razoável narrador; os narradores, razoável poeta. E uns e outros, desde que elogiosamente sobre eles tenha escrito, um clarividente ensaísta.” [39]

Na questão da influência, que Sena poderá ter exercido sobre David, também a resposta é surpreendente:

Não sei, ao certo, se ele me influenciou; sei, no entanto, que lhe devo muito —, bastante mais do que ele possa supor. Algumas vezes veladamente polemicámos, e sobretudo a respeito de assuntos em que hoje estamos de acordo. Mas durante anos e anos, raro era o texto que eu publicava, sem que a mim mesmo perguntasse qual seria a reacção de Jorge de Sena, no caso de o ler. Ainda hoje por vezes isso me acontece; e não me acontece em relação a muita gente. É que sempre reconheci em Jorge de Sena, um mestre, um juiz privilegiado, uma testemunha incomparável. Todavia quase sempre procurei furtar-me à sua influência. E não será isto, afinal, uma forma de ele me ter influenciado?
Não encontro nenhum outro respondente ao inquérito, que tenha levado tão longe a sinceridade, como David a levou. Há aqui mais do que lhe foi pedido. Há aqui uma declaração pública de admiração, o caminho directo para as amizades duradouras. Se atentarmos na Cronologia seniana, elaborada por Luís Adriano Carlos,[40] verificamos que nos últimos anos de vida, o escritor foi objecto de particular atenção da parte de Portugal. David Mourão-Ferreira teve nesse aspecto uma palavra a dizer, e não de menor valia, visto que era, ao tempo, Secretário de Estado da Cultura. Note-se que este pormenor em nada belisca o merecimento de Sena a tais homenagens. É apenas a prova de que a amizade não é cega, e, bem ao contrário, torna-se mais clarividente, quando, no lugar em que outros colocam a inveja, Sena e David colocaram admiração mútua, a mesma, afinal, implícita na dissidência.

Um dos aspectos que me impressionou muito positivamente na leitura desta correspondência entre Sena e David foi a generosidade de Sena para com Raul de Carvalho (que se encontrava numa difícil situação), intercedendo junto de David, mais de uma vez, para ir em auxílio do amigo. Estas atitudes solidárias engrandecem-nos a ambos desmentindo muitos considerandos depreciativos, que, frequentemente, também a ambos são associados.

Conforme me informa Pilar Mourão-Ferreira, viúva de David, a partir de 1970, várias vezes terão recebido em sua casa Mécia e Jorge para jantar. Pilar recorda-se, particularmente agradada, dos magníficos serões que passaram juntos. Sena, em carta de 31 de Janeiro desse mesmo ano, refere-se a esse convívio e faz questão de frisar o gosto que tiveram em conhecer Pilar. Depois da morte de Sena, Mécia também não esqueceu estes amigos de Lisboa, pois vejo com gosto a manutenção da correspondência, durante a década de 80, bem como a sua dedicatória nas edições póstumas, que continuou a enviar a David Mourão-Ferreira.

 


A Clave de Mito

Para além das circunstâncias vivenciais e críticas enunciadas, afigura-se-me possível estabelecer alguns elos de ligação entre os três autores, em clave de mito, considerado em acepções diversas. Comecemos pelo mito do Salvador da Pátria, em que assenta o messianismo, o sebastianismo e, correlatamente, todas as situações em que um sujeito colectivo projecta, quando não aliena, para um outro sujeito individualizado, ou não, a transformação de um presente deceptivo, num futuro compensador que se deseja iminente. O mito do salvador da Pátria é uma espécie de futura fórmula resolvente da pasmaceira do presente. É este o caso do romance de Miguéis O Milagre segundo Salomé, onde se faz a denúncia do mito salvífico a dois níveis: por um lado a Senhora de Meca (e não esqueçamos que a filha do Profeta Maomé se chama Fatma, nome que se crê na origem do topónimo Fátima). Por outro lado, o general ABC – Abílio Belmarço e Couto – cuja caracterização ficcional assenta como luva ao General Gomes da Costa, que encabeçou o golpe militar de Maio de 1926, o qual abriu as Portas a um regime de quarenta e oito anos de ditadura, em Portugal.

O mito é, por vezes, construído pelo próprio salvador, o qual, com as melhores ou as piores intenções, se rodeia de fiéis sequazes que, neste caso, o ajudam a atingir um objectivo bem diverso do inicial: constatar que os salvantes não querem ser salvos por este salvador, que, de derrota em derrota, só encontra sossego na morte. Nem preciso de mencionar o título seniano de «O Indesejado» [41] , porque ele é, por demais, evidente. Vou antes referir o primeiro caso da instância salvífica, com uma ligeira variante: os agentes e promotores salvíficos, à falta de verdadeiro salvador, inventam um simulacro. Vejamos como:

Em 1971, Miguéis enriquece a sua então já rica bibliografia com um romance de título estranho: Nikalai! Nikalai! seguido da novela A Múmia. Aquele título reporta-se ao onomástico de Nicolau II, o último czar da Rússia, misteriosamente desaparecido, assassinado segundo alguns, foragido no estrangeiro, segundo outros. Um grupo de russos anti-bolcheviques, refugiados em Bruxelas, decidem salvar a Santa Madre Rússia, contratando um anarquista, sósia do desaparecido czar Nicolau e organizam uma invasão com o fim de restabelecer o antigo regime. O jogo entre a verdade e o simulacro torna-se a placa giratória do entrecho ficcional e a contradição nos termos não pode ser mais óbvia: só um falso czar pode ressuscitar o verdadeiro czar. Inventar um falso czar é uma forma de corromper a sua memória e, simultaneamente, de a preservar.

Nestes termos, o paradoxo não é o contrário da verdade. É apenas a verdade vista do lado contrário. Se o simulacro funciona junto dos devotos seguidores, porque não o reconhecem como simulacro, ele acabará a gerar uma inevitável contradição ética entre os seus promotores, dois personagens de nomes risíveis – Tatarátsin e Buldogóv – uma espécie de sósias da dupla Dom Quixote e Sancho Pança. Como se imagina, Dom Quixote não aguenta a pressão e acabará a suicidar-se, porque só a morte pode resolver as contradições insolúveis. Sancho Pança continuará a mascarada e acabará derrotado pelos bolcheviques. Se considerarmos que o romance satiriza quer o conservantismo csarista, quer o revolucionarismo bochevique, fácil será supor que esta obra de Miguéis não agradaria nem a gregos nem a troianos. Poucas foram as vozes que se levantaram, na época, para manifestar adesão. Entre elas, Jorge de Sena, David Mourão-Ferreira e Maria Lúcia Lepecki. Em carta de 8 de Maio de 1971, Sena pronuncia-se sobre a alegoria que estrutura o romance e que é (em palavras de Sena) “a da luta entre o «exílio» que saiu do tempo, e um tempo que é falsificado pelos totalitarismos. E Sena pergunta: “Será que aquela gente em Portugal é capaz de entender estas coisas, de divertir-se a sério com um romance que, sob a capa do entertainement, é realmente um panfleto político? Tenho as minhas dúvidas e a ver vamos.

O autor de O Indesejado considerou este livro, “talvez o primeiro em que, em português, as questões políticas que estão no nascer da nossa época aparecem — e isso não é dos menores valores do romance.”[42] E continua: “Temo, ainda, que as fúrias que Nikalai! Nikalai! vai desencadear (e que agora em Portugal sempre se cifram em silêncios … , encubram a obra-prima que A Múmia é”. Sena referia-se naturalmente à novela acoplada ao romance, que, tal como ele previu, só muito recentemente se viu valorizada, justamente do ponto de vista que Sena intuiu: “a partir do jogo que nela se faz com o tempo, com a memória, com o fluxo e contrafluxo das reminiscências”.[43]

Será lícito supor que Sena adere desde logo a Nikalai! Nikalai!, porque talvez ao nível do seu inconsciente crítico tenha visto na obra uma variante, ainda que em registo grotesco, da “tragédia de uma consciência nacional, lutando contra a abstracção e sujeição crescentes do seu próprio destino”, como na sua tragédia em verso. No segundo acto lemos estas significativas palavras de D. António para Figueiredo:

“...E nessa noite, cinco foragidos/foram bater às portas do castelo/ de Arzila. E não lhas abririam, se/ um deles não fingisse que era el-rei…” E pergunta Figueiredo aludindo ao traidor:”— Duarte de Castro?” Ao que D. António responde: ”— Não, outro qualquer. / (com ironia triste) E foi assim que el-rei nunca morreu. (pausa) Não me entendeis agora …”[44]

Quem entendeu perfeitamente estas palavras foi Miguéis, exímio criador de figuras em perda, como este António Indesejado de Sena, já que a personagem típica do universo diegético migueisiano é um anti-herói, como apontou Maria Lúcia Lepecki [45] , que raramente se manifesta em processo de realização. Tal como n’O Indesejado, também aos russos de Miguéis não faltou nada nem ninguém. Só faltou a Pátria…

Comum a Sena, a Miguéis e também a David é ainda a saudade do inacabado e que só em sonho parecia realizável. Diz D. António: ”A saudade não é do que já foi, / nem é de como foi, / porque a saudade/ é do que nós, mais tarde, imaginamos/ poder ter sido. É do não feito. É do/ inacabado em tudo. Eis a saudade.”[46] Será ainda a incompletude, o inacabado, que lemos na voz do sujeito poético de «A morte de Isolda», em Arte de Música: ”Por mais que de crescendos delirantes/ se evolem as volutas de uma chama ambígua, / nesta fluidez sem tempo não há gozo algum, / mas prazer remoto do que não foi vivido/ senão como entressonho e fatal gesto;”[47]

Na Isolda de David (e não esqueçamos que foi escrita pelo jovem aos vinte anos) a personagem que dá o nome à peça, num diálogo com a Aia, analisa o espinho da ausência de Tristão, negando tratar-se de saudade:

Não; não há saudade. O que custa não é a lembrança, é a ausência. E mesmo certas vezes quando é a lembrança que me dói, essa lembrança nunca é saudade: é uma espécie de amor a mim-mesma: um amar-me o que fui, nesse tempo e o amar o que esse tempo foi. Não; saudade nunca há. Porque se houvesse saudade, era já encontrar um gosto no desgosto, era aceitar a situação, resignar-me a ela (…).”[48]

Nesta não-resignação ao presente, creio ainda ler em Isolda “o prazer remoto do que não foi vivido”, como no verso de Sena, todavia, com uma diferença não despicienda: o sujeito seniano não pode falar de esperança, falando da morte de Isolda, mas Isolda viva, pode falar da sua esperança, esperando completar o que incompleto ficou. Tristão é o seu mito salvador do presente deceptivo, na Pátria de Rei Marco que não reina no seu coração. O poema de Sena parte da versão canónica do mito para mostrar a secura do sexo predeterminado onde “palpita a frustração do amor maldito/ porque de um filtro só nasceu”. David desmitifica o mito para dar lugar ao humano, que o mesmo é dizer, à volição, ao desejo mútuo e espontâneo, à paixão humana, filtrada apenas pela lupa incandescente do desejo. Por isso Isolda nega a versão mítica do filtro de amor:

Foi apenas um estratagema de minha mãe…para me convencer a gostar de Marco. E, para nós, para mim e Tristão, foi um pretexto…uma desculpa…Muitas vezes, Tristão me repetiu: «Filtros se os havia, estavam em nós. E tão semelhantes e tão opostos, que seu destino era só o de unir-se. Filtros se os havia eram esses: estavam em nós…»

O mito salvífico de Isolda é, pois, o mito do amor coup de foudre, em que os amantes procuram e encontram a metade perdida. É o mito do amor d’O Banquete de Platão, como reconhecimento da outra parte de si mesmo.

O sujeito do poema seniano, desejando salvar na morte o que o maléfico destino do filtro na vida não salvou, recupera o mito do amor:

Fica-nos o gosto da piedade. / E uma vontade de enterrá-los juntos/ p’ra que talvez na morte —imaginada— se conheçam/ melhor do que se amaram. E também o ardor/ de uma impotência que se quis só sexo/ virgem demais para um amor da vida.

O mito como uma energia cósmica, que tudo absorve, tudo anula e tudo salva pela força, pela superação, ou encenada superação da contingência. O mito, no âmbito deste texto, tal como o filtro da Isolda de David, é ainda pretexto mostrando que, geometricamente, as linhas literárias concorrentes que Sena, Miguéis e David não deixam de ser, quando prolongadas, sempre se encontram nalgum ponto, aquém do infinito.

 

Notas:

22. Do Café Chave d’Ouro, no Rossio.
23. As Evidências- Poema em Vinte e Um Sonetos, Lisboa, Centro Bibliográfico, 1955.
24. Cf. 2ª edição, revista e ampliada, Lisboa, Edições Ática, 1980.
25. O Tempo e o Modo. Nº 59, Abril de 1968.
26. Loc. cit. p.381.
27. Vinte Poetas Contemporâneos, 2ª ed. p.168.
28. Idem, pp.168-169.
29. Idem, p.170.
30. Idem, ibidem.
31. Poesia-I, Lisboa, Livraria Moraes, 1961.
32. 3ª série, Lisboa, Portugália Editora, 1958, p.441.
33. Fernanda Botelho, Gritos da Minha Dança, Lisboa, Editorial Presença, 2003.
34. Régio era o poeta a quem mais espaço era dedicado e a situação tornou-se mais delicada, já que na dedicatória manuscrita do volume que David ofereceu ao autor de Poemas de Deus e do Diabo continuava a penhorar-lhe a mais rendida admiração.
35. O outro nome- exemplo citado por David é o de Sophia de Mello Breyner Andresen sobre o volume No Tempo Dividido.
36. Arquivada no Espólio de David Mourão-Ferreira.
37. «Peraltas e Sécias» in Gente Moça, nº10, Janeiro de 1942.
38. David só regressaria à universidade em 1970.
39. Trata-se de uma auto-referência, sendo a 3ª pessoa uma 1ªpessoa implícita.
40. Luís Adriano Carlos, Fenomenologia do Discurso Poético- Ensaio sobre Jorge de Sena, Porto, Campo das Letras,1999, pp.379-388.
41. O Indesejado (António Rei)- tragédia em 4 actos, em verso. Porto, 1951.
42. Idem, ibidem.
43. Idem, ibidem.
44. O Indesejado, pp.43-44.
45. Maria Lúcia Lepecki, in Meridianos do Texto, Lisboa, Assírio e Alvim, 1989, p.72.
46. Idem, p.83.
47. Arte de Música, p.46.
48. Texto inédito.