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Visão Perpétua: A Poesia Oculta de Jorge de Sena

 

Pouco depois do lançamento da primeira recolha de inéditos senianos Visão Perpétua, de 1982, José Rodrigues de Paiva dedica-lhe a recensão, algo esquecida, que a seguir transcrevemos, agradecendo a solicitude do ensaísta.
     

 

 


A Arnaldo Saraiva


Jorge de Sena pertence, sem dúvida, à estirpe daqueles grandes poetas do século XX, que, sendo criadores de obras poéticas de referência obrigatória a quem se debruçar hoje sobre a história e a evolução da lírica ocidental, foram, igualmente, críticos e teóricos de indiscutível importância, teorizando, muitas vezes, sobre o seu próprio fazer artístico, ou, em sentido inverso, construindo obras de criação a partir das próprias teorias, ou ainda, unindo teoria e criação numa mesma concepção criadora. Numa dimensão ocidental, T.S. Eliot e Ezra Pound são os nomes que imediatamente se impõem quando se pensa em escritores com tais características e potencialidades.

Em Portugal, modernamente, ninguém mais e melhor do que Jorge de Sena exercitou os ofícios de poeta e de crítico, escrevendo uma renovadora obra poética em que, muitas vezes, vanguarda e tradição literária se combinam harmonicamente num mesmo texto, ao mesmo tempo em que produziu artigos e ensaios sobre livros e autores da atualidade, estudos sobre temas da sua especial predileção – Camões, o soneto quinhentista, Os Lusíadas, Fernando Pessoa, Maneirismo e Barroco, etc. – confirmando igualmente o seu domínio sobre a arte da ficção e do teatro e revelando-se um dos mais competentes e produtivos tradutores portugueses, principalmente de poesia. Neste campo, a cultura portuguesa deve-lhe o inestimável serviço de haver realizado as antologias intituladas Poesia de 26 Séculos (Porto: Inova, 1971, 2vls.) e Poesia do Século XX (Porto: Inova, 1978), conjunto que inclui mais de duas centenas de poetas ocidentais e orientais num percurso que vai de Arquíloco (700 a.C.) a Calderón de La Barca (1600-1681), de Bashô (1644-1694) a Nietzsche (1844-1900) e de Thomas Hardy (1840-1928) a Carlo Vittorio Cattaneo (n. 1941). Do seu trabalho de tradutor merece ainda especial registro a tradução que fez, para a nossa língua, da poesia do grego Constantino Cavafy reunida em volume intitulado Constantino Cavafy, 90 e Mais Quatro Poemas (Porto: Inova, s.d.). Indiscutível vocação de erudito, Jorge de Sena enriqueceu as suas traduções com notas crítico-biográficas sobre os poetas traduzidos em rápidos mas profundos comentários sobre os textos vertidos para o português.

Esta vocação de erudito acaba por acompanhar o poeta Jorge de Sena que adota o costume de comentar alguns dos seus próprios poemas em notas incluídas no final dos seus livros. Simples questão de hábito ou necessidade de esclarecer o leitor sobre determinados aspectos da sua criação, ao se recordar este detalhe do trabalho literário de Jorge de Sena somos levados a pensar nos maiores poetas da contemporaneidade ocidental, particularmente num Eliot ou num Pound, que do mesmo modo enriqueceram criticamente os seus textos de criação lírica, auxiliando (quando não confundindo) a crítica que posteriormente sobre eles se debruçou.

Como poeta, Jorge de Sena, ao morrer em 4 de junho de 1978, deixou publicadas quase duas dezenas de livros com produções originais. Ainda assim, segundo Mécia de Sena, sua viúva e organizadora das publicações póstumas, o espólio literário do escritor inclui mais de oitocentos poemas inéditos, escritos ao longo de 42 anos. Por aqui se pode ter uma ideia do seu vigor produtivo. É exatamente essa produção deixada inédita pelo autor, a quem a morte não permitiu, sequer, selecionasse ele próprio os textos e os organizasse em volume para publicação dessa parcela da sua obra, que Mécia de Sena começa agora a divulgar neste primeiro volume de inéditos do poeta, que, por sugestão do brasileiro Joaquim-Francisco Coelho, se veio a chamar Visão Perpétua (Lisboa: Moraes Editores / Imprensa Nacional–Casa da Moeda, 1982). Na nota introdutória com que abre o volume, Mécia de Sena justifica a escolha do título:

Para o livro de poemas que, consequentemente, num critério cronológico, seria o último, havia que buscar um título e desejávamos que ele fosse encontrado dentro da própria obra, se possível: um primeiro verso, ou um título de poema. Visão Perpétua, que nos foi sugerido por Joaquim-Francisco Coelho continha, sem dúvida, algo de definitório da própria essência da poesia de Jorge de Sena. Era o título de uma sequência de sonetos, de que, ainda por cima, ele gostava – “Sete sonetos de Visão Perpétua”, in Peregrinatio ad loca infecta (SENA, 1982, p. 11).

Na mesma nota Mécia de Sena anuncia para breve a publicação de um segundo volume de inéditos de Jorge de Sena que se intitulará Post-Scriptum-II. Com a publicação deste livro, afirma ela,

cremos poder dizer que Jorge de Sena-poeta pertence inteiro à posteridade que o estudará e julgará de sua grandeza, já que os seus contemporâneos, com as raras e honrosas exceções do costume, ainda não conseguiram digerir totalmente Fernando Pessoa (SENA, 1982, p. 13).

Visão Perpétua não pode, evidentemente, ser pensado como uma das melhores amostras da poesia de Jorge de Sena. Nem mesmo o fato de ser, cronologicamente, o último livro de poemas do autor, autoriza semelhante pensamento, pois, se este livro vem a ser o derradeiro volume da sua obra, o material que o constitui é enormemente desigual, quer nas datas de elaboração dos poemas, quer nas suas intenções ou finalidades, estrutura e linguagem. Os poemas de Visão Perpétua foram recolhidos de originais manuscritos produzidos ao longo de um período que vai de 1942 a 1978. Claro que, em tão vasto material publicado – e o livro inclui 180 poemas, dos quais quatro aparecem como primeiras versões e nove como poemas inacabados ou fragmentos – é natural que alguns dos textos se assemelhem àqueles primeiros poemas escritos por Jorge de Sena e aos quais ele se referia como “horrores destruídos ou esquecidos” de sua adolescência (SENA, 1982, p. 11). Relembre-se que o critério seletivo adotado por Mécia de Sena na formação de Visão Perpétua foi o da ordem cronológica da criação dos textos e não o do rigor crítico com que estes poderiam ter sido escolhidos. Visão Perpétua não é, portanto, uma antologia de poemas inéditos de Jorge de Sena, mas a publicação indistinta daqueles textos que, excluídos da seleção feita para cada livro publicado pelo autor, permaneceram no ineditismo, pois “muito naturalmente haviam cedido o passo à produção posterior, que caminhava sempre mais rápida do que as possibilidades de publicação” (SENA, 1982, p. 11). Além deste material, que é, na verdade, o que de melhor se encontra em Visão Perpétua, o volume compõe-se, ainda, de poemas declaradamente circunstanciais e de pequenos textos classificáveis como despretensiosos divertimentos do poeta. Daí a desigualdade do volume, que, em certos textos, permite ao leitor entrever a dimensão do gênio que algumas vezes ilumina os melhores momentos do que escreveu o poeta Jorge de Sena ao longo de toda a sua obra poética.

1983

Este artigo foi publicado em 4 de março de 1983 no “Panorama Literário” do Diário de Pernambuco, e em 27 de março de 1983 no “Suplemento Literário” do Jornal Diário da Manhã, de Goiânia. Hoje integra o livro PAIVA, José Rodrigues de. Reflexos do Signo. Recife: Associação de Estudos Portugueses Jordão Emerenciano, 1988.